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A ampliação da noção de participação política

As noções de democracia e cidadania que orientam os movimentos sociais têm inspiração no ideal grego de democracia direta, assim como os valores propagados pela Revolução Francesa, liberdade, igualdade e fraternidade, continuam alimentando utopias desses movimentos.

O termo democracia teve origem da Grécia antiga. Segundo Aristóteles, democracia é o governo para a maioria. Tendo em vista que naquela época a Grécia era escravista e possuía um grande número de estrangeiros, a democracia era concebida apenas para uma minoria de gregos livres. O mecanismo de consulta popular era utilizado na Cidade-Estado como canal de exercício de cidadania. Em Atenas (séculos V e IV a. C.) ocorria a assembleia popular e em Roma (séculos II e I a.C.), o Conselho do Senado. Segundo Santos (1996):

Os gregos estabeleciam uma vinculação estrita entre a cena pública e a participação política de cada cidadão. Havia um profundo interesse pelo que fosse público e o poder não estava investido apenas numa pessoa. O poder era legitimado pelo consentimento da maioria. Nesse sentido, Atenas contou com a politização de seus habitantes, que não cultivavam a cidadania passiva - eram participantes conscientes da coisa pública. A igualdade de direitos perante a lei (isonomia) correspondeu à igualdade do direito à palavra na assembleia. (SANTOS, 1996, p. 11).

A reivindicação democrática tem sido uma constante na sociedade brasileira. Retrospectivamente, na história do Brasil, desde o período colonial, ocorreram vários movimentos populares de luta de resistência ao domínio estrangeiro, nos quais estão envolvidos valores como liberdade e democracia, a saber: a independência nacional, a proclamação da República, o movimento abolicionista, a Revolução de 1930, a luta contra o arbítrio no Estado Novo, a resistência ao golpe militar de 1964, as eleições diretas para presidente da República, a transição democrática (1984-1985), a Assembleia Nacional Constituinte (1988), o impedimento da presidente Collor (1992), as manifestações contra as políticas neoliberais, a entusiástica presença

popular nas campanhas eleitorais.

Entretanto, vários episódios golpistas têm marcado a história brasileira. Em alguns momentos, por mais que a população buscasse uma participação mais ativa, as soluções de acordos políticos foram efetivadas através de conciliação, negociações e reformas entre os setores da elite política dominante.

Na década de 1980, floresce no Brasil um intenso movimento democrático, onde os setores organizados da sociedade civil6 passaram a exigir seus direitos à participação política, o que representou um arco na reorganização de diversas organizações, partidos políticos, sindicatos, associações comunitárias e de classe, movimento estudantil.

Nesse contexto, novas temáticas e novos atores sociais adentraram a cena política, tais como, movimentos de gênero, etnia, ecológico ambiental, movimento cultural, ações de voluntariado, entre outros. As formas de organização dos movimentos também passaram por mudanças, veja-se a política sindical, o associativismo comunitário, a estrutura organizativa do movimento estudantil e da hierarquia partidária. Além disso, desponta o terceiro setor formado por novas organizações da sociedade civil: organizações não governamentais, organizações civis de interesse público, fundações sociais e culturais, as quais vão se fortalecendo e multiplicando suas ações na sociedade através de lutas e ações localizadas.

Portanto, a sociedade civil ressurge nos embates pelo fim do Regime Militar, materializando a resistência democrática e posteriormente na exigência das eleições diretas para presidente da República.

Segundo Weffort (1989), um dos entraves para realização da cidadania no Brasil residiria na desigualdade econômica e social do país. Não se trata apenas da democracia formal, mas da universalização das conquistas sociais: redistribuição de renda, direito à posse e renda da terra, acesso à educação, moradia e saúde de qualidade, emprego, etc. Assim sendo, uma parte da população teria acesso à condição cidadã, enquanto um enorme contingente estaria abaixo da cidadania.

A partir do processo da redemocratização do Brasil com o fim da ditadura militar (1964) e o restabelecimento da democracia representativa através de eleições diretas ocorre uma apropriação diferenciada no campo da cidadania. Os atores da sociedade civil ocupam a cena pública não apenas com novas demandas políticas, mas de forma propositiva, ampliando tanto o conceito de democracia quanto a noção de cidadania. Nesse sentido, mecanismos como o Projeto de Iniciativa popular, o Referendo e o Plebiscito, assegurados na constituição de 1988, garantem à sociedade participação no espaço institucional. Tais mudanças acabam por ampliar não só os

6“egu do G a s i, a so iedade ivil : u o ju to de o ga izações espo sáveis pela ela o ação das ideologias,

compreendendo escolas, igrejas, partidos, organizações profissio ais, o ga izações de ultu a. (COUTINHO, 1 1, p. 91).

espaços com a ideia de participação no seio dos movimentos sociais.

Segundo Dagnino (2002), a necessidade de qualificação dos atores sociais, assim como a busca de novas formas de participação democrática, contribui para criação de espaços de

“encontros” e para o surgimento de uma agenda comum entre o Estado e a sociedade civil. Nem

mesmo a adesão do Estado brasileiro ao modelo econômico do neoliberalismo desarticulou a ação da sociedade civil, apesar de tê-la inibido, inicialmente.

Lamounier (1990) tem uma opinião crítica sobre a participação política no período posterior à transição democrática. Apesar de ele ressaltar a importância das conquistas políticas advindas da transição, como a convocação da Assembleia Nacional Constituinte e a realização de eleições diretas. Para ele, os discursos da direita e da esquerda ficaram tão parecidos que a

“bandeira” da democracia acabou sendo banalizada, após a campanha pelas “diretas já”, instalando

uma confusão no campo da ideologia política. Para o autor, a participação das gerações posteriores

seria afetada por essa “mesmice”.

A participação popular nas campanhas eleitorais, com destaque para as eleições presidenciais de 1988 (Collor x Lula), 1994 (Fernando Henrique x Lula) e sobretudo a de 2002 (Lula x José Serra), na qual Lula venceu, longe de expressar indiferença para com a democracia representativa, denota crença nas instituições políticas da sociedade.

Concordo com a ideia de que houve uma ampliação significativa na participação política no Brasil, dos anos 1980 para os anos 1990, com a conquista de novos espaços, inclusive institucionais, e a emergência de uma pluralidade de movimentos. A partir do ano 2000, essa movimentação se intensifica ainda mais.

Entretanto, defendo que a diversificação dos espaços de participação dos movimentos sociais exija de cada organização uma maior qualificação, inclusive com uma “apresentação

4 O MOVIMENTO ESTUDANTIL NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ: UMA ANÁLISE DO DISCURSO

De modo geral, os movimentos sociais são caracterizados por um conjunto de práticas coletivas, específicas, que os distingue de outras formas de expressão. São ações, formas de

organização, “jeitos” de se reunir, modos de falar e de se comportar que se constituem em rituais7 do movimento.

As reuniões são rituais típicos dos movimentos políticos, são eventos complexos,

estruturados. Nela os atores possuem “lugares de fala”8

, determinados pela hierarquia interna do movimento, entidade, partido, tendência política, etc. Todos os procedimentos seguem uma

estrutura previamente “pactuada”9

. No movimento estudantil não é diferente. Há reunião para quase tudo: avaliar o movimento, debater assuntos ordinários pertinentes, planejar as ações, fazer

“conchavos” (acordos que demarcam convergências entre duas ou mais tendências). Frequentemente, essas tendências procuram reunir seus militantes e simpatizantes. Essas reuniões

têm caráter obrigatório e visam não só debater problemas como também “conscientizar” a

militância (explicitar ou reforçar concepções ideológicas). A regularidade com que acontecem é

determinada por cada grupo, de acordo com as demandas da “organização política” e do

movimento.

A necessidade de conciliar interesses, seja na condução de uma determinada “luta”, seja

na composição de chapas para as eleições estudantis, motiva encontros entre diferentes “posições

políticas” (tendências). As entidades estudantis costumam ter um dia certo semanal para a reunião de diretoria, podendo aberta à participação de estudantes ou restrita à diretoria. Por vezes, as reuniões têm como atores as lideranças estudantis e a direção da universidade, ou ainda, as entidades estudantis e os representantes dos movimentos de professores e de servidores técnico- administrativos. Em certas situações são criados fóruns temáticos, onde se reúnem diferentes entidades, movimentos sociais e tendências.

O ritual da reunião tem início com a proposição e aprovação de uma pauta (elenco de assuntos a serem discutidos, conforme uma sequência combinada no início do encontro) e de um

teto (tempo de duração da reunião e das falas individuais), a composição da mesa (pessoas que vão coordenar os trabalhos), a qual é formada ao menos por um coordenador e alguém para

“secretariar”, que consiste em fazer as inscrições (anotar os nomes daqueles que pretendem se

7Rituais são tipos de eventos especiais, são estereotipados (analisáveis), são dotados e determinados por uma ordem

(PEIRANO, 1999).

8Pa a V o , as di e sões do pode são expli itadas o e o he i e to do dis u so , ue está ela io ado o a

legitimidade de quem profere o discurso. (VÉRON, 1980).

9COMEFORD (1999) aborda os rituais da política em um sindicato rural, analisando os usos da palavra luta, as reuniões

manifestar), marcar o tempo das falações (intervenções, discursos) e fazer o relato das discussões (relatórios, atas). O número de membros da mesa dependerá do porte e da importância do evento. Normalmente a mesa é composta por aqueles que convocaram a reunião ou pela diretoria da entidade, nos casos de reuniões ordinárias do DCE ou C.A.

Nas reuniões extraordinárias são feitas as apresentações dos participantes, convidados e representantes de entidades. Quanto à pauta: de início são dados os informes (informações gerais e sobre o próprio movimento, além de outros movimentos sociais, convites, etc.). A seguir vem a discussão de cada ponto da pauta (temas sugeridos, questões importantes). Por fim são definidos os

encaminhamentos (tarefas e propostas de ações).

Durante o debate podem ser feitas avaliações (diagnósticos sobre a conjuntura política nacional e local, a correlação de forças, os pontos positivos e negativos das ações implementadas), ser levantadas questões de ordem (relativas à condução da reunião) e questões de encaminhamento

(relativas às tarefas).

As reuniões são concebidas pelos seus idealizadores como espaço democrático, nos qual os participantes têm os mesmos direitos de expressão, dentro de um tempo determinado e equitativo. Os problemas e suas possíveis soluções dão definidos e resolvidos coletivamente; as divergências quanto à avaliação ou às estratégias de ação são tratadas no âmbito da retórica. Quando não se consegue o consenso pela argumentação, procede-se à votação por maioria simples dos pontos polêmicos. Nas grandes reuniões, como é o caso das assembleias, nas quais não é possível conceder a fala a todos os participantes, o número das inscrições é previamente delimitado para cada ponto de pauta.

A assembleia geral dos estudantes de um curso ou de toda a universidade é um dos rituais mais importantes do movimento estudantil, além de se constituir no fórum máximo de decisão de âmbito local. Uma assembleia com uma expressiva participação, atingindo com folga o quórum de participação, tem a importância, ou o peso de uma manifestação pública, podendo decidir sobre os rumos do movimento. No aspecto deliberativo, acima da assembleia somente as

eleições e as “consultas ou plebiscitos”. Abaixo, está o Conselho de Entidades, que é a reunião de

todos os centros acadêmicos de uma universidade, através de representantes por curso. A hierarquia, os quóruns de validade de cada instância deliberativa, assim como as diretrizes sobre a realização das eleições são explicitados nos estatutos das entidades estudantis, sendo que os estatutos dos centros acadêmicos não devem contradizer o estatuto do diretório central, o qual deve estar em consonância com as orientações da entidade nacional de que faz parte.

O Congresso da UNE é o principal fórum do movimento estudantil, realizado a cada dois anos. Nele se discute a plataforma política para as universidades brasileiras e se procede, na maioria das vezes, à eleição da diretoria da entidade. Excepcionalmente, essa eleição ocorre de

forma direta em cada universidade, mas isso não é a tradição do movimento estudantil. Os delegados ao Congresso da UNE são eleitos em assembleias realizadas em cada curso ou por eleição em urna, geralmente precedida da discussão de teses ou propostas. A quantidade de delegados é proporcional ao número de estudantes matriculados em cada curso.

No intervalo entre dois congressos se realiza o Congresso Nacional das Entidades Gerais (CONEG), encontro que reúne representantes dos diretórios centrais das universidades. Eventualmente, pode ser convocado o Congresso Nacional das Entidades de Base (CONEB), que reúne os representantes dos centros acadêmicos. Cabe às entidades locais (DCEs e C.A.s) implementarem as deliberações da UNE relativas à condução prática do movimento. Ademais, a participação mais ou menos intensa da UNE nas atividades locais depende dos encaminhamentos

das entidades de base. As “bandeiras de luta” gerais são formuladas no Congresso da UNE e

detalhadas no CONEG, onde se define um calendário de atividades nacionais.

Do ponto de vista do ritual, uma assembleia geral, como é o caso do Congresso da UNE, é um campo repleto de significados, é um teatro no qual são encenados conflitos políticos, são explicitadas hegemonias, construídos consensos e efetivados dissensos. Além dos protagonistas desse drama político (ou comédia), há uma gama de atores coadjuvantes que gravitam nesse mesmo universo, bem como um público que participa dos jogos discursivos, mesmo não fazendo uso da palavra. Nesse sentido, Balandier (1999) chama a atenção para a teatralidade do poder. As manifestações públicas são espaços privilegiados para a dimensão simbólica do movimento estudantil: bandeiras, cores, discursos performáticos, jogos de poder, figuras mitológicas do passado, música, etc.

Através dos discursos, os militantes expõem suas concepções e procuram estabelecer vínculos socioculturais e políticos com seus interlocutores. Tendo em vista que a palavra é a matéria-prima da política, os oradores buscam seduzir os ouvintes, levando em conta a necessidade de aceitação e reconhecimento do discurso10.

4.1 Trajetória do movimento estudantil na UFC, a partir da reconstrução das entidades