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Na escrita produzida até aqui sobre biopoder e biopolítica, apresentei definições sobre: sexo, racismo, sistema de regulação da população, sistema de poder disciplinar dos corpos individuais e sobre a questão do poder. Nelas reconhecemos a efetivação ou, as estratégias de ação do biopoder e, portanto, a importância de compreender as formas como produzem impacto na vida dos indivíduos, e também de adolescentes e jovens.

Dando continuidade à apresentação das formas como o biopoder se a biopolítica se concretizam na sociedade, Foucault (1999) aponta o deslocamento, para o campo jurídico, desta coerção disciplinar:

[...] de uma forma mais densa, poderíamos dizer o seguinte: uma vez que as coerções disciplinares deviam ao mesmo tempo exercer-se como mecanismos de dominação e ser escondidas como exercício efetivo do poder, era preciso que fosse apresentada no aparelho jurídico e reativada, concluída, pelos códigos judiciários, a teoria da soberania (FOUCAULT, 1999b, p.44).

Voltando novamente a analisar o ECA, o reconheço como uma lei constituída a partir das idéias do biopoder e como um instrumento da biopolitica, pois regula e determina as responsabilidades, deveres e direitos da família e do próprio Estado sobre a população de adolescentes. Encontro no corpo desta lei os elementos apontados por Foucault como presentes na sociedade moderna: a soberania sobre o corpo da população e as coerções disciplinares sobre os corpos individuais.

Temos, pois, nas sociedades modernas, a partir do século XIX até os nossos dias, de um lado uma legislação, um discurso, uma organização do direito público

articulados em torno do princípio da soberania do corpo social e da delegação, por cada qual, de sua soberania ao Estado; e depois temos, ao mesmo tempo, uma trama cerrada de coerções disciplinares que garante, de fato, a coesão desse mesmo corpo social. Ora, essa trama não pode de modo algum ser transcrita nesse direito, que é, porém, seu acompanhamento necessário. Um direito da soberania e uma mecânica da disciplina: é entre esses dois limites, creio eu, que se pratica o exercício do poder. [...] O discurso da disciplina é alheio ao da lei; é alheio ao da regra como efeito da vontade soberana. Portanto, as disciplinas vão trazer um discurso que será o da regra, não da regra jurídica, sim da norma. Elas definirão um código, não da lei, mas da normalização e elas se referirão necessariamente a um horizonte teórico que não será o edifício do direito, mas o campo das ciências humanas. E sua jurisprudência, para essas disciplinas, será a de um saber clínico. (FOUCAULT 1999b, p. 44, grifo meu).

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O saber - poder clínico vai constituir estratégias de regulação da população tendo em vista a saúde desta população. Está presente no ECA a preocupação em garantir a todas as crianças e aos adolescentes as condições para uma boa saúde e uma boa formação, evitando as doenças e a falta de preparo que impeça que, após os 18 anos, esses indivíduos consigam cuidar-se, manter-se, proteger-se e organizar-se como pessoas produtivas para a sua sociedade.

Em todo o capítulo I, “Do Direito à Vida, do Título II – Dos Direitos

fundamentais”(ECA), encontro definições que abordam as noções de natalidade, mortalidade e longevidade, elementos que constituem o discurso do biopoder e da biopolitica.

Art.7- A criança e o adolescente têm direito à proteção, à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o

desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. Art. 8 – É assegurado à gestante, por meio do Sistema Único de Saúde, o atendimento pré e perinatal.

Art. 9 – O Poder Público, as instituições e os empregadores propiciarão condições adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães substitutivas a medida privativa de liberdade.

Art 14 – O Sistema Único de Saúde promoverá programas de assistência médica e odontológica para a prevenção das enfermidades que ordinariamente afetam a população infantil, e campanhas de educação sanitária para pais, educadores e alunos. Parágrafo único – é obrigatória a vacinação das crianças nos casos

recomendados pelas autoridades sanitárias (SÃO PAULO [Município], 2008, p.38). Além do ECA, trago um outro lugar, onde o controle da população de adolescentes é regido por leis, que novamente, em nome de uma “proteção”, desprotege estes indivíduos; este é um esforço a mais em demonstrar como estratégias estão sendo apresentadas como proteção e não o são.

Estou me referindo a interferência de leias que impedem a participação de

adolescentes em pesquisas, no campo cientifico, por dependerem da autorização da família. O campo de pesquisa com seres humanos, quando envolve diretamente crianças e adolescentes, é regulado por uma legislação: Diretrizes e Normas Regulamentadoras de

Pesquisas Envolvendo Seres Humanos. (Conselho Nacional de Saúde Resolução 196/96). Estas diretrizes determinam a eliminação de adolescente,quando não autorizados pela família ou responsáveis legais, impossibilitando sua fala, algumas vezes sua denúncia. A Ciência fala sobre uma adolescência que é autorizada a falar. E aquela que é impedida de falar, por

determinação da própria família? Sua fala não faz parte do conhecimento científico e com isto nos empobrece e nos limita, ficamos apenas com a parte autorizada, por quem tem o poder de impedir “quem não pode falar”.

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Saliento dois aspectos presentes no referido documento, apresentado a seguir, nos itens que esclarece sobre as regras de participação das crianças e adolescentes em pesquisas:

II - TERMOS E DEFINIÇÕES

II.11- Consentimento livre e esclarecido - anuência do sujeito da pesquisa e/ou de seu representante legal, livre de vícios (simulação, fraude ou erro), dependência, subordinação ou intimidação, após explicação completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previsto, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar, formulada em um termo de consentimento, autorizando sua participação voluntária na pesquisa.

II.15- Vulnerabilidade - refere-se a estado de pessoas ou grupos , que por quaisquer razões ou motivos, tenham a sua capacidade de

autodeterminação reduzida, sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido

IV - CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

IV.3 - Nos casos em que haja qualquer restrição à liberdade ou ao esclarecimento necessários para o adequado consentimento, deve-se ainda observar:

a) em pesquisas envolvendo crianças e adolescentes, portadores de perturbação ou doença mental e sujeitos em situação de substancial diminuição em suas capacidades de consentimento, deverá haver justificação clara da escolha dos sujeitos da pesquisa, especificada no protocolo, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, e cumprir as exigências do consentimento livre e esclarecido, através dos representantes legais dos referidos sujeitos, sem suspensão do direito de informação do indivíduo, no limite de sua capacidade;29

Os referidos itens categorizam adolescentes e crianças como incapazes de cumprir as exigências do consentimento informado. Este lugar determina a dependência de sua

participação à autorização de um capacitado, no caso, o adulto. Algumas das justificativas da obrigatoriedade desta autorização dos responsáveis pelos adolescentes têm como base o discurso da proteção à criança e ao adolescente frente à possibilidade de constrangimento ou, mesmo, sua incapacidade de exercer uma decisão livre quanto à sua participação.

Já presenciei algumas vezes, por conta da aplicação de questionário em pesquisas de avaliação de programas e projetos no campo da educação sexual em escolas, a solicitação da saída da sala de alunas e alunos que não foram autorizados(as) por sua família para participar da pesquisa. Sempre diante desta situação, me perguntava: o que estas pessoas não podem

29 Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos. (Conselho Nacional de Saúde

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dizer? Também vivi uma situação de levantamento de informações sobre adolescentes de uma referida escola que atendia basicamente uma classe denominada favorecida, tanto pelas

condições socioeconômicas como intelectuais. Os questionários depois de aplicados, foram recolhidos e incinerados (épocas de inquisição) por ordem judicial, resultante de uma denúncia dos pais que alegavam constrangimento de seus filhos diante das questões feitas. Duas

perguntas causaram transtornos e medos por parte da família: uma que questionava a aproximação do adolescente ou da adolescente à situações de violência sexual e outra sobre desejo e prática sexual onde se incluía a possibilidade da vivência homoerótica. Questionado na época pelos pais sobre o que se faria diante da possibilidade resultados da pesquisa apontarem uma alta incidência de casos de violência sexual, respondi ingenuamente que iria fazer o que é comum nestes casos. Nas escolas públicas, onde já atuava há alguns anos, diante de caso de suspeita de violência sexual, o Centro de Referência aos Maus Tratos e Violência Infantil (CRAMI) deveria ser acionado para desenvolver um trabalho junto às famílias sobre o tema da violência sexual contra crianças e adolescentes. Posso afirmar hoje, que esta fala, além de ter sido ingênua, passou a ser referência da tentativa de condenação e cassação do título de psicólogo. A ingenuidade estava no fato de não ter percebido e obedecido à ordem dada: a do silêncio diante de qualquer fato que poderia desmascarar as imagens já constituídas ali, principalmente de uma família adequada, produtiva, de sujeitos adequados.

Este é um exemplo claro, cotidiano e ainda presente no campo da pesquisa, que normatiza e classifica o tipo de informação adequada para ser utilizada nas construções das verdades sobre a adolescência. O aspecto jurídico, mais uma vez se apresenta em nome da proteção, regulamentando em nome da ciência os limites do que pode e do que não pode ser conhecido.

Quando crianças, adolescentes e jovens falarem, muitas das estruturas sólidas ruirão; portanto é preciso calar o perigo, é preciso calar aquilo que não suportamos ouvir.

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