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Em A destruição da razão, Lukács (1972) caracteriza o irracionalismo moderno como a corrente fundamental e decisiva na filosofia do século XIX e da primeira metade do XX ou daquilo que ele chama, baseado em Lênin, a fase imperialista do capitalismo.

Em vários pontos, a caracterização de Lukács sobre o irracionalismo permite a compreensão de características da atual agenda pós-moderna, a começar pela aura política de sua origem. Ao responder a condições específicas determinadas pelo modo de produção capitalista, o irracionalismo nasceu, segundo ele, “[...] da grande crise econômico-social, política e ideológica que marca a passagem do século XVIII ao XIX. O acontecimento decisivo em torno do qual giram os aspectos fundamentais desta crise é, naturalmente, a Revolução Francesa” (LUKÁCS, 1972, p. 103).

Em reação à Revolução Francesa, o irracionalismo assumiu inicialmente a defesa da restauração feudal em uma perspectiva reacionário-romântica e se mostrou hostil à idéia de progresso tanto da dialética idealista burguesa como da

dialética materialista. Mais tarde, essa luta pelo retorno da ordem feudal foi substituída pela luta contra o proletariado. A agenda pós-moderna atualiza essa herança e, como visto, responde, de modo conservador, às reestruturações do capitalismo a partir da segunda metade do século XX.

Assim como o irracionalismo, a agenda pós-moderna apresenta-se como um fenômeno internacional que, em muitos casos, sustenta um espírito anticientífico “abertamente contra a razão” (LUKÁCS, 1972, p. 86), a despeito do domínio e da conquista da natureza pelas ciências naturais e pela técnica que ocorrem.

A esse desprezo pela razão tout court que se pode observar em parcela da “agenda pós”, vinculam-se também outras características do irracionalismo moderno: a aversão à objetividade e a negação da sua cognoscibilidade racional. Desprendidos da responsabilidade de dizer algo sobre o mundo objetivo, intelectuais pós-modernos prolongam uma tendência já presente nos primeiros irracionalistas: “O conhecimento do mundo vai convertendo-se aqui, cada vez mais marcadamente, em uma interpretação do mundo progressivamente arbitrária” (LUKÁCS, 1972, p. 70).

Para Lukács (1972, p. 79), essa tendência decorre da discrepância existente entre o mundo e a sua representação que, por sua vez, envolve inevitavelmente colisões entre pensamento e ser. O irracionalismo detém o pensamento, converte essas colisões em absolutos, em limites do conhecimento em geral, pois acredita que essa “[...] necessária e insuperável, mas sempre relativa discrepância entre a imagem mental e o original objetivo” (LUKÁCS, 1972, p. 79) nada mais é senão o fracasso do pensamento humano ante a realidade. Mesmo limites relativos do conhecimento que, se enfrentados, podem impulsionar o pensamento ao seu desenvolvimento, são visto dentro dessa ótica “[...] de tal modo que converte o problema mesmo em solução, proclamando a suposta impossibilidade de princípio de resolver o problema como uma forma superior de compreender o mundo” (LUKÁCS, 1972, p. 83). Desta forma, esse suposto fracasso constitutivo da razão humana é elevado à condição de virtude.

Segundo Lukács, o irracionalismo abriu o caminho, no terreno filosófico, para a ideologia nacional-socialista. Como se sabe, o declínio do neokantismo após a 1ª Guerra Mundial foi muito influenciado pela atmosfera de mal-estar que avassalou o mundo e abalou ideais racionais e científicos depois dessa experiência e que assumiu feições agravantes na Alemanha, pela sua posição de derrotada e pelas condições do Tratado de Versalhes. Essa situação entrelaçou-se a um conjunto

turbulento de outros acontecimentos: a petição de armistício, a proclamação da República Alemã em Weimar no final de 1918, a resistência de tropas alemãs em território estrangeiro contra qualquer tratado de paz, o movimento socialista em Berlim e a reação violenta contra ele e o terror deixado pela repressão à República Soviética de Munique.

A ideologia nacional-socialista catalisou esse clima de desespero e pessimismo através da mobilização de muitos elementos que já compunham o imaginário nacionalista de parcela da população alemã72 e que recrudesceram ao longo desses eventos: a figura do líder73, a imagem da Alemanha como Reich, a defesa de traços românticos e reacionários em reação à filosofia representada pelos ideais iluministas, o retorno a tradições místicas, entre outros. Lukács atenta que também se revigorou a idéia que foi peculiar à “via Prussiana” do desenvolvimento capitalista: a unidade nacional vista como um presente dos poderes irracionais, místicos, um destino e não uma conquista, fato que indicaria a suposta superioridade da trajetória alemã em relação a outros países. Ao conservar formas autoritárias feudais (não-racionais), acreditava-se que a Alemanha poderia resolver os problemas que os Estados ocidentais, guiados por uma orientação racional, não conseguiam (LUKÁCS, 1972, p. 51).

Para Lukács (1972, p. 72), em termos filosóficos, o nazismo foi a culminação desse longo processo de aniquilamento da razão que teve como solo propício o irracionalismo. Com isso, o autor não sugere uma relação direta entre irracionalismo e fascismo, pois, se por um lado, o aparecimento de filosofias irracionalistas já traz implicitamente, pelo menos no plano da possibilidade, uma ideologia fascista e reacionária, por outro, “Quando, onde e como esta possibilidade – aparentemente inocente – chega a converter-se em uma pavorosa realidade fascista, a filosofia não pode dizer” (LUKÁCS, 1972, p. 27).

72 Como explica Hamilton (1971, p. 94), o nacionalismo alemão “[…] dirigiu-se contra a liberdade,

igualdade, fraternidade e o racionalismo dos filósofos franceses. Ele se desenvolveu, na primeira década do século XIX, como uma reação contra os exércitos napoleônicos que invadiram o território alemão – e o que esse s exércitos representavam eram os ‘direitos do homem’. O objetivo dos nacionalistas alemães era desapossar o invasor, purificar a Alemanha das influências estrangeiras (particularmente da ideologia introduzida pelos franceses) e restaurar as antigas tradições alemãs”.

73 A esperança por um Führer tinha como solo fértil a disseminação do desespero unida à credulidade

em milagres, como explica Lukács (1972, p. 70): “[...] por mais desesperadora que seja a situação, logo surgirá – pensa-se – um ‘gênio ungido pela divindade’ (um Bismarck, um Guilherme, um Hitler) que se encarregue, com sua ‘intuição criadora’ de buscar a solução de todos os problemas”.

Desta forma, Lukács defende uma tese importante da não-existência de filosofias inocentes. Para tanto, recorre à distinção entre a intencionalidade do filósofo e o conteúdo objetivo de sua filosofia74:

Tampouco na filosofia se julgam as intenções, mas sim os feitos, a expressão objetivada dos pensamentos e a sua ação historicamente necessária. Cada pensador é, nesse sentido, responsável perante a história pelo conteúdo objetivo de sua filosofia, independentemente dos desígnios subjetivos que a animam (LUKÁCS, 1972, p. 4).

Diante das considerações de Lukács, a questão imediata que se apresenta é: seria legítimo estabelecer algum tipo de aproximação entre a agenda pós-moderna e o fascismo? Caso sim, que tipo de aproximação seria esta? Pode-se falar de uma identificação? Isso não significaria aviltar ou mesmo deformar a opção política de muitos intelectuais dessa agenda que estão distantes de qualquer defesa do fascismo ou identificação com ele? Neste ponto, é necessário desacelerar qualquer ímpeto de resposta e buscar outros subsídios reflexivos que evitem conclusões apressadas.

Wolin (2004) trilha um caminho semelhante a Lukács quando estabelece a linhagem filosófica entre a tradição contra-iluminista e o fascismo. A partir dessa constatação, ele sugere que há um “romance intelectual” entre o que chama pós- modernismo e o fascismo, devido à incorporação de elementos contra-iluministas pelos pós-modernos. Assim, como citado no capítulo anterior, o prospecto alemão antidemocrático dos anos 1930 tem, segundo Wolin, um retorno sinistro, porque ocorre atualmente sob o auspício não das alas de direita, mas sim da esquerda acadêmica.

Contudo, como esse autor assevera, a sua intenção não é a de examinar o nexo entre o pós-moderno e o fascismo e estabelecer uma “culpa por associação”. Trata-se, em suas palavras, de apontar uma grande incoerência dos pós-modernos:

Que pós-modernistas confiem, involuntariamente, em argumentos e posições desenvolvidas por proponentes do Contra-Iluminis mo não significa que eles sejam conservadores, muito menos reacionários. [...] No entanto, essa confiança sugere que seu ponto de partida é confuso, que a disjunção entre o seu radicalismo epistemológico e

74 Esse procedimento de Lukács é análogo à distinção, em termos estéticos, entre intenções

conscientes do artista e objetivos expresso s na sua obra de arte. Sobre esse assunto, cf. Lukács (1991, p. 36-37).

suas preferências políticas (supostamente “progressistas”, embora com freqüência difíceis de detectar) resulta em uma incoerência fundamental (WOLIN, 2004, p. 13-14).

Neste sentido, quanto à agenda pós-moderna, talvez seja mais apropriado recorrer àquilo que Lukács usou para descrever tanto a sua passagem do neokantismo para o hegelianismo em seu livro A teoria do romance, quanto para evidenciar sua crítica à filosofia sartreana: os pós-modernos aglutinam uma “ética de esquerda” a uma “epistemologia de direita”, ou seja, uma ética progressista a uma exegese convencional da realidade. Para ele, a base sócio-filosófica de tal inclinação é o anticapitalismo romântico.

Novamente, Lukács convida a pensar o quanto a objetivação do pensamento filosófico, muitas vezes, não obedece às intenções dos seus autores, assim como ocorre no âmbito literário. Mas aqui um novo cuidado deve ser tomado: a ética de esquerda que se encontra no Lukács d’A teoria do romance é norteada pela noção de revolução, mesmo que inclinado à cambiante atitude política e filosófica do anticapitalismo romântico.

Com o término da Segunda Guerra e a derrota de Hitler, a ética de esquerda diluiu-se e cedeu lugar a uma forma de “conformismo disfarçado de não- conformismo” (LUKÁCS, 2000, p. 18). Ao contrário do que alega Wolin, trata-se de uma posição conservadora assumida pela esquerda em sua migração para o campo da direita política.

É muito mais nesse sentido que se pode falar da fusão de uma “ética de esquerda” e uma “epistemologia de direita” pela atual “agenda pós”, pois aqui não se deve esquecer de que essa agenda surge quando grande parte da esquerda política abandona essa tradição e reorganiza o seu espaço e seus objetivos de luta diante das recomposições do capitalismo na segunda metade do século XX, como explicitado no capítulo anterior75.

75 Richard Rorty é o caso extremo do argumento apresentado, mas em um duplo sentido. Por um

lado, sua filosofia possui fortes matizes contra-iluministas, a despeito de sua formação acadêmica e familiar a partir da esquerda norte-americana (cf. RORTY, 2000a), de sua discussão de temas e polêmicas da esquerda do seu país (cf. RORTY, 2000b) e da descrição de sua utopia liberal como pertencente à esquerda reformista (cf. RORTY, 2001). Por outro, sua inclusão na esquerda ou mesmo a apropriação de seu pensamento por intelectuais de esquerda em outros países levantam questões sobre o que significa ser de esquerda atualmente, tendo em vista, p. ex., sua defesa da Guerra Fria e seu apoio à invasão de Kosovo pelas tropas norte-americanas e seus aliados. Por mais correta que seja a observação de Domingues (2000) quanto às peculiaridades da esquerda nos EUA em relação a outros lugares, não se deve pensar o problema apenas como um caso peculiar desse

Imediatamente após o término da 2ª Guerra Mundial, Lukács (1991) afirmou que o existencialismo representava, naquele momento, o cume da filosofia burguesa irracionalista. Isso também é apontado em A destruição da razão. Porém, no epílogo (de 1959) e, principalmente, no posfácio (de 1953) dessa última obra, Lukács já registra mutações nas formas de irracionalismo do pós-guerra.

Com as mudanças econômicas e políticas no período que segue a 2ª Guerra, Lukács chama a atenção para o fato de que a apologia do capitalismo deixava de ser indireta, como fazia o fascismo pela suposta proposição da “terceira via” entre o capitalismo e o socialismo; a ideologia democrática do pós-guerra passou a usar a apologia direta que, aparentemente, abandona a filosofia irracionalista, como ele explica:

A defesa atual – diretamente apologética – do capitalismo renuncia aparentemente ao mito e ao irracionalis mo. Quanto à forma, ao modo de exposição e ao estilo, encontramo-nos aqui com uma linha de argumentação puramente conceitual e científica. Contudo, somente aparentemente. O conteúdo da construção conceitual é, na realidade, a pura ausência de conceitos, a construção de concatenações inexistentes e a negação das leis reais, a obstinação [el aferramiento] às concatenações aparentes reveladas diretamente (isto é, à margem dos conceitos) pela superfície imediata da realidade econômica. Estamos, portanto, ante a uma nova forma de irracionalis mo, envolvido em uma roupagem aparentemente racional (LUKÁCS, 1972, p. 628).

Portanto, Lukács afirma que, no pós-guerra, momento de transmutação da apologia do capitalismo a sua forma direta, a filosofia predominante não é o irracionalismo alemão, mas um novo tipo de irracionalismo, agora procedente de Mach e Avenarius e que ele denominou de “machista pragmático” (LUKÁCS, 1972, p. 630). No epílogo d’A destruição da razão, sem espaço para aprofundar o tema, ele (1972, p. 630) menciona as correntes que compõem essa variante: a semântica dos Estados Unidos, o neomachismo de Wittgenstein e Carnap e o pragmatismo de Dewey.

Somente anos mais tarde, em Ontologia do ser social, Lukács (s/d a) pôde identificar o neopositivismo como a filosofia dominante que substituiu as velhas formas irracionalistas (isso não o fez abandonar a crítica deste último). Por mais que país, mas como um exemplar dos rumos e da maleabilidade de parcela da esquerda ocidental a partir da segunda metade do século XX que, mesmo após se realocar no âmbito da direita política, pretende se afirmar como de esquerda.

possua alguns elementos em comum com o velho irracionalismo, o neopositivismo assume traços peculiares de uma nova fase do capitalismo em que a dinâmica de manipulação se dissemina para outros âmbitos para além do econômico e a ciência deixa de ser um objeto do desenvolvimento social no sentido de uma manipulação generalizada, mas passa a participar, aperfeiçoar e difundir, generalizadamente, essa manipulação. Em Lukács, o neopositivismo aparece como “o avalista filosófico do reino da manipulação” (TERTULIAN, 1996b, p. 57).

À semelhança do que foi feito com as reflexões de Lukács sobre o irracionalismo, interessa agora examinar se algumas de suas análises sobre o neopositivismo podem iluminar facetas da agenda pós-moderna, especialmente aquela que não aniquila a razão tout court, mas a fragmenta e a plasma ao imediato. Esse é o tema do próximo item. Mas aqui não cabe dúvida: trata-se de uma nova versão da “destruição da razão”.