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2 A CULTURA AFRO-BRASILEIRA NA CONTEMPORANEIDADE: DILEMAS NA

4.2 A análise do discurso na análise dos dados

Nossa abordagem considera a relevância da linguagem enquanto tecnologia de produção de realidades. Não a língua de forma fixa e inequívoca, mas enquanto um movimento constante de produção, fluxos e disputas entre sentido negociáveis e indefinidos (FOUCAULT, 2012; 2014; SILVA, 2013; ALVES; PIZZI, 2014). Ao pensar a linguagem partilhamos de uma concepção que retira o centralismo do sujeito enquanto agente discursivo e que critica noções fundantes, absolutas e universais da língua (POPKEWITZ, 2011; SILVA, 2011).

Isso nos remete ao pensamento de Foucault, para quem o discurso é uma positividade, uma ação produtiva, uma construção complexa, híbrida e bélica (FOUCAULT, 1979; 2011; 2012; 2014). O discurso é uma negociação ativa em que diferentes interlocutores produzem e

negociam efeitos de sentidos em contextos históricos específicos. Nesta negociação, o discurso exerce um poder designativo, ele significa e ressignifica os objetos, as pessoas, as experiências sociais e culturais mediando as relações de poder ao passo que por elas também são interpeladas.

Em sua historicidade os discursos assumem significados distintos a partir das condições de produção, das memórias discursivas disponíveis numa cultura e das posições de sujeito assumidas pelos interlocutores que os produzem e deles se apropriam (FOUCAULT, 2012; 2014). Neste sentido, ele é uma prática política múltipla e disputável, é a própria luta pelo estabelecimento de verdades e exercícios de formas de dominação e resistência.

O discurso é uma prática que se dá a partir de um conjunto de regularidades históricas e cuja materialização permite ver de que modo os contextos produzem não só objetos de saber, mas constituem relações de poder e formam subjetividades. Nessa perspectiva, ele é também um dispositivo de subjetivação. Em nossa pesquisa é importante pensar o discurso porque, no pensamento foucaultiano, é uma categoria fundante do sujeito e instrumento de análise do nosso objeto (FERNANDES, 2014).

Souza (2014) afirma que a fala de uma pessoa se inscreve numa ordem discursiva, instaurando dramas e inaugurando performances que reinventam uma espécie de teatro político a partir do qual o sujeito se constitui discursivamente. Assim, os docentes participantes da pesquisa são pensados como sujeitos históricos enquanto resultados de posicionamentos discursivos temporalmente produzidos e modificados (FERNANDES, 2014). Eles são descentrados, produzidos, subjetivados, constituídos por um mundo cultural e político exterior que lhe faz recair saberes mutáveis no tempo, posicionando-os em relações de poder.

Um discurso expressa a forma como as pessoas são governadas em meio às produções de regimes de verdades (JONES, 2011). Se ao pensarmos nos tensionamentos entre as posições incômodas que lutam para nos governar transformando-nos em objetos de práticas discursivas institucionalizadas e os lugares arriscados de exercícios de resistência (PIGNATELLI, 2011), ao falarmos pode ocorrer de estarmos chamando de nossa linguagem aquilo que efetivamente é uma linguagem que nos foi dada, devidamente apropriada mediante as formações sociais que vivemos no passado (POPKEWITZ, 2011). Desta forma, podemos dizer que se os discursos precedem os sujeitos e formam as suas subjetividades, estas acabam por legitimar os discursos que as precedem (ALVES; PIZZI, 2014).

Os enunciados que compõem uma formação discursiva funcionam como manifestações de um saber legítimo. Daí decorre a reprodutibilidade dos valores de certo e errado que são aceitos em cada época e lugar exercendo o governo das condutas (ALVES; PIZZI, 2014).

Retomando à arqueologia foucaultiana, Alves e Pizzi (2014)78 ponderam que o campo dos enunciados não traduz o pensamento de uma pessoa, mas opera relações múltiplas e transformações sistemáticas conforme as posições assumidas por quem enuncia algo dentro das possibilidades que o contexto lhe oferece.

Os enunciados exercem funções em relação às condições de possibilidade, aos referenciais e campos associados de domínios acerca do que tratam, às posições assumidas pelos sujeitos que falam e às materialidades específicas que os registram. Portanto, as enunciações nunca são iguais umas às outras. Elas são raras, são singulares e não dão conta de todos os sentidos que põem em movimento. Seu trabalho seletivo tece exclusões, silêncios e interligações que constroem novos argumentos, novas relações de saber-poder e novas lutas.

Enquanto prática discursiva aberta, a capacidade de proliferação enunciativa é quase infinita. Portanto, uma vez que os enunciados são dispositivos linguísticos bastante complexos, para analisarmos os seus funcionamentos e efeitos políticos nas formações que eles perpetram, precisamos atentar para as práticas discursivas e não discursivas que eles constituem e manter uma postura de desconfiança diante dos dados da pesquisa (ALVES; PIZZI, 2014).

O discurso segue princípios de regularidade para estabelecer um conhecimento e formar seus objetos e domínios (JONES, 2011). Ele é construído num jogo contextual em que diferentes estratégias são acionadas não só para produzir sentidos, mas também formas de dominação. Lugar de produção de saber e de exercício de poder, o discurso é constituído por conjuntos de enunciados que se relacionam ativa e estrategicamente autorizando ou reprimindo sentidos (FOUCAULT, 2012; FERNANDES, 2014; SOUZA, 2014).

Foucault reconhece que embora exista uma autonomia do discurso quando se pensa em suas regras e determinações próprias, as maneiras como o discurso nomeia e confere sentidos às coisas e às pessoas não estão submissas apenas ao reino das palavras ou às regras e formas como os enunciados se ligam um ao outro criando novos domínios, mas também aos dispositivos materiais, à estrutura, às relações de saber-poder, às lutas e ao funcionamento das práticas sociais que põem em atividade (LARROSA, 2011).

Isso porque as práticas discursivas são práticas sociais moldadas por regras e instituições, o que as faz serem carregadas de normas e valores morais pelos quais os discursos moldam o certo e o errado, o verdadeiro e o falso (POPKEWITIZ, 2011), e instituem relações

78 No artigo em questão, as autoras dedicam-se especificamente a problematizar as representações discursivas nas relações de gênero em escolas alagoanas, mas acreditamos que seus pressupostos teórico-metodológicos podem ser incorporados à nossa reflexão, pois mesmo tendo um outro recorte temático, a etnia, falamos também de jogos de poder entre subjetividades e identidades sociais historicamente rechaçadas.

organizadas em padrões de desigualdade (LARROSA, 2011). Atravessando o discurso, o poder interdita, seleciona, exclui, separa o verdadeiro do falso, organiza certas possibilidades linguísticas (ALVES; PIZZI, 2014) e instala o discurso em arenas de lutas constantes (FOUCAULT, 2012; 2014).

Nesse sentido, a análise do discurso em Foucault se debruça de forma problematizadora e fragmentária sobre as enunciações. Esta análise é uma junção entre a abordagem arqueológica, crítica, das estratégias de elaboração do discurso, e o tratamento genealógico, crítico dos efeitos de poder das produções discursivas.

Assim as descrições críticas e as descrições genealógicas devem alternar-se, apoiar-se umas nas outras e se completarem. A parte crítica da análise liga-se aos sistemas de recobrimento do discurso; procura detectar, destacar, esses princípios de ordenamento, de exclusão, de rarefação do discurso. Digamos, jogando com as palavras, que ela pratica uma desenvoltura aplicada. A parte genealógica da análise, se detém, em contrapartida, nas séries da formação efetiva do discurso: procura apreendê-lo em seu poder de afirmação e, por aí entendo não um poder que se oporia ao poder de negar, mas o poder de constituir domínios de objetos, a propósito dos quais se poderia afirmar ou negar proposições verdadeiras ou falsas (FOUCAULT, 2014, p. 65).

Essa análise é um esforço para decompor o discurso, identificando suas partes, compreendendo a singularidade das ligações estratégicas dos enunciados, para determinar as condições de sua existência, mas também visa questionar as vontades de verdade, identificar as descontinuidades e tratar o discurso enquanto um acontecimento cujas relações estabelecidas em suas funções enunciativas forjam estratégias que ligam o discurso ao poder (FOUCAULT, 2014).

Para uma tal análise que perceba outras memórias discursivas nas memórias docentes (FERNANDES, 2014) é importante a noção de interdiscursividade: um conjunto de formulações já realizadas, muitas vezes de autoria já esquecida ou não identificada, mas que ainda assim chega a ser determinante para o que dizemos, pois funciona como um dispositivo nas relações de poder estabelecidas pelos jogos discursivos (ORLANDI, 2012).

Mapear os saberes e práticas a partir das memórias docentes não é um exercício intelectual simples. Como diz Tardif (2002), a racionalidade docente, ou seja, a capacidade pensante para agir, é instável, fluída e tensionada por diversos elementos. Destarte, embora o docente seja um profissional que emite juízos diante de condições reais de trabalho, o saber- fazer é maior que o conhecimento discursivo que o docente expõe. Não há total consciência ou não se sabe explicar tudo o que faz quando ensina.

Nessa perspectiva, não se busca interpretar ou traduzir a realidade sobre o que os professores falam79, mas sim analisar o que falam, de que lugares institucionais e políticos. Como falam, por que falam e de determinada maneira o fazem? Quando e sob que normas,

condições e referências? Assim, a análise do discurso é pensada por nós como o estudo da

perspicácia observável no jogo de poder (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009) quando um docente cria discursos, narrativas e esquemas explicativos a respeito do que seja: ser professor, a cultura afro-brasileira, os desafios e possibilidades para ministrar aulas nas escolas públicas do sertão sobre o tema, etc.

Buscamos como dados de análise discursiva, os cenários, os tipos humanos, esquemas narrativos, as circunstâncias históricas e sociais que são selecionadas para representar a cultura afro-brasileira nos relatos dos professores participantes da pesquisa. Em seguida, identificamos as origens que (in)formaram os saberes docentes sobre a cultura afro-brasileira, analisamos os lugares simbólicos destinados à cultura afro-brasileira no saber desses docentes, bem como os sentidos que lhes dão e como os aplicam em sala de aula. A partir daí identificamos as ordens discursivas em que se inserem os discursos sobre os saberes que esses professores produzem (a ciência, a mídia, a religião, os movimentos sociais, a legislação educacional, de sua formação profissional, de suas famílias).

Assim, tomamos como alguns dos critérios a serem observados no discurso desses docentes: o status de quem fala (professor de História; pertencimentos étnicos), lugar (escola pública no sertão de Alagoas), posição que assume quando fala (em defesa ou contrário aos conteúdos obrigatórios) e as práticas de ensino realizadas.

Mas isso não quer dizer que ao prever alguns critérios de análise discursiva estejamos engessando categorias analíticas que aprisionem os sentidos das narrativas de vida docente. Conforme Inês Santos e Rosângela Santos (2008), o ato da entrevista é uma prática aberta que expressa sentidos de formas múltiplas: por meio da linguagem corporal, das mudanças nos tons de voz e pela própria seleção lexical utilizadas durante a fala. Nesse percurso surgem dados que promovem deslocamentos de sentidos. Deste modo, é comum que surjam nas narrativas orais diferentes aspectos sociais que ainda não haviam sido pensados pelo pesquisador.

Essa zona do indeterminado requer atenção, sensibilidade e cuidado técnico, pois refaz toda a possibilidade analítica: reformulam-se cenários, acrescentam-se ou eliminam-se

79 Neste sentido, não só as pessoas que narram, mas também um conjunto que autoriza e legitima a partir de certas regras como: status, competência do saber, instituição, sistemas, normas, condições legais, direitos e limites, sistemas de diferenciação, relações e reconhecimento social, direito de decisão e intervenção que compõem as falas dos docentes.

personagens, instalam-se saberes e recriam-se conflitos enredos. Isso nos coloca o cuidado de não estabelecermos a priori as categorias analíticas feitas pelo pesquisador a fim de fazer com que as histórias de vida docentes sejam encaixadas nelas. O movimento deve ser o contrário: para empreender a experiência de si como possibilidade de autorregulação crítica e transformadora a partir da ótica docente é preciso que consideremos o potencial de sua própria discursividade. Portanto, na fala dos depoentes surgem leituras pessoais que produzem as categorias analíticas da pesquisa inspiradas nas próprias experiências narradas (SANTOS; SANTOS, 2008; SILVA, 2013).

Falar sobre um tema historicamente reprimido é exercer momentaneamente um poder, é transgredir uma cultura dominante, é dar visibilidade àquilo que foi dito em textos de dominação. É poder expressar vontades e saberes íntimos, adiantar sensações, nominar e dominar novos espaços (FOUCAULT, 1988). Mas, como vimos, o ato de falar sobre algo tanto pode servir para libertação de amarras políticas quanto para a sua exposição dominada ou interdita (FOUCAULT, 2014).

A produção discursiva é ambígua, ela não só materializa falas e cria saberes, mas também classifica erros, organiza silêncios e desconhecimentos sistemáticos que são estratégias de poder (FOUCAULT, 1988). No entanto, importa dizer que refutamos as visões reducionistas e binárias. Desse ponto de vista não utilizamos noções que operem de forma negativa e excludente no discurso como, por exemplo, classificando os saberes docentes em “verdadeiros”, “falsos” ou “mitificados” sobre a cultura afro-brasileira. O que problematizamos é como cada saber foi construído e quais jogos de poder eles produzem.

Ao analisar as falas dos professores nos esforçamos para perceber como os diferentes discursos sobre a cultura afro-brasileira penetraram genealogicamente nos seus saberes e condutas. Trata-se do que Foucault chamou de técnicas polimorfas do poder, ou seja, os diversos e, por muitas vezes, ambíguos efeitos de poder gerados por determinadas formas de saber em relação a um tema: negação, recusa, bloqueio, desqualificação ou exclusão, mas também a vontade, curiosidade, incitação, intensificação, etc. A análise debruça-se sobre a “vontade de saber” que lhe serve ao mesmo tempo de suporte e instrumento (FOUCAULT, 1988).

O cruzamento de discursos dos professores, das normas, relatórios e documentos escolares não são apenas formas de linguagem. Enquanto discursos implicam poderes, eles fazem parte de um processo de classificação e produção social de problemas que justificam as mobilizações práticas nas políticas educacionais para resolvê-los ao menos teoricamente (POPKEWITIZ, 2011). É desse ponto de vista que problematizamos quais as imagens da

negritude que povoam as práticas discursivas escolares no sertão alagoano a partir dos saberes e das práticas docentes.