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A amizade e a parrhesía como possibilidades

Aqui, faz-se importante a pergunta sobre a educação. Qual seria a possibilidade da educação ou de uma educação que escapasse da retórica, da renúncia de si e da submissão ao conhecimento da ciência, como verdade absoluta?

Foucault (2006a) apresentou esta questão e, logo, uma possível resposta: A questão que então se coloca é a seguinte: qual é, pois, a ação do outro que é necessária à constituição do sujeito por ele mesmo? De que modo vem ela inscrever- se como elemento indispensável no cuidado de si? O que é, por assim dizer, esta mão estendida, esta “educação”, que não é uma educação, mas outra coisa ou uma coisa mais que educação? (FOUCAULT, 2006 a, p. 166).

Na escola epicurista, encontramos uma resposta interessante, dada por Filodemo, epicurista que viveu em Roma e escreveu um texto chamado “Parrhesía”.

Filodemo mostra bem que na escola epicurista era imprescindível que cada qual tivesse um hegemón, um guia, um diretor que lhe assegurava a direção individual. Em segundo lugar, esta direção individual era organizada em torno de dois princípios ou a eles devia obedecer. Ela não podia fazer-se sem que houvesse entre os pares, o diretor e o dirigido, uma intensa relação afetiva, uma relação de amizade. E esta direção requeria certa qualidade, na verdade, uma certa “maneira de dizer”, uma certa, digamos assim, “ética da palavra”, que buscarei analisar na próxima aula e que se chama, justamente, parrhesía. Parrhesía é a abertura do coração, é a necessidade, entre os pares, de nada esconder um do outro do que pensam e se falar francamente. (FOUCAULT, 2006 a, p.169, grifos meus).

A amizade e a parrhesía (a fala franca) constituíram elementos fundamentais na educação epicurista. Proponho pensar na possibilidade de hoje nos aproximarmos desses exercícios que os gregos se propunham a fazer, para promover mudanças possíveis na educação de hoje. Quando Foucault fez o seu movimento de volta à cultura grega, encontrou um legado humano e rico, que fez parte de nossa formação enquanto cultura ocidental, mas que foi encoberto e esquecido devido à dominação do modelo da reminiscência do pensamento platônico e da exegese do cristianismo.

A noção de amizade em Sócrates estava ligada à ideia da “amizade amorosa”, em que o amor e Eros estavam presentes entre o discípulo e seu mestre. Em Sêneca36, outro filósofo do período heleno-românico, a amizade era vista como uma estrutura social.

36 (4 a.C.-65d.C.) O romano Sêneca, nascido em Córdoba, Espanha, é conhecido como filósofo estoico e pensador político. Em seus livros faz reflexões sobre a liberdade, a justiça, a tirania e a participação dos cidadãos na vida pública (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 244).

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Em outras palavras, a amizade não é exatamente uma relação de um com outro, não é a comunicação imediata entre dois indivíduos como na fórmula epicurista. Trata-se agora de uma estrutura social da amizade que gira em torno de um indivíduo, mas com vários [outros] a rodeá-lo e que têm seu lugar; lugar que muda conforme a elaboração, o labor realizado por cada qual (FOUCAULT, 2006a, p. 188).

Epicuro exalta a amizade e faz a amizade derivar da utilidade: “Toda a amizade é por ela própria desejável; entretanto, ela tem seu começo na utilidade” (FOUCAULT, 2006 a p. 237). Uma utilidade recíproca, que atende aos envolvidos, ligada ao regime de trocas sociais. Para Epicuro, a amizade nada mais é do que uma forma do cuidado de si e é desejável porque faz parte da felicidade. A amizade era uma forma de proteger-se dos males. “Todo homem que tem realmente cuidado de si deve fazer amigos.” (FOUCAULT, 2006a, p.240). Esses amigos chegariam pelas redes de trocas sociais e da utilidade; a reciprocidade entre os amigos fazia que a amizade estivesse ligada à sabedoria e à felicidade.

Quando trago a amizade grega para os dias de hoje, faz-se necessária a afirmação de que hoje não encontramos necessariamente essa amizade da fala franca, mas temos talvez a noção da amizade como relação afetiva entre os amigos e, talvez mais, a noção da utilidade. Hoje, entre os e as adolescentes, uma amizade que se proponha a dizer a verdade pode ser vista como uma situação que incomode, frustre e agrida. Talvez, a procura hoje seja de amigos que sejam cúmplices (que topem todas), ouçam e apoiem (ombro amigo) e entendam, saibam ouvir e respeitar a opinião da outra pessoa.

O segundo elemento importante na escola epicurista era a “parrhesía”. E é esta nova ética da relação verbal com o outro que está designada na noção fundamental da parrhesía. A parrhesía, traduzida em geral por “franqueza”, é uma regra de jogo, um princípio de comportamento verbal que devemos ter para com o outro na prática da direção da consciência. (FOUCAULT, 2006a, p. 202)

Mais do que a fala honesta, a “parrhesía” também estava vinculada ao

comprometimento com essa fala, uma fala que vem acompanhada por atitudes correspondentes, coerente com o que é dito. Foucault (2006 a) faz essa conexão entre a fala e a atitude.

Portanto, a parrhesía (a libertas, o franco-falar) é essa forma essencial - e é deste modo que resumirei o que pretendo dizer-lhes sobre a parrhesía – à palavra do diretor: palavra livre, desvencilhada de regras, liberada de procedimentos retóricos na medida em que, de um lado, deve certamente adaptar-se à situação, à ocasião, às particularidades do ouvinte; mas, sobretudo e fundamentalmente, é uma palavra que, do lado de quem a pronuncia, vale como comprometimento, vale como elo, constitui um certo pacto entre o sujeito da enunciação e o sujeito da conduta. O sujeito que fala se compromete. No mesmo momento em que diz “eu digo a verdade”, compromete-se a fazer o que diz e a ser sujeito de uma conduta, uma conduta que obedece ponto por ponto à verdade por ele formulada (FOUCAULT, 2006a, p. 492)

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Para que essa fala franca esteja ligada à conduta, deve ser permitida a fala das vivências como tal, um relato do que se vive, como se vive, de que maneira se consegue ir vivendo, encontrando soluções diante dos acontecimentos. Priscila, a adolescente travesti presente no relato inicial deste tópico - Possibilidades Gregas –, apresenta esta aproximação entre sua franqueza e seu comprometimento pessoal com aquilo que fala: “Eu sou Priscila, uma adolescente travesti e tenho um homem que dá para mim. É isto o que sou”.

Esta vida falada, relatada é a conduta vivida, e é daí que vem a fala franca em momentos de relatos, do contar sobre o que nos acontece junto com as experiências,

pensamentos e sentimentos vividos. Falar do vivido, fazendo um relato de si mesmo(a) para pessoas que ouvem; esta pode ser uma possibilidade no trabalho com os indivíduos, incluindo os e as adolescentes. Esses momentos, muitas vezes, são inexistentes e inacessíveis; a fala correta, polida, politicamente correta e que desejamos ouvir ocupa grande parte de nossos espaços educacionais, ficando sem a possibilidade da presença da fala temida, que não suportamos ouvir do outro.

Um exemplo muito claro desta situação, já apresentado anteriormente, mas que pode ser resgatado aqui, é a fala proibida de adolescentes que não podem ou não devem participar das pesquisas, quando não são autorizados a participar por quem detém o poder de decisão sobre sua fala: a família.

Alguns profissionais relatam sua dificuldade em ouvir algo com o qual nada poderão fazer, pois, para estes, a fala do outro necessariamente é um pedido de ajuda com relação ao qual há o compromisso moral de se fazer algo para quem pede ajuda. Não há a compreensão da importância de uma fala franca do próprio sujeito, que, ao falar, também se compromete com o que fala.

O cotidiano de grupos que se proponham a ser espaços de escuta, que garantam a continuidade dos encontros e promovam a tessitura dos espaços de convivência e

comprometimento, permite o contar das histórias e deixa de ser apenas um espaço para dar sua opinião. Há um pedido de autorização, acompanhado de olhares, para falar de algo que

aconteceu, ou ainda acontece, em sua vida.

Falas menos “adequadas” e um pouco mais francas acontecem no cotidiano e em alguns poucos, porém presentes, momentos de conversas em roda, rodas que criam

oportunidades de relato de histórias que são contadas e, portanto, ouvidas. Nesse lugar de conversa, reconheço o valor da possibilidade do que chamo de espaços de convivência e não necessariamente de produtividade. Hoje há um universo extenso de lugares em que programas e projetos para e com grupos de pessoas, inclusive adolescentes, são desenvolvidos, sempre

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tendo em vista atingir os objetivos previamente estabelecidos, determinados em roteiros preestabelecidos, com tempos cronometrados para cada momento. Não há espaço nem tempo para sair desse roteiro que garanta que as metas sejam atendidas; aliás, a utilidade do roteiro é esta: evitar falas francas que poderão desviar dos objetivos traçados. Metas, planos, estratégias, delimitações, tempo, adequação da coordenação, preenchimento de todos os espaços, ocupam todo o tempo; tempo e espaços ocupados – fala adequada garantida e afastados os espaços possíveis de uma fala mais franca que viria através da problematização, da possibilidade de silêncio, da garantia do tempo necessário para falar, entre outras condições.

Um lugar para ficar, talvez, sem ter que nada fazer necessariamente; e, com esta possibilidade do nada fazer, conversas surgem, ouvintes colocam-se atentos, e o exercício central é o relato da vida, dos acontecimentos, muitas vezes acompanhado por reações,

pensamentos sobre, sentimentos de, olhares para, podendo provocar o compartilhar entre quem ouve e quem fala; ou entre os que falam e os que ouvem.

Na família e na escola, seria possível essa experiência, a da fala franca? Ou são lugares de excelência da retórica, da adequação e da produtividade na fala? Onde aconteceriam espaços para a aproximação da fala mais franca? Seria possível esse lugar? Seria a rua? Os espaços sem controle da escola, como os intervalos e o tempo livre no pátio? Seria um lugar ou um tempo?

Haveria necessidade de um mestre que facilitasse/provocasse essa fala? Com certeza, um mestre que cuida da forma como o outro se cuida, mas já vimos que faltam esses mestres. Haveria necessidade de um espaço para uma outra educação, que fugisse da meta da

produtividade, que não mantivesse as relações desiguais entre as pessoas, que possibilitasse a presença dos imperfeitos de alma? Já vimos que poucos são esses lugares, quase raros. Talvez não sejam lugares, talvez sejam momentos que escapam, que resistem, talvez linhas de fuga.

Nos anos 1990, surgiu, em alguns documentos da área das políticas públicas para adolescentes, na Educação, na Saúde e em outros setores, a ideia construída do “protagonista juvenil”. Passou a ser condição de financiamento: projetos que falem e proponham o

“protagonismo juvenil”. Na prática, foram surgindo projetos e programas financiados pela iniciativa privada, incentivando o empreendedorismo juvenil, que significava ir em busca dos jovens de talento que necessitariam de um tipo especial de apoio para poderem galgar novos patamares de. Muitos foram os eventos feitos, montados, financiados para a apresentação dos protagonistas de projetos e instituições. Tive a oportunidade de participar de um evento ao qual várias instituições financiadoras internacionais estavam presentes. Durante um longo tempo, um grupo de jovens apresentou-se da mesma forma: “eu sou ... ( nome), venho do país... e eu

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sou Fundação Ford”, por exemplo. Todos e todas se colocavam como sendo suas próprias instituições financiadoras, e assim se apresentavam.

Trago esta figura montada e inventada do “protagonista juvenil”, como representante deste discurso: adequado, politicamente correto, enquadrado, exclusivamente retórico. Por ocasião de uma pesquisa/avaliação que realizei sobre um determinado projeto, entrevistei um “protagonista juvenil”. Eu coloquei-lhe uma única pergunta: “fale-me sobre sua vida”. Ele passou a relatar retoricamente fatos, exemplos, ações do projeto que estava sendo avaliado. No final de sua fala, que durou por volta de 40 a 50 minutos, ele disse que havia terminado, logo depois declarou: “nossa, eu não falei nada”. Talvez ele tenha percebido a retórica no discurso produzido.

Na TABA, em alguns momentos, pude acompanhar grupos nos quais a fala era menos “adequada” e aproximava-se de uma possibilidade de franqueza e responsabilização pelo que foi falado. Uma das condições para que isso ainda ocorra na TABA, talvez seja algo próximo ao conceito de “desaprendizagem” dos valores da família e da retórica da escola. Um lugar onde se possa pensar e dizer diferentemente do que se diz e faz, pelo exercício da parrhesía, que emerge em alguns momentos.

Ouso dizer que reconheço a TABA como um lugar inventado e que se reinventa a todo o momento, como um lugar para esse exercício de desaprendizagem com pessoas

nomeadas como adolescentes, que passam ou passaram por “imperfeições da alma” e que, por isso, conseguem, talvez, uma qualidade de alma. A TABA - Espaço de Vivência e

Convivência do Adolescente — foi objeto de estudo no trabalho de Fernandes (2009). Trago uma análise sobre ela:

Um espaço ambíguo, portanto, oscilando entre a captura e a fuga. Sempre existirão as ambiguidades e os obstáculos. O desafio da TABA e da humanidade em geral talvez seja se equilibrar numa corda bamba feito bailarina de circo, correndo riscos, escorregando, aprumando-se, sem saber qual surpresa o próximo passo lhe

reservará. É na tensão da ambiguidade que as coisas acontecem, às vezes sendo capturado, às vezes escapando e, quando se crê livre, eis que se é capturado novamente. (FERNANDES, 2009, p. 48).

É importante que se diga que esta possibilidade não é só da TABA, mas de qualquer lugar que se proponha a ir em busca destes elementos até aqui apresentados, que possibilitam uma outra “educação com adolescentes”.

A prática do cuidado, do aquietar-se de si, do conhecimento de si, da amizade e da parrhesía oferece novas (antigas) possibilidades que podem contribuir com uma outra educação, que traga mudanças, contrariando algumas das noções atuais que determinam as

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nossas relações: a importância e o valor do outro, em detrimento de si; o distanciamento e o isolamento advindos do individualismo, produto de nossa cultura neoliberal; e a retórica, que produz o discurso que se espera, por ser “politicamente correto”. São mudanças significativas que desterritorializam as definições de normalidade e produtividade, elementos apontados por mim como geradores de uma “educação para adolescentes”.

A educação como processo e como instituição (E) tem ainda o seu potencial de mudança. Numa escola, tanto os acontecimentos de sala de aula, na interação pedagógica entre educador(a) e aluno(a) e entre os próprios alunos(as), como as relações institucionais que compõem a escola possibilitam uma educação com adolescentes, e, com isso, é possível criar, modificar e inventar novas relações, novas maneiras de estar juntos, na escola e na própria vida.

[...] vivemos, de fato, em um mundo legal, social, institucional, no qual as únicas relações possíveis são muito pouco numerosas, extremamente esquematizadas, extremamente pobres. [...] mais que defender que os indivíduos têm direitos fundamentais e naturais, deveríamos tentar imaginar e criar um novo direito

relacional que permitisse que todos os tipos possíveis de relações pudessem existir e não fossem impedidas, bloqueadas ou anuladas por instituições empobrecedoras do ponto de vista das relações (FOUCAULT, 2004, p.120, grifo meu).

Nestes anos em que acompanhei diversos grupos de adolescentes e jovens e convivi com o desejo que sempre tiveram em manter seus grupos leio esta realidade como uma invenção de uma nova maneira de relações que foram inventadas e vividas por esses grupos, respondendo, portanto, um pouco ao convite feito por Foucault na citação acima.

Compreendo que a prática do cuidado de si nos epicuristas, nos estóicos e nos cínicos não era uma atividade que promovesse o isolamento, o distanciamento do outro; muito pelo contrário, era um modo de vida, concretizado em exercícios, disciplina, disponibilidade pessoal e novas atitudes que promoviam a aproximação com o outro. Aí estão o valor e a importância da amizade, que é essencial na prática do cuidado de si, não havendo possibilidade de exercê-lo sem ter amigos que são os mestres ou exercem em alguns momentos esta função. Sempre, nesta amizade, a franqueza deverá estar presente e a honestidade deverá ser característica central dessa relação mais próxima, por vezes amorosa, podendo ser vista como um componente social das relações humanas. Essa franqueza pode ser reconhecida como uma utilidade da amizade: nossos amigos nos são úteis quando também se dirigem a nós com franqueza. Esta qualidade da amizade — a franqueza — é trazida pelo exercício da fala honesta e franca, da parrhesía. Também se faz necessária essa fala honesta consigo mesmo, no conhecimento e na prática de si.

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A amizade é um dos temas importantes hoje nas relações entre indivíduos, cada vez mais isolados e “defendidos” perante o outro. Nas relações entre adolescentes esta também é uma questão presente nas discussões, com as perguntas: “Quem são os amigos de hoje?”Posso confiar?” O tema da confiança na amizade, é uma possibilidade rica de trabalho.

É preciso pesquisar com mais profundidade este tema, podendo aqui abrir um campo de pesquisa da amizade hoje entre adolescentes e jovens, e também entre todas as pessoas. Incluir a possibilidade de um exercício de uma amizade franca, mais honesta e menos tapinhas nas costas que temos hoje.

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