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2 A ORAÇÃO RELATIVA NAS GRAMÁTICAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

2.2 A abordagem heterogênea

30 Denominamos a abordagem de Bechara como heterogênea, conforme já explicamos na Introdução, porque,

ainda que defenda uma abordagem tradicional de gramática, este autor insere uma visão linguística sobre o fenômeno.

Bechara (1999, p. 465) começa a análise das orações adjetivas, ou de relativo (em seus termos), fazendo a equivalência entre o adjetivo e uma oração adjetiva. Por exemplo31:

(33) O aluno estudioso vence na vida. (34) O aluno que estuda vence na vida.

No primeiro exemplo, tem-se o adjetivo estudioso e, no segundo, a oração que

estuda representando tal adjetivo, razão pela qual se chama adjetiva. Ainda afirma Bechara que essa representação é possível porque adjetivo e oração adjetiva são equivalentes tanto semântica quanto sintaticamente. Segundo ele:

a oração independente ‘O aluno estuda’, mediante o transpositor que, representado pelo pronome relativo, transpõe a oração independente a funcionar, num nível inferior, como adjunto adnominal do substantivo aluno, tal qual fazia o adjetivo

estudioso da oração básica O aluno estudioso vence na vida. Daí dizer-se que a oração transposta que estuda é subordinada adjetiva (BECHARA, 1999, p. 465, grifo do autor).

Em seguida, continua a análise dividindo as orações adjetivas em explicativas e

restritivas (como fazem os outros gramáticos consultados). Exemplificando cada caso, então temos:

(35) O homem, que vinha a cavalo, parou defronte da igreja.

Em oposição a:

(36) O homem que vinha a cavalo parou defronte da igreja.

A diferença entre esses dois tipos de oração baseia-se em duas peculiaridades, segundo Bechara:

i. a marca de pausa (em geral, indicada na escrita pelo uso de vírgulas): a adjetiva

explicativa aparece marcada por pausa; ao passo que a restritiva, não;

ii. a possibilidade de ser ou não dispensada sem causar prejuízo à mensagem que se está veiculando: a explicativa pode ser dispensada porque não modifica a

31Exemplos do próprio autor.

referência do antecedente, é um mero apêndice sobre ele; ao passo que a

restritiva, por limitar ou restringir o ser sobre o qual se fala, não pode ser dispensada, pois causaria prejuízo à informação veiculada na mensagem.

Dessa forma, temos, em (35), um exemplo de oração adjetiva explicativa, já que a oração “que vinha a cavalo”, por estar entre vírgulas, denuncia que, na narração, só havia um homem. Sendo assim, essa oração aponta apenas uma informação adicional, podendo, desta maneira, ser dispensada sem prejuízo:

(37) O homem parou defronte da igreja.

Já no exemplo (36), temos uma oração adjetiva restritiva, pois, por não se separar, através de pausa, do antecedente, demonstra que, na narração, havia mais de um homem, mas se estava referindo somente àquele “que vinha a cavalo”, ou seja, porque mantém essa relação de restrição com seu antecedente, tal oração não pode ser dispensada, visto que causaria prejuízo na informação veiculada.

Continuando sua explanação sobre as adjetivas, Bechara dá explicações e exemplos de orações que são originariamente substantivas, mas que deveriam estar no grupo das adjetivas; é o que ele nomeia de “adjetivação de oração originariamente substantiva” (BECHARA, 1999, p.467), como é o caso das completivas nominais32. Segundo ele, essas

orações deveriam ser incluídas entre as adjetivas porque são modificadores de seus núcleos nominais e funcionalmente têm natureza adjetiva. Como é o caso de:

(38) O desejo de que se apurem os fatos é a maior preocupação dos diretores.

A oração em destaque funciona, segundo o gramático, como modificador do núcleo nominal “desejo”.

Essa posição parece ignorar uma questão ancestral na Linguística – a diferença entre constituintes obrigatórios (complementos) e facultativos (adjuntos) 33. As orações completivas

32 Essa sugestão contraria a NGB, que apresenta a completiva nominal como um tipo de substantiva.

33De um modo geral, as gramáticas e teorias sintáticas distinguem complemento de adjunto. Existem itens lexicais (verbos, substantivos, adjetivos e advérbios) transitivos e intransitivos (com valência ou avalentes). Os itens transitivos abrem em torno de si lugares que devem ser preenchidos por outros itens, que são os complementos ou

argumentos. Entretanto, podem, também, estar acompanhados de constituintes que não são exigidos por sua semântica, ou seja, não fazem parte de sua valência, são os adjuntos.

nominais inserem-se no grupo dos complementos, portanto, obrigatórios; diferentemente do que acontece com as adjetivas, que são classificadas de adjuntos, logo, segundo a GT,

facultativas. Além disso, para a tradição gramatical, a principal característica de uma oração adjetiva é a presença de um pronome relativo. Ainda que sejam também modificadores de um núcleo nominal, as completivas nominais são introduzidas por conjunções integrantes, tal como as substantivas; ao passo que as adjetivas trazem como seus introdutores pronomes relativos.

O contrário também é observado por Bechara (1999, p. 468), “substantivação de orações originariamente adjetivas”, em que se tem uma oração transposta adjetiva mediante o apagamento do antecedente dos pronomes relativos quem e que e, nesse último, a presença do artigo (o que), se o antecedente, pela situação de discurso, é conhecido dos interlocutores ou se lhe quer dar certo ar de generalização.

É o caso de:

(39) Não conheço quem chegou.

Nessa oração, tem-se o apagamento do antecedente do pronome relativo quem. Com isso, a oração quem chegou funciona como objeto direto do verbo conhecer. Colocando-se o antecedente na oração, ter-se-ia:

(40) Não conheço a pessoa que chegou.

Agora, a oração que chegou funciona como adjetiva, e não mais como substantiva. Bechara diz que há outra possibilidade de análise, que consiste em desdobrar o

quem em aquele que ou em o que. Em o que, pode-se identificar o como pronome demonstrativo antecedente, e que, como resultado da reinterpretação de aquele que. Como no exemplo já citado:

(39) Não conheço quem chegou. Desdobrado em:

(39) a. Não conheço aquele que chegou. Ou em:

Todavia, segundo Bechara (1999), essa é uma forma de manipular a realidade, substituindo-a, às vezes, por expressões que nem sempre a ela correspondem. Essa conciliação forçada é um método condenável para o gramático, que defende a análise a partir da realidade da língua.

Sobre o pronome relativo que, o gramático diz que, na oração subordinada, é ele o responsável pela transposição de orações adjetivas, razão pela qual o denomina de transpositor

relativo; além disso, esse item reintroduz o antecedente a que se refere, acumulando também uma função sintática de acordo com a estrutura sintática da oração transposta. Retomando o exemplo (34), temos, nas palavras de Bechara (1999, p. 466):

(34) O aluno que estuda vence na vida.

a oração que estuda vale por o aluno estuda, já que o pronome relativo é aí o representante do antecedente aluno. Analisando o aluno estuda, o sujeito explícito é

o aluno, o que nos leva a verificar que o pronome em que estuda funciona como sujeito explícito do núcleo verbal estuda.

Finalizando sua análise referente às orações relativas, Bechara explica e exemplifica o que chama de “relativo universal” (p. 491), que é o uso do relativo destituído de qualquer função sintática, colocado como um simples elemento que transpõe orações. É o que acontece em exemplos como estes que ele traz:

(41) O homem que eu falei com ele.

(42) A amizade é coisa que nem sempre sabemos seu significado.

Segundo Bechara, nesses dois exemplos, tem-se o relativo que sem função sintática nas orações das quais faz parte, porém tal função é expressa logo mais adiante pelos termos

com ele e seu significado.

Diferente é o que acontece com o fenômeno denominado por nós de

pseudorrelativa modalizadora, que traz o pronome relativo sem função sintática, da mesma forma que os dois exemplos citados anteriormente, entretanto tal função não se expressa mais adiante, como o que ocorre nos exemplos (41) e (42). Retomando o exemplo do próprio Bechara, temos:

O pronome relativo que não exerce função sintática na oração adjetiva (ou relativa). Ele retoma o antecedente (o homem) e exerce a função sintática na oração substantiva subsequente que tivesse desaparecido.

Para o autor, esse tipo de uso é característico da linguagem coloquial e popular, que toma o relativo universal como um ‘elemento linguístico extremamente prático’ (p. 492), apesar de a língua padrão recomendar o “correto” emprego dos relativos, ou seja, o uso da variante padrão no lugar das não-padrão.

Essa mesma peculiaridade é observada em Kury (2011):

Em certas construções, o pronome que introdutor de uma oração adjetiva nela não exerce nenhuma função: vai exercê-la numa oração substantiva dela dependente: “Não faças a outrem [o que não queres] [que te façam].”

O relativo da oração adjetiva que não queres é objeto direto de façam, verbo da oração objetiva direta que te façam.

É um cruzamento sintático, não exclusivo do português (Cf., por exemplo, o francês “Ne fais à autrui ce que tu ne vaudrais pás qu’on te fît à toi-même.”), que nos mostra o entrelaçamento estreito das orações e o artificialismo da partição que delas se costuma fazer (KURY, 2011, p. 85).

Segundo o autor, tais exemplos devem-se chamar “orações complexas”.

Essa peculiaridade do que (exercer função sintática, não na oração em que se encontra, mas numa oração subsequente), a nosso ver, pode ser o que propiciou o ambiente perfeito para o surgimento da pseudorrelativa modalizadora, já que, nesta, o pronome também não exerce função sintática na oração em que se encontra, mas na que o sucede. Em outras palavras, acreditamos que, a partir dessa mobilidade do pronome relativo, é que se iniciou a gramaticalização do que como introdutor de oração relativa mesmo sem exercer função sintática nela, o que culminou no surgimento de orações pseudorrelativas modalizadoras.