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Como pode o homem sentir-se a si mesmo, quando o mundo some?

Carlos Drummond de Andrade

Em 1934, Andrei Zdanov, principal encarregado das questões culturais no Estado soviético, participou da solenidade de abertura do I Congresso de Escritores Soviéticos. Em seu discurso, ele (s/d) criticou a decadência e a corrupção da literatura modernista burguesa (que, para ele, emanavam da degenerescência do regime capitalista); ressaltou os heróis da literatura soviética; definiu o realismo socialista, pautado no romantismo revolucionário, como o método fundamental da literatura e crítica literária; e ratificou a afirmação de Stalin de que os escritores são “engenheiros de almas”.

Ao contrário da concepção zdanovista, Lukács se manteve próximo da posição de Engels a partir da qual “[...] a ideologia não é critério para avaliar a qualidade estética de uma obra e que, pode existir uma boa literatura, apesar de uma ideologia detestável como o monarquismo de Balzac” (LUKÁCS, 1999, p. 102). Dessa afirmação, Lukács extraiu um desdobramento: “[...] uma boa ideologia pode gerar uma má literatura” (LUKÁCS, 1999, p. 102).

A dissonância entre arte e ideologia permitiu a Lukács elaborar muitas de suas reflexões estéticas. Em Realismo crítico hoje, Lukács (1991, p. 27) se opõe à crença de que só a vanguarda modernista tem valor propriamente literário e que o realismo socialista representa a superação do realismo crítico burguês.

Para ele, a oposição fundamental não é entre realismo socialista e realismo crítico, mas entre realismo crítico e vanguarda. No pensamento lukácsiano, isso envolve a crítica severa ao realismo socialista durante o período stalinista que desenvolveu características tão problemáticas quanto às da vanguarda (cf. LUKÁCS, 1991, p. 169-195). A oposição delineada por Lukács entre duas vertentes no próprio interior da literatura burguesa indica que a polêmica essencial é entre realismo e anti-realismo. Por sua vez, essa polêmica permite vislumbrar a aliança entre realistas críticos e os melhores realistas socialistas que não incorreram nos erros advindos da tendência naturalista-romântica do zdanovismo.

A referência básica tomada por Lukács nessas proposições é a de “concepção de mundo”. O termo indica reagrupamentos de forças políticas que perpassam tanto a burguesia quanto o proletariado, ou seja, uma colaboração militante entre socialistas e burgueses que ele observa, por exemplo, nos Movimentos de Paz que se seguiram a 2ª Guerra Mundial70. Ao mesmo tempo em que esses movimentos põem de lado algumas diferenças de opiniões e crenças devido a uma forma imediata de considerar o mundo, de reagir na prática, eles implicam a tomada de posição em termos amplos de concepção de mundo e convergem na afirmação do poder da razão e na responsabilidade do indivíduo:

Como seria possível, por exemplo, militar de forma concreta e eficiente, para a conservação da paz, se não se professasse firmemente que a razão, duma maneira ou de outra, pode impor o seu poder através do próprio desenrolar da história, e que a ação humana (não apenas a de grandes massas, mas também a decisão de cada indiv íduo) pode influenciar, de alguma maneira o curso dos acontecimentos etc.? (LUKÁCS, 1991, p. 29).

Essa convergência deve ser tratada, de acordo com Lukács, com muita prudência e reserva, pois representa uma tendência geral, muito suscetível de variações e cuja oposição não possui uma estabilidade rigorosa.

Na visão lukacsiana, a vanguarda modernista representa a decadência cultural não porque seja burguesa, mas devido à concepção de mundo que sustenta. Para Lukács, na oposição entre realismo crítico e a vanguarda, configura-se uma oposição entre concepções de mundo diferenciadas. Nesse sentido, “O problema posto por uma literatura de vanguarda diz respeito, portanto, a uma concepção do mundo no sentido que definimos, isto é, a uma tomada de posição fundamental em relação à realidade efetiva” (LUKÁCS, 1991, p. 43).

Visto sob esse ângulo e sem entrar nos pormenores do debate eminentemente literário e nas polêmicas avaliações artísticas feitas por Lukács71,

70 Essa atitude de Lukács representa um prolongamento de sua proposição de uma “Frente Popular”

ampla entre as forças progressistas pre sente nas Teses de Blum (COUTINHO, 1991, p. 9).

71 Mesmos intelectuais partidários das proposições de Lukács consideram problemáticas suas

avaliações de obras literárias. Sem abandonar a concepção estética geral de Lukács, Coutinho (2005, 1991) questiona a posição do mestre em relação a Kafka e Proust (conferir também KONDER; COUTINHO, 2002a, 2002b). Já Konder (2005) desafia a teoria lukacsiana ao utilizá-la na análise da poesia de Fernando Pessoa: se toda grande arte é realista como dizia o filósofo húngaro, Fernando Pessoa como um grande artista é, para Konder, um realista, mesmo que não o seja no sentido que Balzac o era.

pergunto-me em que medida os termos gerais da sua crítica à vanguarda podem ser uma fonte para analisar a agenda pós-moderna. Sem a intenção de esgotar o assunto, mas sim de abrir caminhos de exploração desta questão, ouso destacar alguns pontos.

Assim como a literatura vanguardista, a agenda pós-moderna trabalha com uma concepção abstrata de ser humano. A passagem das coletividades sociais para uma massa de átomos individuais, ou seja, a atomização do social sugerida por Lyotard (2000) indica isso: os vínculos sociais são locais e temporários e os indivíduos são átomos que se encontram na encruzilhada de vários jogos de linguagem. A relação com os outros indivíduos aparece como subsidiária e contingente; a solidão assume o status ontológico da condição humana, assim como ocorre, segundo Lukács, na vanguarda modernista.

Ao contrário de uma literatura realista crítica que, ao criar figuras típicas, condensa dialeticamente, naquilo que é mais íntimo e singular da personalidade do herói romanesco, as possibilidades e contradições da objetividade histórica, a literatura de vanguarda e a “agenda pós” acolhem “[...] a tendência para substituir o tipo concreto por uma particularidade abstrata” (LUKÁCS, 1991, p. 71) e ficam presas à “aparência fenomênica singular” (LUKÁCS, 1991, p. 174). Isso ocorre mesmo em tendências culturalistas da “agenda pós”. Supostamente o sujeito “culturalizado” possui raízes concretas, mas esse determinismo local transforma as manifestações culturais de cada comunidade naquilo que Lukács denomina particulares abstratos (carentes de determinações).

A concepção de um mundo despedaçado (ou atomizado) associa-se à visão de um ser que se esgota em uma singularidade vazia: um sujeito abstrato cujo interior é esvaziado da substância histórica e social e, desta forma, esfacelado em fragmentos. Por isso, para Lukács (1991, p.46),

[...] dissolução do homem e dissolução do mundo pertencem ambas ao mesmo sistema, ampliam-se e reforçam-se mutuamente. Na base, encontramos sempre a mes ma concepção do homem: um ser desprovido de qualquer unidade objetiva, simples seqüência incoerente de fragmentos instantâneos, extraídos de experiências vividas que são, por definição, tão impenetráveis para o indiv íduo que as vive como para os outros homens.

Devido à recusa vanguardista em distinguir o decisivo e o episódico, o essencial e o não-essencial, a tarefa de descrever esses fragmentos e pormenores da existência pode sucumbir à estilização da forma e ao naturalismo (LUKÁCS, 1991, p. 57) e, assim, permanecer colada ao imediato sem qualquer recuo crítico (LUKÁCS, 1991, p. 83, p. 120). Na agenda pós-moderna, também se encontra essa tendência ao formalismo, por mais que possa assumir nuanças diferenciadas. Segundo Baudrillard (1996, p. 139), “Idéias toda a gente tem, e mais do que é preciso. O que conta é a singularidade poética da análise. Só isso pode justificar escrever, e não a miserável objectividade crítica das idéias”.

Por sua vez, o relativismo das infinitas descrições da realidade de comunidades ou grupos sociais, defendida por Rorty (1994), beira um estilo literário naturalista, não no sentido de admitir a existência dessa realidade, mas sim por se recusar a selecionar e a definir qualidades e aspectos dessa realidade que são mais essenciais (ou não) que outros. No fundo, como Rorty admite (1994, p. 353), “[...] o modo como as coisas são ditas é mais importante do que a posse de verdades”.

Quando o sujeito é visto em pedaços, a temporalidade ganha uma outra conotação: o tempo é o tempo dessa existência fragmentada e, portanto, é apenas uma cadeia descontínua de instantes. A ausência de historicidade, indicada por Lukács na literatura de vanguarda, e o enfraquecimento do sentimento histórico, apontado por Jameson (2002) quanto ao pós-moderno, entrelaçam-se estreitamente.

Porém, a subjetivização do tempo é apenas um momento de um processo maior para o qual Lukács chama atenção: o esfacelamento da objetividade social e o sentido de irrealidade inerente ao corte esquizofrênico da personalidade permitem a subjetivização da própria realidade. A dissolução do mundo é, portanto, “[...] a dissolução da forma objetiva em elementos subjetivos” (LUKÁCS, 1991, p. 44).

O desprezo pela realidade objetiva acende a sensação de que os sujeitos têm diante de si infinitas possibilidades, tantas quantas são capazes de imaginar. Nessa confusão entre possibilidades concretas e abstratas, há um sentimento constante de repugnância melancólica pelo presente, pois nem todas as possibilidades concebidas pelo sujeito se efetivam. Longe de admitir que a projeção de possibilidades não se confrontou com as tendências objetivas da realidade, o caminho mais fácil para explicar esse fato é considerar que a condição humana nunca se deixa explicar, é sempre um incógnito (LUKÁCS, 1991, p. 48).

A questão posta por Lukács à vanguarda (e aqui a estendo à agenda pós- moderna) diz respeito à inteligibilidade da vida: “[...] o realismo pressupõe a possibilidade – ou, pelo menos a esperança – de uma vida que, mesmo no interior do mundo burguês, tenha um mínimo de significação; a arte de vanguarda suprime estas perspectivas” (LUKÁCS, 1991, p. 108).

O problema da inteligibilidade da vida não pode ser visto per se; ele diz respeito à atitude do ser humano no mundo. Na agenda pós-moderna, esse é um tema delicado, pois envolve um leque amplo de variações: desde a renúncia de ideais de emancipação e autonomia (cf. BAUDRILLARD, 1996), a defesa de utopia liberal (cf. RORTY, 1989), até uma resistência a partir de mini-racionalidades (cf. SANTOS, 1999, p. 102-111). Como observa Lukács (1991, p. 126) quanto à vanguarda, trata-se de saber se

[...] o homem concebe-se a si próprio como uma v ítima desar mada de poderes transcendentes, incognoscíveis ou invencíveis, ou antes como membro ativo de uma comunidade humana, no seio da qual lhe cabe desempenhar o seu papel, mais ou menos eficaz, mas que, à sua maneira, influencia sempre o destino da humanidade?

Para Lukács, o protesto vanguardista contra o presente tende à fuga para o patológico (no qual a condição ontológica do sujeito é definida como esquizofrênica e angustiante). Por seu caráter abstrato, esse protesto orienta-se para o vazio e nada pode opor de concreto, visto que “[...] o movimento que se afasta da realidade existente reduz-se aqui a um movimento interior no seio da subjetividade” (LUKÁCS, 1991, p. 51). No fundo, segundo ele, essa saída representa a apologia da degradação humana. Mas enquanto, na literatura de vanguarda, isso leva ao estado permanente de caos e angústia (definido como inerente ao humano), na agenda pós-moderna, elas são motivo de euforia e júbilo (JAMESON, 2002, p. 54).

Quando fala de uma literatura ou arte decadente, Lukács empreende o esforço de localizar e explicar aquilo que ele considera ser a característica fundamental das correntes reacionárias no âmbito cultural do capitalismo em que vivia: o anti-realismo. A seu ver, longe de trazer, por meios artísticos, a dinâmica, as contradições, as potencialidades e a complexidade do real para a obra de arte, a vanguarda não faz mais que deformar esse real a partir de uma ontologia abstrata de ser humano. Nesse sentido, há paralelismos entre o anti-realismo da vanguarda e o anti-realismo da agenda pós-moderna.

Em Realismo crítico hoje, Lukács delineia as afinidades do naturalismo com o praticismo e o empiricismo (LUKÁCS, 1991, p. 174) e as aproximações da decadência da vanguarda com a filosofia irracionalista (LUKÁCS, 1991, p. 47, p. 100). Como observa Coutinho (1991, p. 16-17), nos anos subseqüentes a esse livro de Lukács:

Por um lado, a novíssima vanguarda – abandonando, de acordo com o “espírito da época”, as velhas formas irracionalistas para assumir como visão do mundo um neopositivis mo covarde e dissimulador da essência do real – prosseguiria a sua tarefa de transformar e m “condição humana”, em fetiches imutáveis, os novos problemas ligados ao capitalis mo de consumo: a manipulação que transforma os homens em coisas é convertida em destino inexorável e fatal [...].

Na tentativa de perseguir outros elementos das reflexões lukacsianas que possam inspirar a análise da agenda pós-moderna, sigo as indicações de Coutinho (1991) e me concentro, nos próximos itens, na forma como Lukács tratou o irracionalismo moderno e o neopositivismo.