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O Estado moderno e a Administração Pública são dois fenômenos inseparáveis a ponto de ser difícil imaginá-los de modo independente. Evidentemente que tal correspondência não é absoluta; entretanto quando a ideia de Estado muda, também deve mudar a de Administração Pública.

A história da Administração tem sido uma crônica de ensaios de adaptação a seus contextos e muito particularmente ao Estado e à Sociedade. Contudo, o problema de adaptação parece ainda ser um grande desafio a ser superado.

Observa o professor Alejandro Nieto que “de ordinário os objetivos do Estado se frustram por culpa de uma Administração insuficientemente operativa, ou, se se quiser, porque se fixam de maneira frívola certos objetivos, excessivamente ambiciosos, sem ter em conta a pobreza de meios administrativos disponíveis para alcançá-los”74.

O Estado brasileiro mudou com o advento da Constituição de 1988 e, por conseguinte, terá de mudar a Administração Pública. Esta mudança, naquilo que diz respeito ao objeto desta dissertação, se materializa na inserção do princípio de impessoalidade.

Discorrendo sobre a Administração Pública espanhola – embora a idéia se amolde à Administração Pública brasileira -, o professor Alejandro Nieto anotou que

para entendê-la é necessário ter em vista suas três faces: a de instrumento, a de poder e a de butim.

Atuando por meio dela, o Estado tem a Administração Pública como um instrumento, “mas sem esquecer que se trata de uma organização proteica e de atividade polivalente dado que seu âmbito de atuação é elástico como consequência não apenas das variações da atividade que se considera pública, mas também porque a mesma função pode ser realizada não de maneira burocrática mas gerida em um cenário de mercado e até pelo setor privado: o que forçosamente deve alterar sua importância e desnaturalizar seu alcance”. E como centro de poder, a Administração Pública, continua o professor espanhol, “vai muito além de sua função meramente instrumental, e em tal condição opera, segundo sabemos, como um contrapeso político. Sendo assim, esta condição de poder atrai inevitavelmente a ambição de outras forças sociais, que aspiram a ocupar a Administração Pública para desfrutar de seus privilégios e fundamentalmente das rendas que obtém. Com a consequência de que se não se ajusta a defendê-la, como é atualmente o caso espanhol, termina convertendo-se em um butim de grupos corporativos e em maior medida ainda da classe política”75.

O Estado, como se sabe, desenvolve suas atividades por meio do governo, que atua, por sua vez, por intermédio da Administração Pública. A efetividade do Estado depende da qualidade do governo, e a efetividade deste depende da capacidade operativa da Administração Pública76.

Nos termos da nova ordem constitucional, a República Federativa do Brasil, como Estado Democrático de Direito se organiza político-administrativamente77 em União, Estados, Distrito Federal e Municípios, todos autônomos, nos termos da Constituição, e estabelece que a Administração Pública78 direta e indireta de quaisquer dos poderes destes órgãos político-administrativos obedecerá, além de outras normas, aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

A Constituição da República de 1988, no Título III79, Da Organização do Estado, mais precisamente no Capítulo VII, Da Administração Pública, dispõe em seu art. 37, caput, que “A administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da

75 ALEJANDRO NIETO. El Desgobierno de lo público. Madrid: Editorial Ariel, 2008. p. 248. 76 Idem, ibidem. p. 245

77 Veja-se o art. 18, caput, da Constituição da República. 78 Veja-se art. 37, caput, da Constituição da República.

79 Mostra-se relevante observar que a Administração Pública está inserida na estrutura constitucional no

âmbito da Organização do Estado e não, por exemplo, no Título I, que trata dos princípios fundamentais, ou ainda do Título II, que trata dos direitos e garantias fundamentais.

União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” obedecerá, além de outros princípios contidos no próprio caput e de outras regras constantes nos incisos que o seguem, ao princípio de impessoalidade.

Logo se nota que o princípio em questão é aplicável com exclusividade à Administração Pública. Por conseguinte, integra os princípios do Direito Administrativo.

Segundo Cármen Lúcia Antunes Rocha80, a Constituição da República de 1988 “inovou o tratamento do tema referente à Administração e consolidou a sua constitucionalização, estabelecendo a principiologia que domina, desde então, o seu regime jurídico.

A opção constitucional brasileira obedece, em parte, a uma tendência verificada, geralmente, qual seja, a de erigir em matéria constitucional a disciplina da Administração Pública em seus princípios, e, em outra parte, a uma necessidade de o Estado brasileiro, pouco afeito, especialmente no desempenho daquela atividade, circunscrever-se, na prática, ao Direito”.

Esta afirmação da atual ministra do Supremo Tribunal Federal de que a Administração Pública brasileira era pouco afeita ao Direito se mostra em sintonia com a inserção, em sua principiologia, além dos consagrados princípios de legalidade e de moralidade, do incipiente princípio de impessoalidade.

Este novel princípio se amolda perfeitamente aos predicados que nossa República passou a adotar com o advento da Constituição de 1988, conforme anotou a professora mineira. Ou seja, “retrata uma República a se realizar segundo padrões voltados ao próximo século e que: a) não se realiza num estado que detém apenas um centro de poder, pois a sociedade passou a formar, em seu seio e fora do governo, centros de poder a se coordenarem com aquele e que buscam a participação na gestão da coisa pública, de maneira direita e permanente; b) domina-se pelo fundamento da legitimidade, que se assenta numa ética firmada e afirmada socialmente, sendo insuficiente, para esta sociedade política que hoje busca ser atendida pelo Estado Democrático de Direito, a legalidade sem o fundamento material de sua validade; c) a atividade administrativa é essencial para que os fundamentos ideológico-jurídicos sejam atendidos e os seus fins sejam realizados; d) o Estado Democrático Social não se enquadra no paradigma de uma Administração Pública abúlica, aética e afastada do público, e o Direito que preside o desempenho desta atividade deve se reportar às novas propostas e perspectivas da sociedade participativa, atuante e

80 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da administração pública. Belo Horizonte:

responsável pelas suas coisas; e) não apenas as atividades administrativas a serem desenvolvidas pelo Estado contemporâneo aumentaram, traduzindo a nova realidade socioeconômica e política que se tem no mundo desde o final da Segunda Guerra Mundial, mas, principalmente, tais desempenhos se modificaram em seu conteúdo, em seus fins e em sua forma de prestação”81.

Em sentido semelhante, quanto ao tratamento constitucional à

Administração Pública, Gustavo Binenbojm82, acrescentando que “o tratamento

constitucional de aspectos da Administração Pública foi inaugurado nas Constituições espanhola e portuguesa”, anota que a Constituição desce “a minúcias que exibem uma feição coorporativa muito mais nítida que qualquer preocupação garantística”, mas também “trouxe alguns avanços, como a enunciação expressa de princípios setoriais do direito administrativo”, dentre eles o de impessoalidade, que “a tensão entre a eficiência e legitimidade democrática é uma das questões centrais da Administração Pública na atualidade”.

Nota-se, na verdade, que a nova ordem constitucional pretende mudar o modo de agir da Administração Pública, e não há dúvida de que o princípio de impessoalidade é um dos elementos relevantes desta mudança. É, de fato, antes de tudo uma decisão política, uma inversão do ponto de observação à semelhança do que se tem lido em textos de Direito Administrativo referente à revolução copernicana83.

Utilizando da realidade advinda das três faces da Administração espanhola citada Alejandro Nieto poder-se dizer que o novel princípio é mecanismo auspicioso de instrumentalização da Administração Pública para o exercício do poder – em sua dimensão administrativa – que contribuirá para a desfiguração de suas três faces.

81 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da administração pública. , Belo Horizonte:

Del Rey, 1994. p. 65. Anote-se que a Cármen Lúcia Antunes Rocha chega a denominar o princípio de impessoalidade e o de publicidade, como princípios-garantia (p. 66).

82 Idem, ibidem, 526-527.

83 Norberto Bobbio observa que “Não é verdade que uma revolução radical só possa ocorrer necessariamente

de modo revolucionário. Pode ocorrer também gradativamente. Falo aqui de revolução copernicana precisamente no sentido kantiano, como inversão do ponto de observação” (BOBBIO, Norberto. A era dos

direitos. Carlos Nelson Coutinho (Trad.) e apresentação de Celso Lafer. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p.

2.5.1. A Administração Pública como um dos integrantes da relação política.

Como bem observa Norberto Bobbio84, a “relação política por excelência é a relação entre governantes e governados, entre quem tem o poder de obrigar com suas decisões os membros do grupo e os que estão submetidos a essas decisões”. Esta relação, contudo, pode ser vista tanto sob o ângulo dos governantes, quanto sob o ângulo dos governados.

O professor italiano informa que no curso do pensamento político predominou durante séculos o ângulo dos governantes; “o objeto da política foi sempre o governo, o bom governo ou o mau governo, ou como se conquista o poder e como ele é exercido, quais são as funções dos magistrados, quais são os poderes atribuídos ao governo e como se distinguem e interagem entre si, como se fazem as leis para que sejam respeitadas, como se declaram as guerras e se pactua a paz, como se nomeiam os ministros e os embaixadores. Basta pensar nas grandes metáforas mediante as quais, ao longo dos séculos, buscou-se tornar compreensível a natureza da arte da política: o pastor, o timoneiro, o condutor, o tecelão, o médico. Todas se referem a atividades típicas do governante: a função de guia, da qual deve dispor para poder conduzir à sua própria meta os indivíduos que lhe são confiados, tem necessidade de meios de comando; ou a organização de um universo fracionado necessita de uma mão firme para ser estável ou sólida; os cuidados devem por vezes ser enérgicos para terem eficácia sobre um corpo doente”.

Com o advento da Constituição 1988, esta relação mudou o enfoque, seu ponto de observação é outro.

A nova ordem constitucional reposicionou o ser humano nesta relação política, colocando-o no centro de suas atenções e deu início àquilo que se poderia chamar de revolução antropológica agora sobre o enfoque do administrado85.

Esta revolução, contudo, parece, segundo alguns autores86, conflitar com outra realidade relativa à gênese do brasileiro. E isso tudo a ponto de se cogitar que esta

84 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Carlos Nelson Coutinho (Trad.) e apresentação de Celso Lafer. Rio

de Janeiro: Elsevier, 2004. pp. 74-75.

85 O termo administrado é utilizado como aglutinador de toda a sociedade que inevitavelmente mantém

relação com a Administração Pública. Longe de conotar a ideia de súditos ou de expressões afins, visa a sintetizar um dos integrantes (em sua forma individual ou coletiva) da relação político-jurídico estabelecida com a Administração Pública.

86 Irene Patrícia Nohara observa que “Concordamos, portanto, com Jasson Hibner Amaral quando diz que a

falta de efetividade do princípio de impessoalidade deve-se muito mais a um problema cultural do que propriamente técnico. É claro que o reconhecimento e a punição das situações em que há violação da

realidade tupiniquim pudesse ser a causa da “falta de efetividade” do princípio de impessoalidade. Como se certa natureza de agir própria do brasileiro, dependente exclusivamente de uma vontade íntima, pudesse dar ou não efetividade ao princípio.

A despeito de entendimentos contrários, não parece que a questão de efetividade do princípio de impessoalidade seja de natureza cultural (antropológica). A questão, na verdade, parece ter dupla natureza: de compreensão da (nova) realidade jurídica e de técnica jurídica.

Embora não pareça possível desvincular as raízes remotas do princípio de impessoalidade a elementos de antropologia (relação política entre governantes e governados, experiência monárquica no Brasil, certo descompromisso social com a coisa pública etc.), pode-se dizer que sua “falta de efetividade” parece estar mais relacionada com a equivocada compreensão que se tem tido desta norma constitucional e com a estrutura jurídico-administrativa adotada desde então.