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2 A CULTURA AFRO-BRASILEIRA NA CONTEMPORANEIDADE: DILEMAS NA

3.3 O currículo, a cultura afro-brasileira e os saberes docentes

Para Silva (2009), devemos compreender a legislação que normatiza o ensino de história e cultura afro-brasileira como estratégia de uma política educacional de promoção da igualdade racial. Tal contexto gera um incômodo não só em vários setores da sociedade brasileira, como também no próprio Estado brasileiro que, embora se proponha como republicano, resiste e acaba equacionando a diversidade de modo desigual.

Assim, mesmo que repouse em valores justos e se estabeleça legalmente, uma norma curricular não garante a efetividade de uma política afirmativa como um todo. Na verdade, a sua imposição aciona múltiplos saberes-poderes, interesses, discursos e disputas pelo estabelecimento de memórias individuais e coletivas (SILVA; FONSECA, 2007; SILVA, 2013; ARROYO, 2013).

Chamamos de saber aquilo que constitui leituras possíveis e contingenciais que se estabelecem historicamente para os indivíduos por meio de regras, estratégias, procedimentos, cálculos e articulações cujo efeito é a produção nomeada de verdade (FOUCAULT, 1979). Ele é uma prática política que favorece, legitima e interdita posições e exercícios de poder (FOUCAULT, 2012; 2014). Enquanto efeito de um conjunto de regras institucionalizadas, o saber não é produzido por um sujeito autônomo e livre, mas por um sujeito capturado e localizado em pontos de luta nessas tensas relações de poder (FOUCAULT, 2011). Desta forma, o saber de cada pessoa é sempre “particular, regional, local, um saber diferencial incapaz de unanimidade e que só deve sua força à dimensão que o opõe a todos aqueles que o circundam” (FOUCAULT, 1979, p. 170).

Apresentando-se em múltiplas formas, os saberes docentes são construções históricas marcadas por uma tensa rede discursiva que é inscrita na subjetividade de cada profissional por meio de complexas operações institucionais e relações de poder.

Conforme Tardif (2002), esses saberes são pragmáticos, diversificados, dinâmicos e reconstrutores das identidades profissionais ao longo do tempo. Eles são produzidos a partir de origens distintas: as ciências e disciplinas acadêmicas, a formação docente e as técnicas pedagógicas, os currículos e a normatividade profissional, a cultura pessoal, as interações

sociais e os juízos morais subjetivamente cultivados e nutridos, as relações afetivas, as experiências práticas e as reflexões sobre essas experiências. Essa diversidade constituidora dos saberes docentes os faz operar poderes que definem os conhecimentos, competências, habilidades, valores e juízos ensináveis. Para Josso (2002), os saberes são dispositivos biográficos da formação dos professores. Eles são construídos temporalmente ao longo da história de vida desses sujeitos e são formados não apenas por conteúdos tidos exclusivamente como racionais, mas também são compostos pelos sentimentos e imaginário de cada docente, o que lhes confere grande singularidade e possibilidade de liberdade.

Esses saberes, contudo, são tensionados entre os impasses da contemporaneidade. No momento em que as políticas educacionais neoliberais ampliam as agendas dos professores (BENELLI, 2014), ao passo que isentam os governos de realizaram investimentos que reestruturem o exercício desses profissionais (MARSHALL, 2011), geram conflitos que põem os saberes docentes em xeque quanto à sua legitimidade e eficácia (PETERS, 2011). Atualmente os professores se situam nas ambiguidades de práticas discursivas que os responsabilizam por um bom ensino, mas que ainda os desvalorizam social e profissionalmente (TARDIF, 2002; PIGNATELLI, 2011).

Os saberes docentes têm sido tratados durante muito tempo como uma espécie de “não saber” ou “saber insuficiente” que necessita de treinamentos científicos adequados para que se tornem eficientes (TARDIF, 2002). No entanto, essa visão tecnicista não é apropriada em termos políticos. É preciso efetivarmos abordagens analíticas, processos formativos e experiências pedagógicas que considerem os saberes docentes a partir da própria ótica e atividade desses profissionais.

Há toda uma diversidade de relações de poder que se estabelecem entre o currículo e os saberes que ele seleciona e põe em funcionamento. Assim, currículo e saberes são abertos e interferem um no outro, não numa relação mecânica de causa e efeito, mas numa relação positiva e disputável. Não como revelação ou reprodução de verdades absolutas, mas como a produção de novos e incansáveis regimes interessados de verdade (GORE, 2011).

Para Tardif (2002), os saberes curriculares correspondem aos discursos, objetivos, conteúdos e métodos que a escola categoriza e apresenta como saberes sociais relevantes de uma formação erudita. Diferentemente, acreditamos que os saberes curriculares são dispositivos práticos de produção e subjetivação de lutas políticas. Os saberes curriculares são manifestações polifônicas pelas quais a escola disputa com diversos sujeitos e outras instituições, a construção, manutenção e dispersão de conteúdos e práticas ensináveis. Embora

as normatizações pedagógicas do Estado sejam fundamentais, elas não são determinantes para garantir a produção das realidades prescritas.

Em contraposição e complementaridade aos saberes curriculares entram em movimento os saberes experienciais, ou seja, aqueles que são construídos no cotidiano do trabalho. Estes saberes são identificados, refletidos e avaliados pelos próprios docentes que representam, interpretam, compreendem e orientam as suas próprias práticas, incorporando novos hábitos de ensino, produzindo novos saberes e reinventando seu estilo e identidade profissional (TARDIF, 2002). Tardif percebeu que os docentes hierarquizam os diferentes saberes que possuem e, para muitos deles, os saberes experienciais são mais importantes do que os próprios saberes curriculares, pedagógicos e científicos, pois a experiência é quem orienta a prática de ensino no seu cotidiano de trabalho quando devem dominar, integrar e mobilizar esses saberes.

Deste modo, os professores fazem usos diferenciados dos currículos oficiais, de seus fundamentos e regras, ao criarem deslocamentos cujos efeitos são múltiplos e têm diferentes consequências políticas (OLIVEIRA, 2016). O currículo criado no cotidiano não corresponde apenas ao estilo de dar aulas ou às formas metodológicas assumidas nas práticas escolares. Ele é, sobremaneira, a produção de um saber no e sobre o currículo. Ao buscar solucionar os problemas cotidianos da vida no ambiente de trabalho, os professores criam processos curriculares que são múltiplos e abertamente transitáveis, nos quais se entrelaçam conhecimentos, valores, crenças, projetos, convicções, ignorâncias múltiplas, cujos efeitos são sempre diversos, provisórios e disputáveis (OLIVEIRA, 2016). Isso não quer dizer que a prática docente seja totalmente autônoma e resistente às prescrições curriculares oficiais, afinal elas são normas pelas quais o próprio docente é vigiado, avaliado e regulado, mas que pensar a construção desse dispositivo pedagógico implica em considerar as especificidades dos ambientes, situações e relações de poder que condicionam as suas múltiplas proliferações.

A produção de um currículo em perspectiva antirracista impõe a problemática de cobrar dos professores brasileiros um saber politicamente orientado, mas que tem sido historicamente dominado por táticas como a folclorização, o disciplinamento, a negação e/ou o silêncio. Há, portanto, uma tensão entre os ideais defendidos, a formação profissional e a relação dos docentes com esses “conteúdos históricos que foram sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em sistematizações formais” (FOUCAULT, 1979, p. 170) que os desqualificaram como “saberes ingênuos, hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível requerido de conhecimento ou de cientificidade” (FOUCAULT, 1979, p. 170).

O pensamento social brasileiro construiu uma multiplicidade de saberes sobre a cultura afro-brasileira, mas que não correspondem, necessariamente, aos saberes dessa cultura, pois

muito desse conhecimento produzido está submetido a diferentes regras e métodos institucionais ligados a concepções neoliberais. Sendo dominada teoricamente, a cultura afro- brasileira se tornou um saber legível conforme os regimes de verdade produzidos por poderes ocidentais.

Contudo, mesmo em se tratando de luta por reparação social, a inserção obrigatória desse tema no currículo brasileiro não garante em si a realização de um processo pedagógico democrático e libertário. Do contrário, pode legitimar o fato de que a cultura afro-brasileira permaneça e seja abordada no currículo formal enquanto não represente uma ameaça aos poderes conservadores. Conforme Foucault (1979), mesmo com todo o esforço genealógico para se desenterrar um saber dominado, pondo em evidência as operações de poder que o moldaram, há sempre o desejo e o risco desse saber, agora descolonizado, ser novamente recodificado e controlado para que volte a ser uma disciplina cujos efeitos de resistência e de outros exercícios de poder sejam eliminados. Essa é uma possibilidade de deslocamento da luta histórica pela elaboração de um currículo étnico a que devemos ficar sempre atentos.

É justamente em meio a essas tensões que os professores de História devem mobilizar o que sabem sobre o tema e efetivar suas práticas de ensino. Adicione-se a isso as dificuldades de estarem situados num local com uma infraestrutura urbana limitada, um incipiente compromisso do poder público com uma noção de currículo multicultural e onde imperam, não sem resistências, valores brancos, patriarcais, neoliberais e cristãos, como é o caso do sertão alagoano.

Deste modo, consideramos que o saber docente se localiza numa tensa disputa de posicionamentos entre os saberes culturais, curriculares e experienciais. É nessa encruzilhada que as enunciações se alimentam de valores morais, conceitos e preconceitos, objetivos e maneiras de agir. É desses encontros que se articulam várias operações de poder entre si e cujos efeitos produzidos nem sempre correspondem aos pretendidos.