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Como exposto, Heidegger entende que a retração de si é constituinte do Ereignis. Por essa razão, ele afirma: “Do Ereignis enquanto tal faz parte a Enteignis, o não-acontecer desapropriador” (HEIDEGGER, 1991e, p. 218).

O acontecer que desapropria a verdade do Ser é, para Heidegger, a metafísica. O dirigir-se para a verdade do ente em detrimento da verdade do Ser – antes um problema restrito apenas à metafísica tradicional – torna-se, a partir dos cursos sobre Nietzsche, um atributo inerente a toda metafísica. Ainda entendida como filosofia, Heidegger assegura que a metafísica pergunta pelo ser do ente, mas, no mesmo momento em que coloca essa questão, esquece o Ser: “A história do ser

94 Para Heidegger (2001c, p. 230), o homem existe como estado de abertura: “O homem, que existe

como abertura, é sempre abertura para a interpelação da presença de algo”.

95 Segundo Heidegger (2001c, p. 147), “Mas como o homem só pode ser homem compreendendo o

ser, isto é, estando na abertura do ser, o ser homem como tal é assinalado pelo fato de ele mesmo ser esta abertura à sua maneira”.

começa [...] com o esquecimento do ser” (HEIDEGGER, 1962, p. 237). Esse esquecimento perdura ao longo de sua história e se traduz na primazia do ente e no abandono do Ser à indeterminação.

Em Heidegger, a metafísica não é a doutrina de um pensador, nem decorre de um erro ou de uma falha humana; ela concerne ao próprio Ser: “[...] a metafísica se torna decisiva como evento da história do Ser [...]” (HEIDEGGER, 1975, p. 82)96.

Na acepção heideggeriana, em seu começo, a história do Ser abre-se como physis, como o emergir de si. A metafísica se desenvolve quando, ao se colocar a diferença entre Ser e ente, o Ser se dá a formulação de presença, entendida, neste momento, não mais como Dasein ou existência, mas como o ente presente, duradouro e permanente (ousia, em grego). Daí a expressão “metafísica da presença” para indicar o voltar-se para o ente vigente, constante e permanente, e não para a vigência como tal, ou seja, para o que permite o vigorar do vigente – o Ser.

A origem da metafísica reside no tratamento da diferença ontológica em termos de distinção entre essência (o que é) e existência (que é). Mas, argumenta Heidegger, essa origem permanece, para a própria metafísica, inacessível, oculta, esquecida. A metafísica ignora sua origem, pois a toma como natural e óbvia (HEIDEGGER, 1975, p. 8):

Todos os eventos na história do Ser que é metafísica têm o seu começo e seu fundamento no fato de que a metafísica deixa e deve deixar indeter minada a essência do Ser e, em favor de salvar sua própria essência, permanece desde o início indiferente ao que é digno de questionar e perdura, de fato, na indiferença de não-saber (HEIDEGGER, 1975, p. 56).

Ao se entregar à entidade, o Ser recolhe sua verdade ao ocultamento que, por sua vez, é oculto (HEIDEGGER, 1975, p. 79). A diferença entre Ser e ente permanece impensada. Desta forma, o impensado é o esquecimento da diferença, o seu velamento (HEIDEGGER, 1991f, p, 153). Assim, a metafísica representa o desdobrar histórico do Ser em direção à entidade. Como explica Heidegger (1975, p. 81),

A progressão do Ser à entidade é aquela história do Ser – chamada metaf ísica – que permanece tão essencialmente remota da Orige m tanto no seu começo como no seu fim. Assim, a própria metaf ísica, isto é, aquele pensamento do Ser que teve que se dar o nome de “filosofia” – também nunca pode trazer a história do Ser mes mo, ou seja, a Origem, à luz de sua essência.

Diante dessa posição, mesmo o heideggeriano Caputo (1993, p. 112) admite que seu mestre construiu uma “[...] gigantesca meta-narrativa sobre a marcha do Ser através da História”.

Segundo Heidegger, nas sucessivas destinações que o Ser se concede, ele se libera por uma retração em várias épocas e assume nomes diversos (idéia, substância, cogito, vontade de poder etc.). Essas épocas se encobrem de forma a ocultar a destinação do Ser como presença, como o que se mantém permanente e duradouro (HEIDEGGER, 1991e, p. 209).

Dentre os vários aspectos constitutivos da metafísica delineados por Heidegger a partir dos cursos sobre Nietzsche, destaco os seguintes:

• O traço fundamental da metafísica, segundo Heidegger, é sua constituição “onto-teo-lógica”. A metafísica pensa o ser do ente tanto em termos gerais como no todo. Isso significa que “Pensa a metafísica o ente no que respeita seu fundamento, comum a cada ente enquanto tal, ela é lógica como onto- lógica. Pensa a metafísica o ente enquanto tal no todo, quer dizer, no que respeita o supremo (que é o) ente que a tudo fundamenta, ela é lógica como teo-lógica” (HEIDEGGER, 1991f, p. 160-161). Para Heidegger, além de explicar o ser do ente por um fundamento comum a todos os entes, a metafísica dá a esse fundamento o caráter de causação primeira, ente supremo acima de todos os entes, o divino.

• Para Heidegger, a metafísica é “humanística” e qualquer humanismo é metafísico97. Heidegger avalia que todos os humanismos se voltam para o ente e não põem como questão a relação do Ser com o ser humano, apenas supõem uma essência humana universal: o ser humano como animal racional. Ao fazerem isso, supervalorizam o papel do ser humano e se esquecem de que “A história do ser sustenta e determina cada condition et situation humaine” (HEIDEGGER, 1991b, p. 2). Segundo Heidegger, o que é

próprio do ser humano lhe escapa, pois ele é lançado na existência pelo Ser. Para ele, isso escapa completamente à metafísica:

A metafísica fecha-se à simples noção essencial de que o home m somente desdobra o seu ser na sua essência, enquanto recebe o apelo do ser. Somente na intimidade deste apelo, já “tem” ele encontrado sempre aquilo em que mora a sua essência. Somente deste morar “possui” ele “linguagem” como a habitação que preserva o ex-stático para sua essência. O estar postado na clareira do ser é o que eu chamo a ex-sistência do homem. Este modo de ser só é próprio do homem ( HEIDEGGER, 1991b, p. 10).

• Em 1935, pela primeira vez, Heidegger (1999a, p. 224) faz referência ao niilismo: “Ocupar-se e afanar-se tão só do ente, eis o Niilismo”. Em seus estudos sobre Nietzsche, Heidegger desenvolve esse tema entrelaçado à metafísica. Se o nada do niilismo diz respeito à desapropriação do Ser mesmo e de sua verdade, então, para ele, “[...] a metafísica é, em sua essência, niilismo” (HEIDEGGER, 1962, p. 238). O nada do niilismo é o nada que se passa com o Ser, ou seja, ele não chega à luz de sua própria essência, sua verdade permanece oculta. Mas isso se deve ao próprio Ser que se subtrai em sua verdade. Para Heidegger (1962, p. 200), a metafísica é “o espaço histórico” para a essência e o acontecimento do niilismo. O niilismo é um movimento histórico cuja essência repousa na metafísica: “A metafísica é uma época da história do ser mesmo. Porém, na sua essência, a metafísica é niilismo” (HEIDEGGER, 1962, p. 239).

Em Heidegger, a época moderna constitui a realização da história do Ocidente. Nesta era, a metafísica ganha algumas novas feições. A verdade transmuta-se em certeza: certeza de si e certeza do que é conhecido. A certeza é, para Heidegger (1962, p. 216), a figura moderna da verdade. A metafísica moderna busca o indubitavelmente certo: “A metafísica da Modernidade começa e tem sua essência no fato de que busca o incondicionalmente indubitável, o certo, a certeza” (HEIDEGGER, 1962, p. 215). Segundo Heidegger (1975, p. 23), ela diz respeito à precisão do pensamento representacional. A garantia dessa mudança está na posição determinante do sujeito que representa um mundo objetivo. Heidegger declara que, na época moderna, o mundo é concebido como imagem, isto é, busca- se o Ser na representação do ente.

Para Heidegger, a essência da metafísica moderna (e de toda metafísica) caminha para o seu fim com a filosofia de Nietzsche98. Enquanto para o neopositivismo, o sentido de fim era eliminação e rejeição, para Heidegger (2000, p. 58), fim é acabamento ou consumação (Vollendung). O que é consumar? Segundo Heidegger (2000, p. 27), não significa plenificação (Vollkommenheit), mas sim a “realização da essência”. Casanova observa em nota de tradução ao livro de Heidegger (2000, p. 184), “O acabamento dá-se através do surgimento da última configuração de uma determinada instância e a plenificação propicia inversamente a abertura para o despontar de um novo começo”. No caso da metafísica, a consumação da sua essência está em rejeitar a verdade do Ser quando pergunta pelo Ser, ou seja, ela essencializa a in-essência do Ser. Por isso, no acabamento da metafísica, há a “inserção da inessência mais extrema na essência” (HEIDEGGER, 2000, p. 58). A consumação da metafísica implica a “retração mais extrema da verdade do ser” (HEIDEGGER, 2000, p. 275).

Heidegger observa que a filosofia nietzscheana traduz a metafísica em sua consumação. Na leitura heideggeriana, Nietzsche inverteu a metafísica. Ao combater o platonismo, Nietzsche teria dado primazia ao sensível em relação ao supra- sensível, ao mundo das idéias e dos valores supremos. A frase nietzscheana “deus está morto” manifestaria, segundo Heidegger, esse movimento no qual os valores supremos decaem e a nova instauração de valores se abre. No entanto, esse caminho adotado pela filosofia nietzscheana é, em Heidegger (1962, p. 197), “[...] uma implicação sem saída dentro da metafísica [...]”. Segundo Heidegger, a vontade de poder como essência do ente nada mais indica do que a vontade incondicionada, de querer-se a si mesmo e assegurar a si o domínio absoluto do ente.

Disso resultam dois aspectos para os quais Heidegger chama a atenção. Um deles aponta que a filosofia nietzscheana empreende “uma humanização total do Ser” (HEIDEGGER, 1975, p. 47). Nesse sentido, com Nietzsche, consuma-se a moderna metafísica da subjetividade (HEIDEGGER, 1962, p. 216). Com a metafísica moderna, toda a metafísica aproxima-se da sua consumação e se torna mais antropocêntrica. No fim da metafísica, a filosofia é, para Heidegger (2001b, p. 75), antropologia. Desta forma, na filosofia heideggeriana, Nietzsche representa o acabamento da metafísica (e não a sua plenificação) por intensificar o niilismo;

98 Não se pretende aqui discutir e avaliar a interpretação heideggeriana de Nietzsche, mas examinar o

porque ainda fica preso à metafísica, não há, na filosofia de Nietzsche, o movimento de superação.

Com a consumação da metafísica moderna, Heidegger considera que se instaura o solo ontológico para o domínio da técnica. A técnica moderna eleva a noção de ser humano com poderes para o domínio absoluto do planeta. Segundo Heidegger, a técnica é a realização metafísica na era moderna, é a metafísica consumada, pois configura a essência do mundo moderno e modula como os entes se apresentam nessa época. A consumação da metafísica expõe a realização de sua verdade entregue ao cálculo, à mecanização e à cibernética. Assim, Heidegger deixa de lado qualquer discussão econômica e científica e declara que a tecnologia que ameaça o mundo baseia-se na metafísica. A tecnologia moderna é resultado da história do Ser: “Enquanto uma forma da verdade, a técnica funda-se na história da Metafísica” (HEIDEGGER, 1991b, p. 24).

A conclusão dessa discussão leva Heidegger a defender que a suposta superação da metafísica pretendida por Nietzsche é, na verdade, a sua consumação, é metafísica da metafísica, é vigência do esquecimento do Ser.

A linha mestra dessa análise é um impasse que Heidegger não levantara até então: a metafísica (núcleo central do pensar filosófico) não se autocompreende. Portanto, tentar compreendê-la é estar em uma posição não mais metafísica:

Se a Metafísica enquanto tal é o próprio niilis mo, mas este não consegue pensar sua própria essência de acordo com sua essência, como é que a Metafísica mesma poderia algum dia tocar sua própria essência? As representações metafísicas da Metafísica per manece m necessariamente por trás dessa essência. A metafísica da Metafísica nunca alcança a sua essência (HEIDEGGER, 2000, p. 232).

Neste momento, a metafísica não se encontra mais contraposta à ciência; pelo contrário, assim como a ciência, ela se dirige para a verdade do ente: “‘A ciência’ enquanto o apoio da metafísica criado pela metafísica mesma (do tipo do questionamento que parte do ente e retorna a ele)” (HEIDEGGER, 2000, p. 151). Desta forma, para Heidegger (1991f), a diferença ontológica é inacessível para a metafísica enquanto metafísica. Portanto, na perspectiva heideggeriana, para compreender a metafísica, é preciso estar fora dela. Trata-se, aqui, não mais de refundar a metafísica, mas de estar fora do seu horizonte.

Se a transferência de ênfase da analítica existencial para a história do Ser indica a saída dos impasses e, ao mesmo tempo, o prolongamento de Ser e Tempo, essa mudança na interpretação da metafísica parece designar um movimento diferente. Há aqui um verdadeiro salto na filosofia heideggeriana: a proposição pronunciada na preleção de 1929 da filosofia como “[...] o pôr em marcha a metafísica, na qual a filosofia toma consciência de si e conquista seus temas expressos” (HEIDEGGER, 1991a, p. 44) perde sentido. Neste novo contexto dos cursos sobre Nietzsche, a metafísica (ou seja, a filosofia) se transforma em ciência objetiva dos entes que despreza as conjunturas epocais nas quais eles se apresentam e determina o Ser em termos de presença.

A concepção de fim da metafísica é o requisito primordial para o desenvolvimento da idéia de “superação da metafísica”. Mas, neste ponto, surgem várias dúvidas: se a metafísica é um evento do Ser, qual o sentido de se falar em sua superação? Trata-se de uma mudança na história do Ser ou implica um deslize da filosofia heideggeriana à chamada “metafísica da subjetividade”? Se ocultar-se é constitutivo do Ereignis, como falar em superar a metafísica? Isso não envolveria a descaracterização do Ereignis enquanto desvelar e retrair?

Por sua vez, essas questões exegéticas se vinculam a um problema de ordem geral. Até 1935, Heidegger objetivava adentrar na metafísica e na ontologia contra posições cientificistas e gnosiológicas. No ano seguinte, ele passa a abraçar a expressão “superação da metafísica” usada por Carnap, seu oponente neopositivista, em uma investida contra o seu pensamento99. Como explicar isso?

2.3 SUPERAÇÃO DA METAFÍSICA: OS PERCALÇOS DA ADOÇÃO DO TERMO