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10. Durante cerca de nove anos, em que o meu pensamento errante escutava a doutrina maniqueísta, ansiosamente esperava a vinda de Fausto. Se por acaso encontrava alguns dos sequazes de Manes, sentiam-se embaraçados com as minhas objeções acerca daqueles problemas. Mas asseguravam-me que, quando viesse Fausto, facilmente me resolveria numa simples conversa todas estas dificuldades, e ainda outras mais intrincadas que lhe propusesse.

Logo que ele chegou, notei que era homem amável, aliciante na conversa, e que expunha dum modo mais agradável os mesmos assuntos que os outros maniqueístas costumam tratar. Mas como é que esse copeiro tão elegante, que me servia por copos preciosos, me podia matar a sede? Já estava saciado de ouvir semelhantes teorias. Nem estas me pareciam melhores pelo fato de serem propostas em linguagem mais cuidada, nem a eloqüência fazia com que eu as tivesse como verdadeiras, nem o considerava como sábio por ser de rosto esbelto e palavreado colorido. Aqueles que mo tinham elogiado não

eram bons apreciadores, pois tinham-no como prudente e sábio pelo fato de os deleitar com a sua eloqüência.

Conheci outra espécie de pessoas que tinham a verdade como suspeita e não se lhe queriam render, se lhes fosse proposta em estilo copioso e elegante. Vós, porém, meu Deus, já me tínheis ensinado de modos admiráveis e ocultos ! Creio o que Vós me ensinastes, porque é verdade, e só Vós sois o Mestre da Verdade em qualquer parte e de qualquer lugar que ela brilhe. Já tinha aprendido de Vós que não devemos ter qualquer coisa como verdadeira pelo fato de ser dita eloqüentemente, nem como falsa, por ser expressa em linguagem rude. Pelo contrário, não a devemos julgar verdadeira por ser enunciada dum modo inculto, nem falsa por ser proposta em estilo elegante.

A sabedoria e a ignorância são como os alimentos úteis ou nocivos. Podem-nos ser apresentados com palavras polidas ou com rudeza de forma, como os bons e maus alimentos nos podem ser servidos em pratos finos ou grosseiros.

11. A avidez com que durante tanto tempo esperei Fausto deleitava-se enfim no ardor e sentimento com que ele discutia, nos termos apropriados e na facilidade com que lhe ocorriam as palavras para adornar a frase. Gostava pois de o ouvir. Louvava-o e engrandecia-o como muitos outros, e ainda mais do que eles. Tinha pena de não me ser permitido, naquela reunião de ouvintes, propor-lhe dificuldades e compartilhar com ele os cuidados dos meus problemas, conferindo familiarmente, escutando e respondendo às suas palavras.

Por isso, logo que se me ofereceu oportunidade, comecei com meus amigos a entrevistá-lo, numa ocasião em que não nos era indecoroso discutir. Expus-lhe algumas dúvidas das que me preocupavam. Notei que das artes liberais apenas sabia a gramática, e, ainda esta, de modo nada extraordinário. Porque ele tinha lido alguns discursos de Cícero, pouquíssimos tratados de Sêneca, alguns trechos de poetas e os poucos livros da seita elegantemente escritos em latim, e, além disso, porque se exercitava cotidianamente na oratória, tinha adquirido esta facilidade de falar, que o bom emprego do seu talento e certa graça natural tornavam mais agradável e sedutora.

Senhor e Deus meu, árbitro da minha consciência, não é, porventura, verdadeiro o que Vos relato? Eis o meu coração e a minha memória diante de Vós, que já então me trazíeis no segredo oculto da vossa Providência! Já então púnheis os meus pecados vergonhosos diante da minha face, para que os visse e detestasse!

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O desiludido

12. Logo que transpareceu com suficiente clareza a imperícia de Fausto nestas ciências em que o julgava eminente, comecei a desesperar da sua capacidade para me esclarecer e desfazer as dificuldades que embaraçavam meu espírito. Poderia ele perfeitamente, com a ignorância daquelas questões, possuir a verdadeira piedade, contanto que não fosse maniqueísta.

Os livros desta seita, na verdade, estão recheados de intermináveis fábulas, acerca do céu, dos astros, do Sol e da Lua. Já não esperava que me pudesse explicar argutamente aquelas teorias, como eu ardentemente desejava, comparando-as com os cálculos astronômicos, que eu em outras partes lera, a ver se era preferível a solução que os livros maniqueístas davam ou se, pelo menos, apresentavam igual explicação. Quando lhe propus essas dificuldades para serem discutidas, desculpou-se modestamente, sem ousar tomar sobre si tal encargo. Reconhecera a sua ignorância no assunto e não se ruborizou de a confessar. Não pertencia à classe dos palradores que eu muitas vezes suportava e que, esforçando-se por me elucidar naqueles problemas, nada me diziam. Este homem tinha coração, e, se não era reto para Vós, era ao menos cauteloso para consigo mesmo.

Não era inteiramente imperito na sua imperícia, e, portanto, não quis ser enredado nestas disputas temerárias, donde não teria saída alguma nem retirada fácil. Por isso se tornou mais simpático aos meus olhos, porque a modéstia da alma que confessa sua incapacidade é mais bela que as coisas que eu desejava aprender. Com esta sua disposição de ânimo o encontrava em todas as questões mais difíceis e sutis.

13. Resfriado assim o ardor com que me aplicava às doutrinas dos maniqueístas, desesperei ainda mais dos seus restantes mestres, depois que este, tão célebre, se revelou incapaz de resolver os numerosos problemas que me embaraçavam. Comecei a tratar com ele por causa da paixão que o inflamava pela literatura, que eu, como retórico, já então ensinava aos jovens de Cartago. Lia com ele, ou aquilo que ele desejava ouvir ou o que eu julgava conveniente ao seu espírito. Quanto ao mais, todo o esforço que determinadamente me impusera a fim de progredir nesta seita ruiu por completo logo que conheci aquele homem, mas não de tal forma que dos maniqueístas me separasse radicalmente. Com efeito, não encontrando outro caminho melhor que aquele por onde

desesperadamente me lançara, resolvera contentar-me entretanto com ele, até que brilhasse outra via de preferível escolha.

Deste modo, aquele Fausto, que tinha sido para muitos outros um "laço mortal177", começara involuntária e inconscientemente a afrouxar aquele com que eu fora capturado. As vossas mãos, meu Deus, ocultas nos segredos da vossa Providência, não abandonavam minha alma. Noite e dia, minha mãe Vos oferecia por mim, em sacrifício, o sangue do seu coração transformado em lágrimas. Vós procedestes comigo "de modo admirável178". Fostes Vós, meu Deus, quem dispôs deste modo as coisas, pois o "Senhor é quem dirige os passos do homem e lhe inspira o seu caminho179". Quem nos salvaria senão a vossa mão, restauradora da obra que fizestes?

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