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12. Que amei eu, miserável, em ti, ó meu furto, crime noturno dos meus dezesseis anos? Não tinhas beleza alguma, pois eras um roubo! Mas és realmente alguma coisa, para eu me dirigir a ti? As peras que roubamos, sim, eram belas por serem criaturas vossas, ó mais belo de todos os seres, Criador de tudo, ó Deus tão bom, Deus soberano e meu verdadeiro Bem. Aqueles pomos eram belos; mas não foram esses que a minha alma depravada apeteceu, pois tinha abundância doutros melhores. Colhi-os simplesmente para roubar. Tanto é assim que, depois de colhidos, os lancei fora, banqueteando-me só na iniqüidade com cujo gozo me alegrara. Se algum dos frutos entrou em minha boca, foi o meu crime que lhes deu o sabor.

Agora, Senhor e Deus meu, procuro saber o que me deleitava no furto, e não lhe encontro beleza alguma84. Não falo já da beleza que se encontra na justiça e prudência, na inteligência do homem, na memória, nos sentidos e na vida vegetativa; nem mesmo da

83Cf. Salústio, Cat. 16. (N. do T.)

84Admirem-se nesta e noutras passagens "as análises interiores, estas maravilhas da psicologia" a que se refere Henry de Lubac no livro Catholicisme. (N. do T.)

que resplandece ou nos astros magníficos e brilhantes nas suas órbitas ou na terra e mar, cheios de espécies que, nascendo, sucedem às que morrem; nem tampouco desta defeituosa sombra de formosura com que os vícios seduzem.

13. O orgulho imita a altura, mas só Vós, meu Deus, sois excelso sobre todas as coisas. Que busca a ambição senão honras e glória, embora só Vós tenhais direito a ser honrado sobre tudo e glorificado eternamente? A sevícia dos poderosos aspira a fazer-se temer; mas quem deve ser temido senão Deus? Quando, onde, até onde e quem pode tirar ou subtrair alguma coisa ao vosso poder? As carícias dos voluptuosos desejam a reciprocidade do amor; mas nada há mais acariciante que a vossa caridade, nem se pode amar nada mais salutar que a vossa verdade, a mais formosa e resplandecente de todas. A curiosidade parece ambicionar o estudo da ciência, quando só Vós é que conheceis plenamente tudo!

Até a própria ignorância e estultícia se encobrem sob o nome de simplicidade e de inocência. Mas nada se encontra mais simples do que Vós. Quem há mais inocente do que Vós, pois são as próprias obras que prejudicam os pecadores? À preguiça parece apetecer apenas o descanso; mas que repouso seguro há fora do Senhor? A luxúria deseja apelidar- se saciedade e abundância; Vós, porém, sois a plenitude e a abundância interminável da suavidade incorruptível. A prodigalidade cobre-se com a sombra da liberalidade; mas o mais magnânimo dispensador de todos os bens sois Vós. A avareza quer possuir muito; e Vós possuis tudo. A inveja litiga acerca da "excelência"; mas que ser há mais excelente que Vós? A ira procura a vingança; e quem se vinga mais justamente que Vós? O temor, enquanto vigia pela segurança das coisas que ama, detesta os acontecimentos insólitos e inesperados que lhes sejam adversos; porém, que há de insólito para Vós? Que há de inesperado? Quem separa de Vós o que amais? E onde encontrar a firme segurança senão em Vós? A tristeza definha-se com a perda dos bens em que a cobiça se deleita — porque desejaria que nada, como a Vós, se lhe pudesse tirar.

14. É assim que a alma peca, quando se aparta e busca fora de Vós o que não pode encontrar puro e transparente, a não ser regressando a Vós de novo. Imitam-Vos perversamente todos os que se afastam de Vós e contra Vós se levantam. Ainda assim,

imitando-Vos deste modo, mostram que sois o Criador de toda a natureza, e que, por conseguinte, não há lugar para onde nos possamos afastar totalmente de Vós85.

Que amei, portanto, naquele roubo e em que imitei o meu Senhor, ainda mesmo criminosa e perversamente? Tive ao menos o gosto de lutar pela fraude contra a vossa lei, já que o não podia pela força, a fim de imitar, sendo cativo, uma falsa liberdade, praticando impunemente, por uma tenebrosa semelhança de onipotência, o que me não era lícito? Eis-me "aquele escravo que. fugindo a seu senhor, seguiu uma sombra!86" Ó podridão, ó monstro da vida e abismo da morte! Como pode agradar-me o ilícito sem outro motivo que o de me ser proibido?

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O perdão

15. "Como agradecerei ao Senhor87" o ter-se a minha memória recordado destes fatos e a minha alma não ter sentido temor? Amar-Vos-ei, Senhor, dar-Vos-ei graças e confessarei o vosso nome, porque me perdoastes ações tão más e tão indignas. Atribuo à vossa graça e à vossa misericórdia o terdes-me dissolvido, como gelo, os pecados. À vossa graça devo também o ter fugido do mal que não pratiquei. Oh ! de que não era eu capaz, se até amei, sem recompensa, o pecado? !

Confesso que tudo me foi perdoado: o mal que de livre vontade cometi e o que não pratiquei graças à vossa ajuda. Que homem há que. refletindo na sua enfermidade, ouse atribuir às próprias forças a sua castidade e inocência para Vos amar menos, como se lhe fosse pouco necessária a misericórdia com que perdoastes os pecados aos que se voltam para Vós? Aquele que, a vosso convite, seguiu o chamamento e evitou as faltas — que agora lê em mim, quando as recordo e confesso — não se ria de eu ter sido curado da minha doença por Aquele médico. Por Ele foi-lhe concedido não cair na mesma doença, ou antes, fez com que enfermasse com menos gravidade. Por conseguinte, ame-Vos ele outro tanto. Mas que digo eu? ame-Vos ainda mais, por me ver a mim livre de tão grande enfermidade, graças Àquele por quem, do mesmo modo, se vê desenredado de tão grande languidez de pecados.

85Santo Agostinho desenvolve concretamente a tese filosófica de que a atividade consciente ou inconsciente dos seres imita a Ação do Ser. O gênio Hiponense descreveu a analogia entre o Ser e os seres sob o aspecto de atividade ou dinamismo. Com este os seres pretendem valorizar-se e manifestar a sua natureza ínfima. No pecado o homem imita perversamente a atividade de Deus. (N. do T.)

86Jó, 7, 2. 87Sl 115, 12.

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