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2. OS PRINCÍPIOS NO DIREITO ADMINISTRATIVO E OS CONCEITOS

4.2. Improbidade Administrativa

4.2.1. Corrupção e improbidade

Se o estudo do princípio da moralidade é preparação para o entendimento da improbidade administrativa, natural que a análise dessa categoria jurídica se torne o próximo objeto do presente estudo. Antes disso, todavia, cabe breve parêntese, justificado por um motivo principal: à linguagem corrente, a ideia (e, principalmente, o vocábulo) de improbidade está intimamente ligado com a de corrupção. Em geral, ou se confundem, tomando-se por sinônimos (e isso é muito comum em meio midiático), ou se englobam mutuamente em amálgama de fenômenos sociais que um estudo jurídico que se atenha à perfeita técnica metodológica e terminológica não pode suportar. Cumpre, portanto, tentar separar, no que possível, as concepções e, enfim, depurar a noção de improbidade, antes da proposição mais exata de um conceito.

Etimologicamente, corrupção seria o rompimento de “algo que se considera intacto e inteiro, promovendo-se, então, por esta ruptura, a tangibilidade inaceitável de um bem” (ROCHA, 1994, p. 195). O termo vem do latim “corruptio”, ligado à imagem de deterioração, de alteração103

, o que, em negócios públicos, bem designa “a destruição, por apodrecimento, do ideal de bem comum pela apropriação, para fins privados de alguns, dos meios e recursos públicos” (RAMOS, 2002, p. 3).

Corrupção, disserta Rocha (1994, P. 196-200), é o contrário de democracia e de Direito, sinônimo, portanto, de antidemocracia, de injustiça e de antidireito. No desempenho da Administração do Estado contemporâneo, o binômio poder econômico e poder político, a exercer, segundo uma lógica socioeconômica capitalista de ganho material, uma enorme atração sobre as pessoas, acaba afrontando o sistema normativo vigente ao contrariar a moralidade administrativa.

O fenômeno da corrupção, assim, está associado à fragilidade de padrões de ética em uma sociedade, o que, por certo, reflete-se sobre a ética do agente público (GARCIA; ALVES, 2006, p. 7), que, assim, em inúmeros casos, passa a empregar o poder que lhe foi conferido como uma “fonte inesgotável de aquisição, usufruto, distribuição e transmissão de regalias e mordomias, um modo de obter vantagens ilícitas

103 Figueiredo (2008, p. 254, grifo do autor) define a corrupção como “ação pela qual uma coisa apodrece

para si ou para outrem (coronelismo, filhotismo, nepotismo, empreguismo) [...]” (MARTINS JÚNIOR, 2009, p. 1).

Osório (2007, p. 55, grifos do autor) escreve que:

O Relatório Final da Comissão de Diagnóstico da Legislação Centro-

americana no tema da corrupção, no marco da Cúpula Entro-americana

contra essa patologia, disse que ‘a corrupção como tal representa uma das práticas humanas mais generalizadas e com efeitos tão perniciosos e devastadores que seu exercício impossibilita a saúde moral dos povos, impede o desenvolvimento econômico sustentável das nações e representa um poderoso obstáculo para obter a paz e a harmonia social’. Veja-se que a Comissão fala de saúde moral dos povos e, acrescentamos, instituições.

No Brasil, as causas são várias, perfilhando “comportamentos imorais socialmente aceitáveis até a participação do Estado na vida cotidiana, passando pelo péssimo nível salarial dos agentes públicos [...]” – além disso, o Estado seria excessivamente tutelar, burocrático em excesso e radical interveniente nas relações sociais (MARTINS JÚNIOR, 2009, p. 2; 4). Haveria, historicamente, duas grandes vertentes de corrupção no País: (a) a manipulação de decisões políticas a fim de favorecer os interesses econômicos dominantes e (b) a apropriação de recursos e de bens públicos por políticos, seja em benefício próprio, seja para o financiamento de campanhas eleitorais, seja, ainda, para favorecimento de interesses particulares de terceiros (OSÓRIO, 2007, p.59).

Os índices de corrupção que se verificam atualmente no país são desdobramentos históricos que remontam à colonização e, depois, aos longos períodos ditatoriais em que vivemos, durante os quais as práticas democráticas – fruto de lenta evolução cultural que é inerente à conscientização popular – foram tímidas (GARCIA; ALVES, 2006, p. 6). A deturpação tradicional do poder disseminou uma cultura em que eram vistos com passividade geral escândalos públicos104

, tais como a obtenção de vantagens ilícitas, “o malbaratamento dos recursos do erário, o vilipêndio aos princípios

104

Comentando a importância da consciência popular a respeito dos meios de combate à corrupção, Garcia e Alves (2006, p. 6-7) escrevem que “O combate à corrupção não haverá de ser fruto de mera produção normativa, mas, sim, o resultado da aquisição de uma consciência democrática e de uma lenta e paulatina participação popular, o que permitirá uma contínua fiscalização das instituições públicas, reduzirá a conivência e, pouco a pouco, depurará as idéias daqueles que pretendem ascender ao poder. [...] Um povo que, em seu cotidiano, tolera a desonestidade e, não raras vezes, a enaltece, por certo terá governantes com pensamento similar”.

da Administração Pública e o desprezo aos direitos e garantias individuais e sociais”105. (MARTINS JÚNIOR, 2009, p. 2).

É nesse sentido que se fala em um “crescente e persistente déficit histórico de ética” (OLIVEIRA, 2009, p. 146). Fala-se também em que se vive sob o signo do desencanto: “A palavra da hora é crise – do sujeito, do direito, da política, da economia, de caráter.”. Nessa perspectiva, “Não será exagerado afirmar que, no Brasil, o direito tem um quê da consistência dos colóides e algo em comum com os vírus: um direito meio sólido, meio líquido, metade vivo, metade morto” (SAMPAIO, 2002, p. 148-149).

Para a antiga Roma, tal concepção abrangente de corrupção – que ainda abarcaria o clientelismo, as recomendações de homens públicos em favor de amigos, a malversação de recursos públicos etc. – funcionava (PERELLI apud OSÓRIO, 2007, p. 33-34). Fica certo, diante disso, que, apesar da ideia comum de degeneração de condutas, a concepção romana não pode vingar no atual contexto histórico e ético- normativo vigente, ao menos não com essa ambiguidade simbólica e semântica (OSÓRIO, 2007, p. 34-35).

Com efeito, sociologicamente, é perfeitamente possível aceitar essa concepção de maus costumes no exercício do poder público, de podridão moral ou de grave desonestidade funcional. Juridicamente, todavia, a ideia não indica elemento universal ou seguro que a caracterize: num marco ético-normativo, não se consegue ver, por exemplo, a exata diferenciação entre a corrupção e a ideia de desvio de poder106 (OSÓRIO, 2007, p. 57; 60; 63).

Até agora se escreveu, portanto, da corrupção (de sua etimologia e de sua contextualização no Brasil) em sentido sociológico, o que, embora não suficiente, certamente contribui para uma percepção mais aclarada dessa realidade no âmbito jurídico107.

105 Éric Alt e Iréne Luc (apud MARTINS JÚNIOR, 2009, p. 6), baseando-se em Heindenheimer,

distinguem “corrupção preta” (aquela não tolerada pela opinião pública e reprimida pelo direito penal), de “corrupção cinza” (não tolerada, mas praticadas nos meios dirigentes, como os financiamentos ilegais de partidos políticos) e de “corrupção branca” (tolerada pela sociedade e caracterizada pelo desprezo a certas regras de valores menores).

106 Da mesma forma, o direito penal utiliza a terminologia para tipificar crimes específicos. 107

Sobre a questão, Osório (2007, p. 27) complementa que “De outro, a mesma realidade, a evidenciar uma concentração de esforços em torno de uma patologia específica, indica a indevida limitação do olhar sobre uma complexa situação, multifacetária e sofisticada, que certamente não se encaixa numa terminologia unitária tão carregada e pesada quanto a corrupção pública, com toda a sua carga histórica e ideológica, cultural e normativa”.

Decomain (2007, p. 11-19) aponta que, desde as Ordenações Filipinas, o direito local se preocupou com a corrupção no Poder Público. Apesar disso, de início, tal tutela era levada a efeito por meio do Direito Penal e dos crimes contra a Administração Pública. Essa proteção, por óbvio, logo seria vista como insuficiente: com o tempo, o legislador passou a se importar com que “os valores desviados do Poder Público a ele retornassem”.

Assim, surge a ideia de improbidade administrativa, que seria “a designação técnica da chamada corrupção administrativa, pela qual é promovido o desvirtuamento dos princípios basilares de uma administração transparente, eficiente e equânime [...]” (RAMOS, 2002, p. 19)

Etimologicamente, do latim probus, aquilo que brota bem (pro + bho – da raiz

bhu, nascer, brotar), a improbidade se constitui no que é bom, no que tem boa

qualidade. Por assim dizer, figuradamente, utiliza-se o termo para falar do homem que tem retidão de conduta, que é honrado, íntegro, leal, honesto, casto e virtuoso, que age com respeito aos bons costumes (GARCIA; ALVES, 2006, p. 109).

Sobre o assunto, Martins Júnior (2009, p. 10, grifos do autor) esclarece que:

Na essência, a cultura da improbidade atribuiu ao patrimônio público, isto é, aos bens, direitos, interesses e valores materiais e morais da sociedade, uma absurda condição de res nullius ou quiçá de res derelicta, quando em verdade se trata de incontestável res omnius. Essa estrutura rói as bases fundamentais do Estado como um câncer que, paulatinamente, flagela o doente, expondo-o à mais completa degeneração física e psicológica, da qual o óbito é apenas uma consequência clínica elementar.

Assim, o termo “improbidade” substitui “corrupção”108, abarcando não só as modalidades de enriquecimento ilícito (objeto preferido das notícias jornalísticas), mas também, com uma tendência ao “alargamento dos tentáculos estatais em busca da repressão de múltiplas modalidades de atos ilícitos”109, as de ineficiências intoleráveis. (OSÓRIO, 2007, p. 38).

108

Para Bitencourt Neto (2005, p. 122), a Improbidade Administrativa abrange a ideia de corrupção.

109 Sobre a preocupação crescente com a melhoria dos meios de combate à corrupção (rectius:

improbidade), Ramos (2002, p. 17, grifo do autor) escreve que “O Alto Comissariado de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, bem como a Comissão de Direitos Humanos da mesma entidade, têm enfatizado o dever de combate à corrupção tendo em vista o fortalecimento da chamada

good governance ou administração proba, que seria o processo pelo qual as instituições públicas

conduzem os negócios e recursos públicos em obediência ao Estado de Direito (rule of law) e imunes à corrupção, voltadas para a promoção de igualdade e justiça social”.