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1.4.3 – A afirmação do castilhismo.

No documento 2008JonasBalbinot (páginas 55-60)

A forma de organização política do Estado do Rio Grande do Sul, que entrou para a historiografia conhecida como castilhismo, tem início quando seu precursor Júlio de Castilhos passa a atuar na linha de frente da política, agindo principalmente como chefe do PRR, e, em alguns momentos como presidente do Estado. A adaptação feita por Júlio de Castilhos da obra de Comte através da carta constitucional ajudou a garantir a manutenção do poder do PRR no Rio Grande do Sul.

O sistema político baseado no positivismo, enfrenta fortes oposições no final do século XIX e primeiros anos do século XX, quando durante o segundo governo de Borges de Medeiros ocorre a prematura morte de Júlio de Castilhos, em 24 de outubro de 1903. Inicia-se um processo de construção mitológica em torno da figura de Júlio de Castilhos, segundo Loiva Félix “[...] mesmo tendo morrido extremamente jovem – 43 anos – e tendo ficado pouco tempo a frente do executivo gaúcho, passou a história como patriarca e

mentor de todo o republicanismo.”112 . Essa construção da figura do “patriarca” é iniciada para manter viva sua memória, mas principalmente para consolidar o sistema político criado por ele, e manter esta estrutura política que foi a base do republicanismo por mais de três décadas, além de efetivar no poder o seu sucessor Borges de Medeiros.

Nelson Boeira deixa claro em sua análise que a morte de Júlio de Castilhos, em 1903, inicia um novo período na história do positivismo no Rio Grande do Sul: “Essa nova etapa, que se prolonga até 1915, corresponde à efetiva difusão do positivismo – na versão castilhista, bem entendido – na sociedade rio-grandense.” Para Nelson Boeira a partir de 1904, ocorre uma “burocratização acelerada do PRR” sendo que este processo tem como segmento marcante, que se sobrepõe aos outros, “a criação de uma tradição doutrinária assentada no legado de Castilhos.”113

A construção de um herói, de um mito, é essencial para a manutenção da crença em um sistema de governo. É importante entendermos que o herói, é construído muitas vezes pela necessidade de afirmação e manutenção de regimes recém criados, conforme José Murilo de Carvalho:

Heróis são símbolos poderosos, encarnações de idéias e aspirações, pontos de referência, fulcros de identificação coletiva [...] instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes políticos. Não há regime que não promova o culto de seus heróis e não possua seu panteão cívico.114

A afirmação de um herói se dá na formação em torno desta figura, de uma dominação carismática, ou seja, o herói passa a ser um ser superior aos outros mortais, adquirindo grande confiança em torno de sua personalidade. Max Weber explicita a dominação carismática:

Debe entenderse por “carisma” la cualidad que pasa por extraordinaria (condicionada mágicamente en su origen, lo mismo si se trata de profetas que de hechiceros, árbitros, jefes de cacería o caudillos militares), de una personalidad, por cuya virtud se la considera en posesión de fuerzas sobrenaturales o

112 FELIX, Loiva Otero. A fabricação do carisma: a construção mítico-heróica na memória republicana gaúcha. In: FELIX, Loiva Otero; ELMIR, Claudio P. Mitos e Heróis: construção de imaginários. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1998. p.141.

113 BOEIRA, op.cit. p.40.

114 CARVALHO, José Murilo de. A formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.55.

sobrehumanas – o por lo menos específicamente extracotidianas y no asequibles a cualquier otro - , como enviado del dios, o como ejemplar y, en consecuencia, como jefe, caudillo, guía o líder.115

Seguindo nesta linha explicativa citamos Loiva Félix que vem corroborar com a afirmação acima:

A transmutação do real, embutida no processo de heroicização e mitificação, tem seu momento oportuno especialmente em situações de crise histórica conjuntural. Nos momentos de ruptura do ritmo histórico da continuidade e da normalidade, o grupo social tende a necessitar de um novo tutor, de um novo guia que possa construir em torno de si um imaginário político que permita a compreensão da inteligibilidade histórica perdida, exercendo assim uma ‘função explicativa, fornecendo certo número de chaves para a compreensão do presente.116

A construção de um mito de um herói para a afirmação de um sistema político, é feita principalmente em momento de crise, ou seja, quando o sistema está sendo colocado em discussão por seus adversários, e no caso do republicanismo, por muitos de seus adeptos que se tornaram dissidentes e combatentes do sistema político.

A constituição de um herói é necessária para a legitimação da identidade de um determinado grupo. Esse herói estabelecido torna possível a ligação da comunidade presente com o seu passado. Portanto essa construção condiciona as pessoas a seguirem este herói buscando se aproximar de suas qualidades e seus feitos, mas sabendo que:

O cidadão, que não pode ser feito à imagem e semelhança de Castilhos – porque, como herói republicano é especial, está acima do comum dos homens – deve-se espelhar nele que, enquanto líder idolatrado, encarna as virtudes e valores sociais; símbolo e modelo a ser seguido.117

Para melhor entendermos, a força da construção mítica em torno de Júlio de Castilhos, e o poder que esta passa a exercer, expomos aqui o pensamento de Pierre Bourdieu, em sua obra O Poder Simbólico. O autor deixa claro que o poder é uma construção simbólica, onde há uma relação entre quem detêm o poder e quem sofre a ação

115 WEBER, op.cit. p.193. 116 FÉLIX, op.cit. p.141. 117 Id. p.149.

do poder, ambos podem ou não saber que estão exercendo um poder. Assim, “o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.”118 O poder simbólico é construído através de um jogo de representações e de simbologia, em torno de determinada pessoa ou instituições. Cria-se uma aureola de poder em torno deste. Após efetivada esta construção o poder tem a força da ação apenas pela coação psicológica ou moral, não precisando do uso da força ou de outros métodos.

O poder simbólico com poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.119

A construção do mito em torno de Júlio de Castilhos é feita principalmente na imprensa do período, sobretudo no veículo oficial do PRR, o jornal A Federação, mas também em jornais republicanos locais. Segundo Loiva Félix, já em 26 de outubro, dois dias depois da morte de Castilhos A Federação publica o editorial com o título “O Grande Morto” tendo frases de efeito conforme a autora cita:

Frases como: “Sim, vivamos d’Elle, de seu passado, de seu nome”, ou “A veneração do Rio Grande, dos republicanos [...] não se limitará as manifestações platônicas do sentimento”, nos mostram a veneração religiosa que começa a processar-se.

Ao não mencionar o nome e referir-se a Ele (em Maiúscula), propicia a imediata e inconsciente associação com um ser distante e superior, mas que nutrirá a vida (Vivamos d’Ele). Por outro lado, esta veneração tem caráter mobilizador para a ação: não deve ser platônica.120

A imprensa segue por dias a publicar longos artigos de vários pontos do Estado e do País venerando a figura do “Ilustre Patriarca”. Um ano mais tarde, em 1904, o jornal segue suas homenagens ao “Grande Morto”, chegando a 1905, quando além de toda a movimentação na imprensa ocorre uma romaria ao túmulo de Júlio de Castilhos, recebendo

118 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. p.7-8. 119 Id. p.14.

próceres republicanos vindo de todos os recantos do Estado, e inicia o processo de afirmação do sucessor de Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros. Loiva Félix expõe sobre o ano de 1905:

Este ano traz dois aspectos como reforço: a questão do sucessor e o ritual da romaria. Ressalta a presença marcante de Borges de Medeiros nas homenagens como sendo o legítimo e ‘eminente sucessor’ do grande chefe. Lembremos que este reforço é necessário neste momento e ainda nos anos seguintes, pois estamos assistindo à conjuntura da crise política de 1904-1907.121

A partir de sua morte a imprensa não esquece em nenhum momento de ressaltar os valores imensuráveis do “Grande Patriarca” Júlio de Castilhos. Em alguns momentos, como em período de eleição, a memória de Castilhos e re-visitada ainda com mais argúcia, buscando principalmente alcançar dividendos políticos. “Em 1915, ano eleitoral, crítico para a sustentação política de Borges de Medeiros, foram priorizados no discurso duas dimensões míticas: a do herdeiro e a da unidade.”122

Em 1922 na última eleição disputada por Borges de Medeiros, a imprensa continua seu processo de heroicização de Júlio de Castilhos a fim de manter a coesão republicana, a força de Júlio de Castilhos é transmitida a seu seguidor. “Novamente foi lançada a candidatura de Borges de Medeiros à presidência do Estado e, como que para se abençoada por Castilhos, o foi na véspera da comemoração de sua morte”123

Castilhos teve seu carisma ‘fabricado’ pela necessidade histórica de uma minoria apresentar-se como maioria, de legitimar e justificar uma identidade e, com isto, oferece um componente histórico significativo para o entendimento das reações sócio-históricas em largo período do processo republicano rio- grandense marcando a associação da figura heroicizada e mitificada de Júlio de Castilhos à memória republicana gaúcha.124

O processo de mitificação de Júlio de Castilhos ajudou a organizar um poder hegemônico, pela constante repetição das qualidades e das forças do “Grande Patriarca”, afirmou-se um herdeiro, Borges de Medeiros, que assumiu seu poder simbólico

121 Id. p.151-152. 122 Id. p.156. 123 Id. p.158. 124 Id. p.159.

constituindo-se diante do governo por um largo período de tempo. E também afirmou-se uma estrutura de governo que denominamos Positivismo Castilhista.

A ação realizada a fim de assegurar a figura de Júlio Castilhos como “patriarca” e acima de tudo para consolidar a política castilhista, constrói um Estado com bases autoritárias. Segundo Ricardo Veléz Rodrigues “O caráter tutelar e hegemônico do Estado castilhista leva os representantes desta corrente a rejeitar todo tipo de governo representativo como essencialmente anárquico.”125 Assim baseado na luta contra o liberalismo o Positivista Castilhismo manteve-se no Rio Grande do Sul por toda a república velha, ao lado de Borges de Medeiros que recebeu a unção de Júlio de Castilhos e baseado nisso pode se manter no poder.

No documento 2008JonasBalbinot (páginas 55-60)