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2. OS PRINCÍPIOS NO DIREITO ADMINISTRATIVO E OS CONCEITOS

3.1. Os modelos de Administração Pública

3.1.2. A Administração Pública Burocrática

Nesse momento, o governado se desloca do status de súdito para o de cidadão, sujeito de direito que cede ao Estado o direito de governar em seu nome e lugar desde que devidamente limitado pela lei, evitando-se o arbítrio da Administração contra o Indivíduo; esmaece-se, assim, a ideia de “desigualdade jurídica apriorística”, presente

53 As normas, aqui, derivariam da tradição, da “crença na rotina de todos os dias como forma inviolável

no Feudalismo, entre o cidadão e o aparato estatal (CORREA e LUZ SEGUNDO, 2009, p. 5867).

Gabardo (2002, p. 34) afirma, todavia, que, no Brasil, a evolução do Estado Personalista para o Estado Moderno não se realizou de forma perfeitamente clara. Inúmeras consequências (negativas) terão decorrido disso.

Não obstante isso, emerge a ideia de Administração Pública burocrática, que vem substituir as formas patrimonialistas de gestão e que se fundamenta em função da “necessidade de maior previsibilidade e precisão no tratamento das questões organizacionais” (ARAGÃO, 1997, p. 105).

Historicamente, no Brasil, tal modelo teria surgido após o declínio econômico da elite agrária. O setor privado se viu impossibilitado de sustentar o desenvolvimento econômico e social do País, o que foi agravado pela recessão e pelo desemprego característicos do pós-Crise de 1929. Transfere-se ao governo, assim, uma série de novas responsabilidades, a demandar uma administração melhor estruturada e profissionalizada na mira da consecução de seus objetivos (WLOCH, 2006, p. 8-9). Tácito (1998, p. 31)comenta que, até 1930, os órgãos paraestatais não iam além de 17. Após o quadro supracitado, em que as funções estatais se alargam, há sucessivo aumento da compleição estatal: nos anos 1950, o número de órgãos teria subido para 70 e, durante a década de 1980 (quando, na verdade, o paradigma gerencial começa a emergir), para 582.

O modelo burocrático, assim, acabar por optar pelo controle de processos sobre o controle de resultados, primando, muita vez, pelo excesso de formalismos, embora disso decorram, como vantagens, a segurança e a efetividade das decisões. Entende-se, aqui, que a punição dos transgressores é muito difícil, reforçando-se, por isso, a prevenção, mesmo que isso acarrete muitos custos (LUZ, 2005, p. 55). Decorre, daí, a ideia de rígidos controles a priori dos processos (na admissão de pessoal, nas compras, no atendimento a demandas etc.), evitando-se a corrupção e o nepotismo (MIRANDA, 2004, p. 32-33).

Baseado na meritocracia – garantia de impessoalidade e proteção às decisões do Estado contra particulares –, o modelo burocrático puro, típico da sociedade moderna, constitui-se sobre um “racionalismo legal, despersonalizado e não-patrimonialista, determinado pelos procedimentos”, com ênfase na dominação racional, na busca de

igualdade perante a lei, na normatização dos procedimentos, na melhoria de qualidade nos serviços etc. (LUZ, 2005, p. 82-84).

Com efeito, para alguns, o germe do Estado interventor eficiente surge, de fato, a partir da idealização do modelo legal-burocrático: se o que define o Estado é sua capacidade de bem manejar os “meios” (que, aqui, se confundem com procedimentos), não importa que os “fins” sejam os mais diversos, reflexo de inúmeros e discrepantes interesses (GABARDO, 2002, p. 32-33).

Bresser (apud CAMARGO, 2010, p. 36) escreve que o modelo burocrático seria pautado por um “serviço civil profissional, na dominação racional-legal weberiana e no universalismo de procedimentos, expresso em normas rígidas de procedimento administrativo”.

Na Burocracia, assim, emerge a obrigação de uma “atividade estatal profissionalizada, impessoal, formal, legal, racional”, em que, por meio do controle sistematizado dos processos administrativos, a res publica seria definitivamente separada do patrimônio privado (DINIZ, 2003, p. 21), pautando-se ainda a Administração pública por uma ideia de carreira, de hierarquia funcional e, enfim, por um poder racional legal (MIRANDA, 2004, p. 32).

Aragão (1997, p. 105) parece querer resumir o ideal weberiano da seguinte forma:

[...] o tipo ideal weberiano (modelo analítico) reúne o que seria a modelagem de um sistema baseado em critérios de eficiência (considerando a estrutura formal da organização), dada por: a) estrutura de autoridade impessoal; b) hierarquia de cargos baseada em um sistema de carreiras altamente especificado; c) cargos com claras esferas de competência e atribuições; d) sistema de livre seleção para preenchimento dos cargos, baseado em regras específicas e contrato claro; e) seleção com base em qualificação técnica (há nomeação e não eleição); f) remuneração expressa em moeda e baseada em quantias fixas, graduada conforme o nível hierárquico e a responsabilidade do cargo; g) o cargo como a única ocupação do burocrata; h) promoção baseada em sistema de mérito; i) separação entre os meios de administração e a propriedade privada do burocrata; e j) sistemática e rigorosa disciplina e controle do cargo.

Percebe-se, assim, uma nítida ênfase nas ideias de Procedimento e de Formalismo qualificado pela Legalidade54. Gabardo (2002, p. 38-41) defende que a atuação procedimental da administração está fincada nos próprios ideais de justiça e de

54 Gabardo (2002, p. 33) escreve que “Weber identifica como características fundamentais do Estado

burocrático justamente o somatório entre a prévia definição de competências e o exercício contínuo de uma atividade vinculada a regras oficiais”.

moralidade, que teria íntima ligação com a “efetiva isonomia de tratamento aos administrados, que somente pode ser garantida pelo procedimento, notadamente um mecanismo de manutenção da imparcialidade e da segurança jurídica”. Se um “formalismo irresponsável” é “incontestavelmente pernicioso”, não menos negativa será a desprocedimentalização, tendo em vista a íntima conexão, pelo já exposto, entre Procedimento e Democracia.

Um primeiro contato com as noções supracitadas pode causar estranheza a um leigo: é comum que o termo “burocracia” indique não uma racionalidade procedimental, mas, antes, pejorativamente, “abundância de papéis, rigorosidade de normas, excesso de formalismo”, traduzindo-se na imediata associação do modelo burocrático à ideia de ineficiência (ARAGÃO, 1997, p. 105). A “burocracia” relaciona-se à máquina pública “emperrada”, excesso de uso de carimbos inócuos, de utilização de calhamaços inúteis de papeis; trata-se, em verdade, de “sinônimo de ineficiência, complicação, disfunção ou defeito do sistema” (LUZ, 2005, p. 84-85).

Por que razões, então, o termo adquiriu semântica tão negativa no Brasil e na linguagem corrente? É isso fruto de alguma desvirtuação história da experiência nacional? O próprio modelo burocrático, enquanto ideal, poderia passar imune e incólume a críticas? Na verdade, as respostas a essas duas últimas perguntas parecem ser negativas.

Sob aquela primeira ótica, faz-se reflexão no sentido de que as raízes da burocracia brasileira, ao contrário do que se prega com o ideal de modelo legal- burocrático de Administração Pública, fincam-se primevamente numa confusão entre o público e o privado, produto da lógica coronelista que se instaurou nos primeiros anos da República, quando o paternalismo à custa do erário se tornou prática comuníssima: “homens compravam cargos no serviço do Estado ‘como propriedade pessoal’ ou, o que equivale, ‘o herda do pai’, passando ele a indicar as nomeações dos mais variados cargos [...]”55. Depois, quando convocado o povo às urnas (antes e depois do Estado Novo), o fenômeno do Coronelismo, fruto da estrutura agrária que persistia no País, “feito fênix, renasceu das próprias cinzas” (LUZ, 2005, p. 86-87). A burocracia, assim ensina Gabardo (2002, p. 44), apresentou-se como uma novidade que “não tinha

55 É interessante notar que a prática, até muito recentemente, vigorava no Brasil, com a lógica de compra

referenciais consistentes na esfera da cultura e das práticas sociais, para que pudesse ter respaldo no campo da legitimidade”.

Nesse sentido, fala-se em um “Estado formalmente público, mas materialmente privado”, sendo característica notória da burocracia brasileira o seu “irracionalismo, na medida em que se pautou pelo tradicionalismo patrimonialista”. Foi com essa mentalidade, portanto, que se formaram os primeiros quadros burocráticos no Brasil (GABARDO, 2002, p. 32-34).

Se é certo afirmar que a experiência brasileira, por suas idiossincrasias históricas, acabou por desvirtuar o ideal weberiano de burocracia, não menos certo é observar que o modelo, tomado em sua pura concepção, não resta imaculado de críticas teóricas56

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Nesse sentido, Aragão (1997, p. 110-111) elenca rol de críticas ao modelo: a) a adesão de servidores à lógica normativa da burocracia desliza facilmente para o que se chama de ritualismo e, daí, para a ineficiência; b) as rígidas hierarquização, centralização e especialização, como tendem a distorcer informações, acabam por inibir a tomada de decisões que levem à eficiência; c) a centralização acaba por prejudicar severamente a capacidade de iniciativa de subordinados; d) o modelo weberiano seria mecanicista demais para que se pudesse lograr eficiência em situações que demandam uma “elevada capacidade de flexibilidade e de adaptação”.

Nas práticas burocráticas, assim, haveria tendência e espaço para o exercício de gastos desnecessários dos recursos arrecadados (LUZ, 2005, p. 39). Se Weber indicou que o objetivo final da burocracia seria alcançar os fins do Estado, é certo que, se tal realização só ocorre a alto preço, estaremos diante de ineficiência e de falha do sistema (ARAGÃO, 1997, p. 126).

Wloch (2006, p. 8-13) faz o alerta de que “a burocracia concentrava-se nos processos, sem considerar a alta ineficiência envolvida, porque acreditava que este era o

56 Gabardo (2002, p. 35; 44; 65) é firme em defender que a principal causa para o insucesso do modelo

burocrático se encontra na deturpação ocasionada pela experiência brasileira. Citando Raymundo Faoro, o autor afirma que, no Brasil, não houve, de fato, Burocracia (campo ótimo da dominação racional próprio do Estado e da empresa modernos), mas, sim, um “estamento burocrático”, que se origina do modelo patrimonialista. Assim, o problema não se encontraria na racionalidade procedimental burocrática, mas, antes, na sua autonomização (e, daí, deturpação), que gera a permanência do clientelismo, do fisiologismo e do nepotismo, e na excessividade de formalismo, que, por sua vez, gera prejuízos materiais e político- democráticos. Assim, surgiu “um preconceito em relação ao próprio modelo; o preconceito tornou-se resistência; a resistência tornou-se crítica; a crítica, mera negação. [...] Por esse motivo é que o termo, de expressão da racionalidade impessoal característica do Estado Moderno, acabou por conotar um sistema lento, precário, inflexível e dispendioso; em suma: ineficiente.”.

modo mais seguro de evitar o nepotismo e a corrupção”. Negligenciando, portanto, a sua função primordial de servir aos cidadãos, a Administração Pública tachava-se “um fim em si mesma”.

É nesse sentido que Medauar (2003a, p. 126) ensina que a Administração acabou se fechando sobre si mesma, como que a reproduzir a inexistência de comunicação entre Estado e Sociedade, fenômeno típico do Século XIX.

Resumindo as críticas que se podem fazer ao modelo burocrático de Administração, Odete Medauar, citando Deroche e Guarino, admoesta que:

As práticas padronizadas e repetitivas, a interpretação rígida de normas e regulamentos, a disciplina dos órgãos, o dever de obediência, acrescentaram- se para levar à indiferença no comportamento do servidor. Por outro lado, o sistema de divisão do trabalho se realizou de modo formalizado e estanque, limitando ao máximo todo tipo de ‘osmose’ com o exterior e entre os próprios segmentos da Administração; a distribuição estanque acarreta o impedimento de levar em conta, no exercício de uma atribuição, finalidades e objetivos de qualquer outro órgão ou poder; todo setor tem fim próprio vinculado, proibida a consideração de qualquer fim estranho, embora público. (MEDAUAR, 2003a, p. 125).

O modelo, senão superado, logo haveria de ter de se adaptar às novas contingências sociais e econômicas.