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Parte I: Atrás das Telas de Computador

8. A Alternativa Armada

No México foram recorrentes as revoltas violentas. Após a Revolução Mexicana, a cristiada (revolta dos cristãos) foi um movimento pelas liberdades políticas e religiosas e anti-agrarista que, entre 1927 e 1940, chegou a mobilizar dezenas de milhares de combatentes camponeses em vários estados e a contar com o apoio da Igreja e latifundiários. Tradicionalmente considerado um movimento reacionário, o seu caráter popular se explica em parte pela existência de camponeses ligados a grandes propriedades e que eram prejudicados pela reforma agrária. Bartra (1985) procura balancear essa interpretação frisando as lutas pelas liberdades política e religiosa. O combate a esse movimento também teve o seu lado popular, pois chegaram a participar grupos camponeses agraristas que mantinham as suas armas desde a Revolução. Vale dizer que uma das tarefas para a consolidação do regime pós-revolucionário era a de desarmar os camponeses agraristas, o que ainda nos anos 30 chegou a implicar choques violentos com o Estado. Entre 1942 e 43, houve os grupos armados de Magdalena Contreras e dos irmãos Barreto, ligados ao direitista José Inclan e ao Partido Nacionalista, que tinha um projeto insurrecional. Os irmãos Barreto, em particular, tinham ligações com o candidato perdedor ao governo de Morelos. Desde os anos quarenta atuava no estado de Morelos a guerrilha de Rubén Jaramillo, de raízes zapatistas e resultado da radicalização dos camponeses das plantações de cana diante de casos de fraude eleitoral e repressão, e que durante o governo de Adolfo López Mateos (1958-1964) depôs as armas, foi anistiada e em seguida teve o seu líder assassinado. Outra insurreição, abortada, foi a de Celestino Gazca, um general aposentado que havia apoiado Henríquez Guzmán, membro da “família revolucionária”, candidato à presidência em 1946 e 1952 e com quem haviam se juntado políticos cardenistas afastados do poder. Na segunda eleição, Henríquez afirmou que em caso de fraude encabeçaria a tomada do poder pela força. Foi derrotado com uma diferença ao menos aumentada pela fraude costumeira das eleições mexicanas, mas não cumpriu com a sua palavra e sua frente política se desmobilizou. No entanto, uma fração encabeçada por Gazca começou a preparar uma insurreição, com um programa que já não tinha conotações agraristas, mas que se opunha ao autoritarismo e à corrupção. Em 1961, a repressão ao movimento

poucos dias antes da data marcada levou a choques violentos em vários estados (Bartra, 1985: 31,36-57, 73, 85-91; Montemayor, 1997a: 67).

Para Montemayor (1997a: 67-70), a partir de 1965 dezenas de grupos armados se formaram inspirados no êxito da revolução cubana e na tradição agrarista mexicana, com suas filas engrossadas pela repressão ao movimento estudantil e cuja luta alcançou a sua fase mais intensa talvez entre 1971 e 1977. É possível distinguir dois tipos principais desses grupos armados: os que se instalaram e atuaram nos centros urbanos e aqueles das zonas rurais. Os primeiros tinham principalmente quadros juvenis com sólida formação ideológica, e que pelas diferenças de estratégia e concepções políticas nunca conseguiram formar a almejada aliança nacional. Eram movimentos independentes organizados em células, em geral sem inserção nos movimentos populares. No campo, as guerrilhas eram compostas por camponeses aliados com mestiços de origem urbana, havia menos preparação ideológica e tinham um forte apoio popular. Além disso, suas origens remontavam à radicalização de movimentos camponeses que sofriam com a falta de atendimento às demandas agrárias e com a repressão. São deste tipo as duas guerrilhas mais importantes do período, sucessivamente a de Genaro Vásquez Rojas e a de Lucio Cabañas, no mesmo estado de Guerrero. O romance Guerra en el paraíso, de Carlos Montemayor (1997b), e que se propõem a ser uma representação fidedigna da guerrilha de Cabañas, mostra como assaltos e seqüestros (ou “expropriações”) eram realizados para financiar o movimento ou com objetivos políticos, a tática militar de preparar emboscadas contra o exército na serra, uma ideologia pouco fiel aos esquemas marxistas ortodoxos, a presença entre os indígenas mais velhos da memória viva de quando os indígenas da região foram ajudados a se levantar pelo general Zapata, e a cruel repressão militar dirigida especialmente contra as comunidades indígenas até conseguirem matar o líder em 197473. Como veremos a seguir, a classificação de

73 Montemayor tem uma das obras ensaísticas mais respeitadas sobre o EZLN, Chiapas: La rebelión indígena

de México, onde formula com muita beleza a posição que enfatiza os fatores sociais na formação de uma luta

armada: “Os políticos e intelectuais têm conseguido convencer muitos mexicanos de que o guerrilheiro é produto de uma ideologia e não de uma realidade social repressiva e que, por tanto, apenas apareceu em nosso século a partir de uma leitura oportuna ou atrasada (segundo o analista que o impugne ou o elogie) de livros que o radicalizaram ou por manipulações de países estrangeiros.” (...) “A polarização ideológica deste século nos tem levado a esquecer que o guerrilheiro tem sido tradicionalmente camponês, que faz parte ou responde a insurreições indígenas ou camponesas, e que não é proveniente de uma influência ideológica determinada,

Montemayor nos permite definir o grupo que deu origem ao EZLN como sendo do tipo urbano nos anos 70 e que se tornou, nos anos 80, uma combinação do tipo urbano com o tipo rural.

Segundo Tello (1996: 61-65 e 96-100), a organização que daria origem ao EZLN se chamava Fuerzas de Liberación Nacional (FLN), fundada em 6 de agosto de 1969. A maioria dos seus fundadores era de egressos da Universidad de Nuevo León, tinha se agrupado em torno do Instituto Cultural Mexicano Cubano Frey Servando Teresa de Mier-José Martí, evitava a exposição pública que poderia propiciar a participação nas grandes manifestações que sacudiram Monterrey74 no final dos anos 60, e tinha fama de ser “anti-soviéticos e cubanófilos”. Chegaram a participar do Ejército Insurgente Mexicano (EIM) que, formado a partir do massacre de Tlatelolco pelo jornalista Mario Menéndez, do estado de Yucatán, foi dissolvido por ele após uma tentativa frustrada de instalar um grupo guerrilheiro em Chiapas. As FLN se mantiveram afastadas de outros grupos político-militares, pois consideravam que eles mantinham formas de recrutamento muito relaxadas, por discordarem das táticas de assalto e seqüestro, e porque “não possuíam as virtudes que distinguiam, acima de tudo, o movimento dos regiomontanos: a discrição e a paciência” (Tello, 1996: 63). Em 1972, instalaram na Selva Lacandona o Núcleo Guerrillero Emiliano Zapata, num terreno que como disfarce servia para plantar chiles (pimenta). Nele eram realizados treinamentos e, num túnel, práticas de tiro. Alguns meses antes, as FLN tinham sido descobertas por ocasião de um tiroteio com a polícia numa casa em Monterrey, “aparentemente” após terem sido confundidos com narcotraficantes. Dois anos mais tarde, caiu uma casa de segurança das FLN em Monterrey, onde foi presa uma pessoa que levou a polícia à base das FLN que ficava numa granja em Nepantla, ao sul do estado do México. Encontraram arquivos, rádios, armas, fotos, mapas, víveres, remédios e planos de trabalho. Em seguida o exército atacou o núcleo instalado na Selva Lacandona. Os que aí estavam conseguiram fugir do local, mas sem terem relações estabelecidas com as comunidades e com os sacerdotes, em pouco

mas que canaliza, através de uma ideologia dominante no momento, a consciência profunda de insurreição, de liberdade, de dignidade, de que a sua comarca padece ou vive.” (Montemayor, 1997a: 72-74 )

74 Monterrey uma das principais cidades industriais do país e capital do estado de Nuevo León, que fica no

tempo foram todos mortos. O golpe tinha sido muito duro e dirigentes morreram. Mas haviam sobrevivido as redes da cidade do México, de Puebla , Veracruz e a do Sudeste. Muitos saíram da organização, mas ela voltou a crescer no final dos anos 70, “no contexto da revolução centro-americana”75. Foi nessa época que entrou o futuro subcomandante Marcos que, juntamente com outros, chegou a manter relações e a receber treinamentos com sandinistas da Nicarágua. Na virada para os anos 70 teriam também treinado em Cuba, mas perderam esse privilégio com a aproximação do presidente mexicano Luís Echeverría com Fidel Castro.

Uma outra versão, de De La Grange e Rico (1997: 116-138), sustenta que em 1967 o grupo de Monterrey iniciou contatos com Cuba através do consulado do país em Tampico, o que rendeu a criação do Instituto Cultural Mexicano Cubano. O grupo procurava obter o apoio de Cuba, e continuou mantendo contatos com Cuba através da sua embaixada e outras missões diplomáticas, mas este país tardava em oferecer treinamentos, financiamentos e armas, embora não deixasse de alimentar esperanças. Funcionários cubanos os teriam colocado em contato com o Mario Menéndez, do EIM, e “ordenado” a sua incorporação na resistência enquanto se comprometiam a fornecer armas. Foi então que no começo de 1969 entraram em Las Cañadas (vales da Selva Lacandona), perto do povoado de La Trinidad, onde diziam aos indígenas que estavam procurando terras para plantar e faziam trabajo social (consultas médicas, doação de medicamentos) para ganhar a simpatia dos camponeses. A expedição fracassou devido à inexperiência, às dificuldades da selva, à pouca receptividade dos indígenas, e às tensões que surgiram no grupo após a saída de Menéndez para buscar a ajuda prometida pelos cubanos, e que teria sido negada de última hora. Ainda assim, os membros da FLN chegaram a ser treinados em Cuba em 1971 e 1972. No entanto, os responsáveis pela segurança interna do México e de Cuba mantinham estreitas relações, e Cuba mantinha as FLN por perto para que estivessem sob controle. Mario Menéndez era um infiltrado do serviço secreto mexicano, e assim teria se levado a cabo o monitoramento e o posterior desmantelamento das FLN em 1974. Apesar disso, um terceiro grupo das FLN, que já incluía o futuro

75 O autor se refere aí à vitória da Revolução Sandinista na Nicarágua e o avanço das guerrilhas na Guatemala

subcomandante Marcos chegou a treinar em Cuba em 1982. Na Nicarágua, Marcos esteve participando de um curso e realizando oficinas, visitas a comunidades, trabalhos sanitários e de conscientização e até organizou sindicatos, uma cooperativa de café e uma prefeitura em viagens entre 79 e 82, e teria recebido treinamento militar em 198776.

A maioria dos autores considera que os grupos armados mexicanos não podiam contar com o apoio de revolucionários de outros países para iniciar a luta armada no México. O país era considerado uma “retaguarda estratégica”, pois apoiava e dava exílio a militantes de outros países da América Latina. Reconheceu Cuba rapidamente e não participava do embargo econômico imposto à ilha pelos EUA. E enquanto tinha boas relações com a esquerda latino americana, reprimia violentamente os ativistas no país. Janis, por exemplo, conta que quando houve o golpe no Chile os refugiados que chegaram ao México recebiam casa e pensão, enquanto os mexicanos que retornavam eram presos e torturados (Janis, entrevista, Chiapas, 1999). Assim como fazia com os movimentos sociais, o governo mexicano tanto reprimia quanto procurava cooptar ativistas revolucionários. O balanço oficial de desaparecidos entre 1965 e 1975 é de 600 casos. Segundo o Centro de Investigaciones Históricas de los Movimientos Armados (CIHMA), fundado por ex- guerrilheiros, foram 400 desaparecidos apenas em Guerrero, e teriam morrido 3 mil mexicanos em combate ou assassinados entre 1965 e 1975 (De La Grange y Rico, 1997: 111).

região maia que fica exatamente na fronteira com Chiapas.

76 Essa versão, no entanto, deixa mal resolvidas algumas questões. Por que as forças de segurança mexicanas

demoraram tanto tempo para desmantelar as FLN, se já as tinha sob vigilância desde 1969? Por que não foram atacados por ocasião da primeira entrada na Selva? Porque a polícia deixava crescer os grupos armados, e os vigiavam até entrarem em ação, quando eram liquidados. Como deixaram escapar o grupo que treinou em Cuba em 1982? A explicação do autor é que esta geração deixou de contar com a ilha, pois esta havia reduzido o apoio às guerrilhas latino-americanas nos anos 80, e que isso deixou mal informada a polícia mexicana que, além disso, passou a subestimar as FLN. Se forem corretos os dados de Tello, porque após a polícia encontrar uma casa das FLN em 1972 levaria ainda mais dois anos para encontrar as outras instalações? E como após tantos anos de vigilância foi capaz de deixar escapar boa parte da organização? Naturalmente a argumentação da obra é bem mais elaborada, com a citação de várias fontes e a solução de várias “aparentes” contradições, e os dados mais impressionantes não têm a sua fonte citada, o que em conjunto dá uma impressão de artificialidade e lança dúvidas sobre as hipóteses. A precariedade na citação das fontes também vale para Tello, o que é compreensível em sendo correto que todos eles usaram fontes oficiosas.

Em entrevista ao sociólogo Yvon Le Bot, o subcomandante Marcos conta que o núcleo inicial “político-militar” era basicamente de classe média urbana: uma ou duas dúzias de professores universitários, profissionais liberais, quase sem operários e camponeses e sem nenhum indígena. O grupo era marxista-leninista, e muito parecido com outras organizações guerrilheiras no seu perfil militar: considerava que a luta pacífica estava esgotada e que era preciso, por meio de uma guerra popular, instaurar a ditadura do proletariado socialista e depois o comunismo. Como o Estado mexicano era visto como dominado pelo império norte-americano, a transição à democracia e ao socialismo passava pela libertação nacional. E se propunha a montar uma guerrilha em termos parecidos com a teoria do foco, que ao entrar em ação faria uma propaganda armada com vistas a levar outros grupos a optar pela luta armada, até se chegar à guerra popular. No entanto, era prevista uma polarização entre o Estado e o povo que levaria à guerra civil, de maneira que não era o caso de se preparar o começo de uma guerra, mas cabia ao núcleo esperar e ir se preparando para quando a guerra estalasse (Le Bot, 1997: 123-124, 128).

“Em sua análise política, esse grupo adota uma distância necessária com respeito à posição do campo socialista. (...) Todas as organizações armadas da América Central e da América do Sul com as que entramos em contato antes de 94 nos responderam com o mesmo argumento central: a revolução era possível em qualquer parte do mundo, menos no México. O trabalho do México era ser solidário com o resto dos movimentos de libertação do mundo e não fazer nada em nosso país. (...) Essa situação da política exterior mexicana e da política exterior do campo socialista, no que se destacavam a União Soviética e Cuba, que eram os exemplos mais próximos, faz com que essa gente comece a trabalhar uma elaboração teórica, política, independente, muito própria, fazendo recair o peso, sobretudo, na análise da situação nacional e na história do México (...) um marxismo-leninismo mais que teórico, prático, uma análise da situação concreta mais do que um desenvolvimento das teorias marxistas” (Marcos em: Le Bot, 1997: 125-126).

Ainda na opinião de Marcos, que diz não ter vivido essa fase da guerrilha, o isolamento tanto material quanto teórico contribuiu para que se adotasse a estratégia de “acumulação de forças em silêncio”, em que o crescimento militar deveria ser proporcional ao crescimento político, renunciando a formar um “aparato logístico- militar fictício” (mais armas do que gente). E decidiram que os recursos viriam

apenas da sua gente, sem se recorrer a “seqüestros, nem expropriações, nem a recuperações, nem a qualquer tipo de delito”, o que também os afastava das outras guerrilhas. Isso também os deixava mais protegidos dos serviços de inteligência, e com uma estrutura mais “sã” politicamente, ou seja, “muito modesta, pois renuncia a ter grandes aparatos técnicos [armas, etc]” (Le Bot, 1997: 126-129).

“Essa organização – que logo vai se juntar com outras para produzir o que vai ser o EZLN – se propõem já a idéia de muitos níveis de participação e muitas formas de luta. Não era uma organização militar em que alguém estava, e se não estava se convertia em um reformista ou um traidor. Entre estar e não estar havia um grau muito grande de possibilidades e níveis de participação. (...) Ou seja, o limite entre o companheiro e o inimigo não era tão importante como em outras organizações político-militares, nas quais praticamente o que não está comigo é meu inimigo e isso se aplicava inclusive a outras organizações; ou seja, a organização de vanguarda era única e verdadeira, não podiam existir várias organizações de vanguarda. (...) Era uma organização que para ser político- militar, era pouco militar, era muito flexível e isso tinha a ver, me parece, com a sua linha política: como o militar era proposto a longo prazo, se privilegiava o aspecto político. A tomada de decisões, é claro, era militar, mas era muito pouco militarista na sua estrutura. Isto começa a dar uma caráter particular a esta organização, que faz com que creça pouco, que não recorra a ações armadas para obter recursos e nem para se preparar, e que não se proponha seriamente a instalação de um foco vanguardista” (Marcos em: Le Bot, 1997: 130-131)