• Nenhum resultado encontrado

2 A ORAÇÃO RELATIVA NAS GRAMÁTICAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

3.1 O enfoque gerativista

3.1.1 O modelo Tradicional

3.1.1.1 A abordagem de Tarallo

Em seu consagrado estudo sobre os processos de relativização no Português Brasileiro (PB), Tarallo (1983) constatou a existência de três tipos diferentes de orações relativas presentes na fala de sujeitos da área urbana da cidade de São Paulo, uma padrão e duas não-padrão:

a) Relativa padrão: apresenta uma lacuna e nem sempre envolve um constituinte preposicionado46, conforme os exemplos47:

(64) [O doce que eu vi ].

(65) [O doce de que mais gosto ].

b) Relativa Resumptiva (com pronome lembrete): a lacuna é preenchida por uma forma pronominal e envolve constituintes preposicionados ou não, conforme os exemplos:

(66) [O doce que eu vi ele].

(67) [O doce que mais gosto dele].

46 Na verdade, em relação a essa variante com lacuna, Tarallo observou que há duas estratégias disponíveis para

os usuários de língua portuguesa: uma envolvendo constituintes não preposicionados – a que ele chamou de variante com lacuna (exemplo (64) – em oposição à estratégia que envolve constituintes preposicionados – a que ele chamou de pied-piping (exemplo (65)), também denominada de padrão). A variante pied-piping, segundo a pesquisa dele, não aparece na fala, o que o levou a não distinguir esses dois tipos, portanto, com relação à variante padrão, entenda-se a com lacuna e a pied-piping.

c) Relativa cortadora: apresenta lacuna e envolve somente constituintes preposicionados, como o seguinte:

(68) [O doce que mais gosto ].

Embora as duas estratégias não-padrão não sejam reconhecidas pela tradição gramatical, o que verificamos é que a estratégia cortadora, apesar de ser a mais recente das três, pois, como observou Tarallo, começa a aparecer na variante brasileira na metade do século XIX, é muito frequente no discurso oral dos falantes, mesmo os mais escolarizados, o que parece confirmar a existência de uma mudança em curso.

Analisando cada uma das estratégias não-padrão, o autor enumera fatores sintáticos e semânticos, na tentativa de formular hipóteses que relacionem o mecanismo de relativização ao processo de mudança linguística, a saber:

a) Sobre a relativa copiadora: favorecem o uso desse tipo de oração os seguintes fatores:

i. distância entre o SN relativizado e a oração relativa;

ii. o tipo de relativa: a restritiva favorece a ocorrência do pronome-lembrete;

iii. os traços semânticos [+humano], [+singular] e [+definido] favorecem a cópia;

iv. a função sintática de Sujeito favorece a cópia mais que a de Objeto Direto; e

v. a posição da relativa: se ela sucede a matriz, mais provável é o aparecimento do pronome-lembrete.

De acordo com suas palavras:

[...] os pronomes-lembrete tendem a ocorrer quando o falante supostamente perde a trilha do processamento sintático, i. é, quando essa adquire uma configuração tão anti- natural [...] que o falante recorre à retenção pronominal para restaurar a sintaxe. [...] a retenção pronominal transforma aquela estrutura complicada novamente em uma estrutura sintática normal, e o marcador de relativização que torna-se mero indicador de que outra oração independente será processada (TARALLO, 1983, p. 101). b) Sobre a relativa cortadora: o fator determinante que favorece o emprego desse

tipo de oração em relação à copiadora é que esta é estigmatizada socialmente. Porém, o alto índice de ocorrência da cortadora data do século XIX, período em que, segundo o autor, uma regra de apagamento surge no sistema linguístico

ocasionado por uma mudança no sistema pronominal: começava a ocorrer mais retenção pronominal (realização do pronome-lembrete) na posição de Sujeito enquanto decrescia a retenção nas posições de Objeto Direto e Sintagmas Preposicionais (o que anteriormente era condenado pelas prescrições gramaticais). Isso favoreceu o desaparecimento de clíticos do PB (TARALLO,

Ibid., p. 42).

A hipótese de Tarallo é que, com exceção da relativa padrão preposicionada (pied-

piping), as demais não envolvem Movimento de constituinte, ou seja, as variantes não-padrão da Língua Portuguesa se constituem por meio do Apagamento do sintagma nominal (NP) relativizado e da preposição (P) que o acompanha, quando constituinte preposicionado. Tarallo é adepto da hipótese transformacional, segundo a qual, “uma cláusula relativa é gerada a partir de uma não relativa subjacente, base da derivação da D-structure (estrutura profunda) para a S-

structure (estrutura superficial)” (KENEDY, 2002, p. 23).

Dessa forma, para a relativa padrão preposicionada, o processo ocorre da seguinte forma:

(69) a. Comprei o doce de que mais gosto ].

b. [Comprei o doce]. [Eu gosto mais do doce].

Conforme o autor, a relativa em (a) seria gerada por meio de uma sequência de transformações a partir de estruturas não relativas representadas em (b). O sintagma “do doce” é, primeiramente, transformado em pronome relativo e, posteriormente, movido para o início da relativa, deixando um traço - também chamado de vestígio. Para essa estratégia, o modelo transformacional sustenta que há, na estrutura de base da relativização (exemplificada em (b)), dois NPs idênticos:

• 1 NP alvo da relativização (fora da cláusula): [Comprei o doce]

• 1 NP como argumento interno subcategorizado pelo verbo da oração relativa (dentro da cláusula): [Eu gosto mais do doce]

Na transformação da estrutura profunda para a de superfície, o NP subcategorizado pelo verbo da relativa move-se para o início da cláusula, antes transformado em pronome relativo, já que há uma correferência entre antecedente e sintagma-QU. Quer dizer, a expressão nominal repetida dentro da cláusula relativa seria transformada num pronome relativo, este, depois, movido para o início da cláusula.

Com relação às relativas não-padrão, o processo também ocorre via transformações, conforme o exemplo com as relativas resumptivas:

(70)

a. Estranhei o doce que eu vi ele.

b. [Estranhei o doce] [Eu vi o doce]

c. [Estranhei o doce] [Eu vi ele]

Também a relativa em (70a) seria gerada por meio de uma sequência de transformações a partir de estruturas não relativas representadas em (70b) e (70c). Da mesma forma, sustenta-se que há dois NPs, porém, o processo agora não se faz via movimento de sintagma, mas por apagamento do NP, deixando in situ um pronome pessoal correferencial ao NP apagado e a ser relativizado.

O mesmo acontece com os constituintes preposicionados:

(71)

a. Comprei o doce que mais gosto dele.

b. [Comprei o doce] [Eu gosto mais do doce]

c. [Comprei o doce] [Eu gosto mais dele]

Há dois NPs, um é apagado, deixando in situ um pronome correferencial. Essa substituição ocasionou uma neutralização do pronome relativo “que”, que passa a ser considerado como complementizador, pois o índice correferencial permanece in situ, “ele”, no exemplo (70), e “dele”, no exemplo (71), destituindo totalmente o “que” de

(co)referencialidade. Portanto, segundo Tarallo, o “que”, nesses casos, não pode ser considerado como pronome relativo. Ainda afirma ele que essa estratégia estimulou os falantes/ouvintes a deixarem vazia a posição PP, o que gerou o aparecimento da relativa cortadora.

Sobre as relativas cortadoras, pode-se dizer que o processo também é praticamente o mesmo, com exceção da não realização fonética do pronome correferencial, conforme o exemplo a seguir:

(72)

a. Comprei o doce que mais gosto .

b. [Comprei o doce] [Eu gosto mais do doce]

c. [Comprei o doce] [Eu gosto mais dele]

d. [Comprei o doce] [Eu gosto mais ]

Da mesma forma, a relativa em (72a) seria gerada por meio de uma sequência de transformações a partir de estruturas não relativas representadas em (72b), (72c) e (72d). Novamente, sustenta-se que há dois NPs e que o processo também não se faz via movimento de sintagma, mas por apagamento do pronome resumptivo/lembrete e, consequentemente, também da preposição que o acompanha, deixando uma lacuna correferencial ao NP apagado e relativizado.

Resumindo, Tarallo (1983) defende a hipótese de que há dois modelos gramaticais de relativização no português brasileiro (PB) coloquial: um com movimento, o padrão, e outro sem movimento e com apagamento do NP relativizado e da preposição, o não-padrão. Em outras palavras, as relativas não-padrão da Língua Portuguesa, no que se refere à variante brasileira (PB), decorrem de processos de apagamento do NP em sua posição de origem (dentro da cláusula relativa), melhor dizendo, a única estratégia que apresenta movimento de NP é a estratégia padrão preposicionada, na qual o elemento QU realmente é caracterizado como pronome relativo, pois são evidentes os traços compartilhados entre ambos, o principal deles é o movimento da preposição junto com o elemento QU. Nas demais estratégias, não há

movimento, mas apagamento do NP, deixando in situ um pronome lembrete (relativa resumptiva) ou uma lacuna - ocasionada pelo apagamento desse pronome lembrete – (relativa cortadora). Em ambas, o elemento QU é visto como Complementador/Complementizador, já que não compartilha com os NPs apagados nenhum traço correferencial.

Pelo fato de as estratégias não-padrão não decorrerem de movimento, não são susceptíveis às restrições que governam as relativas padrão, tais como as restrições de ilhas sintáticas48.

Ross (1967) observou que o movimento de elementos QU não se fazia possível a partir de certas configurações ou restrições, como a Restrição sobre o SN Complexo49, que diz respeito às configurações em que se extrai um elemento de dentro de uma oração relativa ou de uma oração completiva nominal.

Chomsky (1973) aprofunda-se na investigação dessas restrições de ilha e postula que o movimento se limita ao número de nódulos que pode ser atravessado durante a extração do constituinte – o que ele chamou de Condição de Subjacência. Esses nódulos são conhecidos como nódulos-fronteira ou limite. De acordo com tal princípio, o movimento de um constituinte por Mover α não pode atravessar mais do que um nó-fronteira50. Assim sendo, os exemplos a

seguir são decorrentes de movimento, tornando-se gramaticais, porque obedecem a essa restrição de ilha (atravessam apenas um nó-fronteira). Quando não se obedece, tornam-se agramaticais ou não são decorrentes de Mover α:

(73)51 a. [CP Whoi did [IP he see ti last week]]? ‘Quem ele viu na semana passada?’

b. [CP Whoi did [IP Poirot claim [CP that [IP he saw ti last week]]]]?

‘Quem Poirot alegou que viu na semana passada?’

c. *[CP Whoi did [IP Poirot make [NP the claim [CP that [IP he saw ti last week]]]]]?

48As restrições de ilha, objeto de investigação recorrente na gramatica gerativa, cuja primeira descrição sistemática foi empreendida por Ross (1967), retratam determinadas configurações estruturais a partir das quais a extração de elementos não resulta em estruturas gramaticais. Esse fenômeno trata particularmente do movimento de elementos QU para a formação de interrogativas.

49Além dessa, Ross postulou outras duas restrições que limitam o Movimento de elementos QU na formação de

construções gramaticais de uma língua, a saber: Restrição sobre Estruturas CoordenadaseRestrição sobre Sujeito Sentencial. Segundo sua investigação, estruturas cujo movimento não obedece a essas restrições resultam em estruturas agramaticais. Como não fazem parte do escopo deste trabalho, limitamo-nos a explanar apenas a Restrição sobre o SN Complexo, visto que esta tem relação com o que estamos investigando. Entende-se como

SN Complexo um SN cujo núcleo apresenta um complemento sentencial.

50Entenda-se por nó qualquer Sintagma Flexionado e qualquer Sintagma Nominal. 51Esses exemplos foram extraídos de Bastos (2008, p. 78).

?‘Quem Poirot fez a alegação de que ele viu na semana passada?’

Como explicação para a agramaticalidade de (73c), o autor alega que o elemento QU é extraído de dentro de um SN Complexo (the claim that he saw ti last week), o que não é permitido, já que não se autoriza movimento de constituinte a partir de SN Complexo –

Restrição do SN Complexo. Nos termos de Chomsky, o item (73c) é agramatical porque viola o princípio da Condição de Subjacência, visto que ultrapassa mais de um nó-fronteira (no caso, ultrapassa um NP e um IP).

Seguindo esse raciocínio, Tarallo afirma que as relativas não-padrão em LP não decorrem de movimento justamente porque violam esses dois princípios, entretanto, são construções bem formadas em LP, ou seja, não se tornam agramaticais, reforçando, mais uma vez, o fato de que não são decorrentes de movimento. Para ilustrar essa reflexão de que as relativas não-padrão não se sujeitam a esse tipo de restrição, o autor apresenta os seguintes exemplos (TARALLO, 1983, p. 17):

(74) a. O homem que eu acredito no fato de que Maria viu (ti), veio me visitar. b. O homem que eu sei quando Maria viu (ti), é meu primo.

Tais exemplos assemelham-se às construções que denominamos pseudorrelativas

modalizadoras. Em seus termos, portanto, essas construções não seriam derivadas de movimento, pois violam a Restrição sobre o SN Complexo – “o fato de que Maria viu o homem” -, nos termos de Ross, assim como também infringem a Condição de Subjacência, nos termos de Chomsky, ao ultrapassarem mais de um nó-fronteira – um NP e um IP. Justifica-se, assim, a interpretação do autor de que tais construções, assim como as outras relativas não-padrão, provêm de apagamento, e não de movimento.