• Nenhum resultado encontrado

4. O CONFLITO DAS MALVINAS E A GEOESTRATÉGIA ARGENTINA NO

5.2 O CONFLITO NAS MALVINAS HOJE: UMA VISÃO ATRAVÉS DO PRISMA DA

5.2.4 A análise de interesses relacionados a Recursos Naturais

Os interesses, como objetos ideais ou reais, que adquirem um valor diferente

concedido por cada ator, estão relacionados entre si por decisão das vontades e, a

partir deles, é possível descrever o conflito como tal. Assim, o relacionamento

gerado entre os atores para controlar interesses relacionados é a causa da

existência do conflito. Portanto, o conflito é idealizado, representado, pintado nas

mentes dos atores, através dos interesses (CAL et al., 2016; FRISCHKNECHT;

LANZARINI, 2015).

Para Ganeu (2019, p. 3), os recursos marinhos podem ser vivos ou não vivos,

renováveis ou não renováveis, como hidrocarbonetos, minerais ou pesca, entre

outros. De acordo com a interpretação acima mencionada do significado do

interesse, o "valor" é a medida da importância que um ator atribui ao objeto em

consideração. Sob essa interpretação, diferentes critérios podem ser considerados

para representar o valor dos usos e recursos mencionados, que vão muito além do

valor econômico conhecido.

A análise do valor dos interesses marítimos deve contemplar um “cenário

marítimo” que inclua o fundo, o corpo de água, sua superfície e a massa

atmosférica que interage com a água, bem como as costas que são a

transição entre terra e água. Portanto, uma mente habitualmente localizada

em grandes espaços continentais tem dificuldades para interpretar

142

completamente as complexidades e necessidades do mar (GANEAU, 2019,

p. 3).

A análise a seguir, para atingir uma pequena aproximação à compreensão da

importância dos recursos naturais no conflito das Malvinas atualmente, estará

focada nos hidrocarbonetos e na pesca, bem como na projeção antártica, explicando

também, a última questão, desde a perspectiva da geopolítica dos recursos naturais.

5.2.4.1. Os hidrocarbonetos

A partir da crescente importância dos espaços submarinos como fonte de

recursos petrolíferos (bacias marítimas), que começou a ser explorada na região das

Malvinas em meados da década de 1970 (missão Shackleton)40 e que, como

expressa Koutoudjian (2019, p. 11), em todo o mundo houve um aumento

exponencial a partir de 1980, passando de 4% do total de petróleo extraído no

mundo, para exceder 22% hoje, é que a situação dos hidrocarbonetos no Atlântico

sul ocidental tornou-se fundamental.

O processo de exploração nos mares adjacentes nas Ilhas Malvinas começou

em 1993, mas somente em 2008, com base em novos estudos, foi visualizada a

possibilidade teórica de obter 60 bilhões de barris na costa, o que significava

estoques potenciais maiores que as reservas que o Reino Unido possui no Mar do

Norte (WIKTER, 2012, p. 7), o que levou as autoridades britânicas, em fevereiro de

2010, a autorizar Desire, Falkland Oil e Rockhopper a realizar novos estudos

focados na costa norte das ilhas, o setor que parecia mais promissor. Um ano

depois, a Rockhopper Exploration anunciou que, nas quatro áreas designadas ao

norte das ilhas, haveria mais de 400.000 milhões de barris, o equivalente a 15% da

disponibilidade britânica no Mar do Norte. O depósito mais importante na bacia norte

é o chamado de “Sea Lion” (KOUTOUDJIAN, 2019). Atualmente, a área em que a

perfuração está ocorrendo está perto de começar a produzir petróleo.

40 Em 1975, as Malvinas começaram a ser vistas como um polo de exportação de hidrocarbonetos

pela coroa britânica. Como observa o biotecnólogo Federico Bernal, "o claro ponto de virada na

estratégia diplomática britânica para as ilhas, passando da ambiguidade para a crescente

intransigência, foi o ano 1975" (Pansa, 2015, p. 77).

143

Figura 20: Localização do depósito de Sea Lion (bacia norte das Ilhas Malvinas)

Fonte:

https://www.lavoz901.com/noticias/compaa-britnica-confirm-proyecto-de-explotacin-de-petrleo-en-malvinas.htm

É importante ressaltar que a atração de investimentos na exploração de

hidrocarbonetos nas ilhas não foi significativa até 2010. O momento de virada

ocorreu justamente após a descoberta de petróleo no depósito de Sea Lion. Em

2016, a empresa Rockhopper anunciou o início do desenvolvimento da primeira das

três fases projetadas do Projeto em Sea Lion. Embora a produção tecnicamente

recuperável, descoberta e auditada seja de pelo menos 500 milhões de barris, o

cenário apresentado pelos operadores projeta oficialmente um número próximo a 1

bilhão de barris a serem extraídos em um período de 20 anos (ROCKHOPPER,

2017 )41, conforme pode ser visto na Figura 21. A partir de maio de 2019, a empresa

mantinha, apenas para a Fase 1, as estimativas de 85.000 barris por dia e um total

de pelo menos 250 milhões de barris42.

41 De acordo com os dados obtidos da apresentação do CEO da Rockhopper, em setembro de 2017,

na Oil Capital Conference.

42 Informação disponível em

144

Figura 21: Produção estimada por Rockhopper no primeiro ano de operação em

milhões de barris por fase (as estimativas eram começar em 2020)

Fonte: Rockhopper (2016)

No entanto, ainda hoje, o trabalho de extração de hidrocarbonetos no Atlântico

Sul, e particularmente no mar ao redor das Malvinas, é caro e representa um alto

risco. A incerteza é ainda maior em relação à quantidade e qualidade do petróleo

bruto e, sobretudo, à sua viabilidade comercial. O custo do barril que viabiliza a Fase

1 do Sea Lion é de USD 35 (ROCKHOPPER,2016)43. No momento da redação deste

trabalho, o preço do barril Brent era negociado a US $ 37 (em 15 de junho de 2020),

tendo se recuperado de valores historicamente baixos, como resultado da crise

econômica global decorrente da pandemia do COVID-19 (chegou a estar cotado

abaixo de USD 20)44.

Apesar das declarações dos executivos da Rockhopper, os Entrevistados E1 e

E2 consideram que o valor do barril Brent para viabilizar a extração nas bacias

off-shore das Malvinas é, pelo menos, o dobro desse valor (ou seja, perto de USD

70/80). Consultado sobre o motivo dessa diferencia, o Entrevistado E2 respondeu:

E2: É lógico que este tipo de empresas tornem os valores públicos inferiores

aos realmente necessários para o preço do barril de Brent, para que as

43 Informação disponível em

http://rockhopperexploration.co.uk/_site/wp-content/uploads/2016/09/Investor-Presentation-28-Sept-2016.pdf

145

suas operações em plataformas off-shore sejam viáveis do ponto de vista

económico. Se admitirem um valor real, que no caso do Atlântico Sul é

ainda maior do que em outras plataformas offshore, correm o risco de que

os investimentos necessários não cheguem para começar a produzir nas

fases iniciais.

Figura 22: Preço médio do barril Brent em USD. Período 2014-2019

Fonte: Rockhopper (2019)

Para o Entrevistado E2, essas perspectivas (trabalho de exploração até o limite

da lucratividade), poderia apresentar uma oportunidade para estabelecer uma

estratégia ativa da República Argentina, entendendo que, no âmbito dos Tratados de

Madri (1989 e 1990), poderiam ser estabelecidos acordos adicionais para alcançar

um entendimento que proteja totalmente as posições legais atuais, mas que também

possibilitam estender a cooperação de novas áreas a serem exploradas (como a

bacia do Sul), como uma maneira de aproximação inicial que permita um

reposicionamento mais vantajoso para uma futura abordagem abrangente da

questão das Malvinas, onde a situação dos hidrocarbonetos é chamada a ocupar

uma posição central. De fato, só a bacia do Sea Lion é a quinta descoberta mais

importante na última década em águas rasas (ROCKHOPPER, 2017).

5.2.4.2. Riqueza pesqueira

As áreas circundantes às Malvinas e às ilhas do Atlântico Sul têm recursos

pesqueiros de crescente importância: lulas (illex e loligo), merluza, krill, algas,

146

moluscos, cetáceos, escamudo e bacalhau, entre outros (KOUTOUDJIAN, 2019;

CAMARGO, 2014, p. 602).

O setor de pesca nas Ilhas cresceu exponencialmente desde que o Reino

Unido criou em 1986 a "Primeira Conservação e Administração Interina das Ilhas

Falkland" ou FICZ (Zona de Conservação das Ilhas Falkland) de 150 milhas,

equivalente a cerca de 210 km2 (PANSA, 2015, p. 73; CAMARGO, 2014, p. 602).

Figura 23: Zona de Conservação e Administração de Pesca das Malvinas

(distribuição geográfica das capturas das principais espécies - setembro de 2014)

Fonte: https://www.falklands.gov.fk/assets/Presentation-150914-Natural-Resources-Directorate-Fishing.pdf

Desde então, a pesca tornou-se um grande negócio, o que trouxe grandes

benefícios para os habitantes das ilhas. De fato, o PIB das Malvinas em 1986 era de

9,8 milhões de libras e, em 1987, após a liberalização da pesca, saltou para 30,7

milhões de libras (13,7 milhões desse total diretamente relacionado à pesca). Com

uma captura média de 260.000 toneladas de peixe por ano nas ilhas (BARTON,

2002, p. 127) e rendas que atingiram, em média, 20 milhões de libras desde 1987,

de um total entre 40 e 65 milhões, a pesca era a fonte dos recursos mais rentáveis

147

das Malvinas (CAMARGO, 2014), até o início da exploração de petróleo, como pode

ser visto na Figura 24.

Figura 24: Receitas de atividades econômicas das Ilhas Malvinas (1984-2013)

Fonte: https://www.falklands.gov.fk/assets/Presentation-150914-Natural-Resources-Directorate-Fishing.pdf

Para uma melhor compreensão dos dados, a pesca em toda a costa argentina

atinge 800 mil toneladas por ano, enquanto nas Ilhas excede 200 mil toneladas por

ano, o que permite medir o potencial pesqueiro da região (KOUTOUDJIAN, 2019).

Para Testa (2015, p. 69), a singularidade estratégica da região reside, entre

outras coisas, em seus atuais e gigantescos recursos pesqueiros, produto do

esgotamento em outros mares do mundo, o que gera preocupação, devido à

superexploração que pode acontecer no Atlântico Sul Ocidental. O autor acredita

que, por esse motivo, esse enorme espaço marítimo está se tornando cada vez mais

importante no negócio global de pesca.

Precisamente diante dessa situação, está sendo atraída a presença de

numerosas frotas estrangeiras nas proximidades do Mar Argentino, pescando na

fronteira das Zonas Econômicas Exclusivas do Mar da Argentina e das Malvinas

(muitas vezes dentro delas, de maneira ilegal) entre as quais destaca a presença de

navios chineses, aspecto que gerou um alarme nas autoridades argentinas. De fato,

enquanto este trabalho está sendo escrito, o Governo Argentino está enviando um

projeto de lei ao Congresso Nacional para aumentar as limitações e multas para

quem pratica pesca ilegal nas águas argentinas, incluindo as que cercam as Ilhas

148

Malvinas. A regra visa evitar saques por navios pesqueiros que entram sem

permissão nos espaços marítimos argentinos, com o objetivo de defender os

recursos naturais no Atlântico Sul45.

Esta situação também ocorre nas autoridades das Ilhas Malvinas. O diretor de

recursos naturais das ilhas, John Barton46, tornou públicas as preocupações do

governo dos ilhéus em 2018, após o notável aumento de navios de pesca

estrangeiros na região47.

Figura 25: Área com alta presença de navios de pesca internacionais

Fonte: https://dialogochino.net/en/trade-investment/6117-china-on-the-brink-of-fishing-conflict-in-south-america/

45 Informações disponíveis no site do Ministério de Relações Exteriores argentino, em:

https://www.cancilleria.gob.ar/es/

destacados/el-presidente-enviara-tres-proyectos-de-ley-para-darle-status-de-politica-de-estado-al.

46 Após 33 anos na função, em 2019, o governo das Ilhas Malvinas nomeou Andrea Clausen,

especialista em biologia marinha, para o cargo.

47 Informação disponível em

149

5.2.4.3. A projeção Antártica

Conforme ao já mencionado no Capítulo 4, é importante entender que, para a

Grã-Bretanha, as Ilhas Malvinas, Geórgias e Sandwich do Sul são mais um elo

nessa cadeia de possessões britânicas no Atlântico Sul, mas de importância crucial.

Do ponto de vista da geopolítica clássica, isso não apenas garante à Grã-Bretanha o

controle do Atlântico Sul e a comunicação entre os oceanos Índico, Atlântico e

Pacífico, mas também fornece uma projeção para o continente antártico e, portanto,

a possibilidade de reivindicar território sobre ele. É evidente que, no complexo

sistêmico de territórios de ultramar, as Malvinas são a "chave" do acesso à Antártica.

Figura 26: Bases britânicas no Atlântico Sul e reivindicações de terras na Antártica

Fonte: https://juventudmaritimasomu.com/2019/09/06/el-dominio-total-de-gran-bretana-en-el-atlantico-sur/

O Entrevistado E3 destaca:

E3: Podemos afirmar que o conflito não é apenas pelos recursos naturais

(pesca e petróleo). Na minha opinião pessoal, o eixo central da disputa é a

reivindicação pela Antártica. Os britânicos sabem que sem as Malvinas não

podem reivindicar a Antártica e aí não devemos esquecer que eles, o Chile

e nós (Argentina), reivindicamos soberania sobre a península Antártica.

Para mim, as Malvinas foram a primeira batalha pela Antártica. Não foi por

150

acaso que, após o primeiro relatório Shackleton, entramos em conflito com

o Reino Unido. Basta olhar para tudo o que os britânicos estão fazendo em

termos da Antártica para confirmar minhas afirmações, particularmente nas

Geórgias do Sul e nas águas circundantes, estabelecendo uma posição

para futuras reivindicações.

Do ponto de vista dos recursos naturais, a projeção mencionada abre as portas

para uma fonte de recursos renováveis (riqueza de peixes), recursos não

renováveis (hidrocarbonetos e minerais) e uma imensa reserva de água doce.

Precisamente as enormes massas de gelo (água) presentes na Antártica,

representam uma das grandes riquezas do continente, estimando que suas reservas

constituam cerca de 80% da água doce total do planeta, tornando-se um recurso

potencial de primeira ordem para o suprimento da população mundial, além de

vários outros usos.

Quanto aos recursos não renováveis, apenas na península Antártica (região do

continente onde há reivindicações sobrepostas de soberania da Argentina, Chile e

Grã-Bretanha), há comprovada existência de depósitos de níquel, cobalto, cromo,

cobre, ouro e prata48.

Figura 27: Depósitos minerais comprovados na Antártica

Fonte: Antarctica Information (2015)

48Informação disponível em https://www.coolantarctica.com/Antarctica%20fact%20file/science/threats

151

Da mesma forma, Kaplan (2017), usando dados do United States Geological

Survey (USGS), posiciona a Antártica entre as regiões do planeta com as maiores

reservas estimadas de gás e petróleo do mundo.

Figura 28: Reservas globais estimadas de petróleo e gás não descobertas até 2017

Fonte: Kaplan (2017) - Unidade de medida Gb (Gigabarris=109 barris)

Embora seja verdade que, no curto prazo, o Tratado da Antártica (1961) serve

de contenção para as reivindicações dos países e a proteção de todos os recursos

antárticos, a proximidade do fim do tratado mencionado (no ano 2041), pode trazer

inúmeros conflitos.

Por esse motivo, e com grande adesão ao que Cisneros (2013) expressou, a

situação das Malvinas e da Antártica não devem ser consideradas questões

independentes, pelo menos pela política externa da Argentina. Uma consciência

territorial completa, da qual uma visão geopolítica deve emergir, pode permitir

entender que ambas as disputas têm a mesma natureza.

5.3. O PODER NAVAL ARGENTINO A PARTIR DOS ANOS 90: O CONCEITO DE