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V Psicologia do Trabalho e Ergonomia Fundamentos e Contributos

5.7. Análise do trabalho e formação: o estreitar de uma relação

5.7.1. A análise ergonómica do trabalho como objecto da formação

O paradigma deste modelo de intervenção formativa reside na aposta na criação de uma dinâmica de aprendizagem construída no enriquecimento progressivo, a partir de momentos de trabalho em comum, da interacção formador/formando e da interacção dos formandos entre si, distanciando-se, deste modo, da relação pedagógica clássica de transmissão de conhecimentos.

O núcleo central deste projecto pedagógico assenta, em geral, no desenvolvimento da auto-análise conduzida pelo trabalhador, no seio de um diálogo permanente com o ergónomo-formador (Teiger, Lacomblez & Montreuil, 1997).

A intervenção formativa centrada na análise do trabalho tende assim a reconstituir até aos mínimos detalhes e com o contributo do trabalhador, o modo como este realiza a sua tarefa: as informações que recolhe, os raciocínios que desenvolve, as intenções que o orientam, as decisões que toma, os modos como gere o incerto e o imprevisto, os obstáculos que encontra, os gestos, os esforços, as suas comunicações.

resultam, em particular, para a saúde, a fiabilidade e a segurança, mas também, a longo prazo, para o emprego.

Nesse âmbito e como realçam Teiger et Frontini (1996), o objecto da formação dos actores da empresa, em análise do trabalho, é a aprendizagem de noções e métodos de análise das actividades do trabalho no seu contexto técnico-organizacional e das suas consequências sobre as pessoas, no que respeita ao desenvolvimento das competências, da segurança, higiene e saúde no trabalho, como um processo em construção e não como um estado a preservar.

Em consequência, privilegiam-se certas técnicas de recolha de dados, na medida em que facilitam este tipo de intervenção. O recurso ao vídeo pode constituir um momento forte no processo de formação, bem como a adopção de outros procedimentos, integrados num percurso necessariamente articulado com momentos de formação "em sala" e

"regressos" à situação de trabalho, com realização de exercícios práticos em tempo real.

Este aspecto reenvia-nos para a questão da articulação teoria / prática em alternância. De acordo com Savoyant (1996), todas as acções de um determinado domínio de actividade comportam sempre elementos de orientação (definição do objectivo a atingir, identificação da situação e determinação das operações de execução), de execução (operações de transformação efectiva da situação em função do objectivo visado) e de controle (verificação da conformidade da execução quer enquanto se desenrola, quer no produto final).

Deste modo, teoria e prática estão sempre unidas na actividade, na medida em que, por um lado, toda a actividade é "prática" e, por outro, toda a actividade repousa em conhecimentos e representações.

É, pois, a partir das verbalizações dos trabalhadores sobre a sua própria maneira de executar o trabalho e as suas repercussões que o ergónomo-formador vai introduzindo conceitos explicativos, em função do avanço da reflexão colectiva e das questões colocadas, à medida em que se desenrola o estudo no terreno e não segundo um

programa estritamente pré-definido pelo formador (Teiger, Lacomblez & Montreuil, 1997).

Como acentuam vários autores, nomeadamente e a título de exemplo, Teiger et Laville, (1991); Teiger, Lacomblez & Montreuil, (1997), neste modelo de formação não há um saber valorizado em detrimento de outro, mas sim a confrontação de duas modalidades de conhecimentos: o dos trabalhadores, a maior parte das vezes concretos e operatórios e o dos ergónomos/formadores, constituídos a partir de dados científicos gerais e da experiência adquirida pela prática de pesquisas no terreno. Estas duas modalidades de conhecimentos, no âmbito das suas especificidades e limitações, são complementares, num processo de aprendizagem mútua.

Na verdade e citando de novo Ginsbourger7 (1992, In Clot, 1995, p. 21), "o trabalho não é só consumidor de competências, mas também seu gerador" na medida em que, explicita Malglaive (1990, In Clot, 1995, p.38), a "tomada de consciência das ferramentas cognitivas utilizadas de forma implícita nas actividades práticas permite a sua mobilização quando confrontados com situações desconhecidas".

Esta formação em análise ergonómica do trabalho, de profissionais não ergónomos, efectua-se em contextos e para públicos variados. A sua especificidade está no facto de ser uma "formação pela e para a acção" partindo de uma concepção de Ergonomia enquanto Ciência da Acção.

Os princípios teóricos deste ponto de vista foram enunciados por Teiger (1993c; Teiger et Montreuil, 1995; Teiger, Lacomblez et Montreuil, 1997), que os situou na problemática das relações pensamento/acção, inscrita na dupla tradição da Filosofia da Acção e da Psicologia Construtivista.

Na tradição da filosofia da acção e, em particular da acção para a mudança, Teiger ilustra a opção assumida com um extracto de um texto de Sartre (1943, In Teiger, 1993c) :

"A decisão da acção de mudança procede da mudança de ponto de vista, de uma abertura conceptual e imaginária sobre um outro possível e, esta decisão de acção de mudança, desencadeia-se no dia em que nos tornamos capazes de conceber um outro estado de coisas e de decidir então que uma situação é insuportável (...) não é porque temos consciência que uma situação é insuportável que decidimos mudá-la, mas é no dia em que concebemos que uma situação pode mudar, que nos vamos dar conta que a situação é insuportável".

Esta doutrina filosófica reveste-se de particular interesse para a problemática ergonómica na medida em que, o momento a partir do qual "se pode conceber um outro estado de coisas" corresponde, precisamente, ao objectivo visado pelo tipo de formação que temos vindo a analisar, ou seja, o carácter dinâmico de transformação das representações relativas à situação de trabalho, como motor de mudança de ponto de

vista, abre a possibilidade de acção de mudança da situação.

Daí, tal como noutra sede afirmámos8, a importância da sua difusão em Portugal, pelo potencial que revela na construção de uma cultura de prevenção em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho porque, é precisamente a possibilidade de conceber uma outra maneira de estar, um novo ponto de vista sobre a situação de trabalho, que poderá permitir a sua mudança, a sua transformação.

O segundo ponto de reflexão relaciona-se com as relações entre conhecimento e acção, assumindo-se mais uma vez aqui um posicionamento na linha do construtivismo de Piaget (1970, In Teiger et Laville, 1991, p.56 e Teiger,1993a, p.91.) para quem «a questão fundamental é que todo o conhecimento está ligado a uma acção» e «conhecer consiste não na cópia do real mas no agir sobre ele e transformá-lo (...) de modo a

compreendê-lo em função dos sistemas de transformações aos quais estão ligadas as acções; (...) conhecer um objecto ou um acontecimento é utilizá-lo, assimilando-o a esquemas de acção».

Piaget (1974, In Teiger 1993b) refere, assim, como corolário, que uma das condições necessárias para compreender é a necessidade de ser bem sucedido na acção.

Nesta perspectiva, enfatizando a interligação entre compreender, conhecer e agir, a representação é considerada como um conceito mediador entre cognição e acção, desempenhando um papel determinante nos processos de aprendizagem.

Segundo Tegeir et Laville (1991), é a partir dos conhecimentos e representações iniciais que se pode desencadear o processo de aquisição e de transformação. O papel da palavra, no processo de simbolização e de despoletamento do pensamento, é essencial na descoberta e na apropriação, pelos trabalhadores, dos seus próprios conhecimentos no seio do colectivo. Isto porque, como reforçam os mesmos autores, a capacidade de agir depende de duas ordens de factores: a aquisição e o domínio de conhecimentos, saberes, saberes-fazer gerais e específicos e a aplicação desses conhecimentos na sua relação com o trabalho, no plano individual e colectivo.

No quadro teórico da formação em análise ergonómica do trabalho, assente no princípio de que, para se poder agir de uma forma mais eficaz, diversificada e com um olhar mais abrangente, é necessário que ocorra uma transformação das representações "sou bem sucedido" ou "consigo realizar" em representações "eu conheço" e "eu aprendo," o meio escolhido para facilitar a aprendizagem é o de um duplo movimento:

De reflexividade e centração, onde se procura que cada trabalhador compreenda cada vez melhor as suas actividades de trabalho, as suas determinantes e consequências; de

objectivação e descentração, procurando-se, neste, desenvolver e estimular a

capacidade de análise e de compreensão do trabalho dos outros. As representações elaboram-se e enriquecem-se neste duplo movimento (Teiger, Lacomblez & Montreuil,

O objectivo da auto-análise é o de facilitar e desenvolver a descoberta, pelos próprios participantes, das características implícitas da sua actividade de trabalho, das suas determinantes próximas e das suas consequências sobre a saúde, em sentido lato.

Esta abordagem faz assim emergir uma outra representação do trabalho, centrada na actividade, podendo dizer-se que é, então, que desabrocha a competência real (Teiger et Laville, 1991).

Independentemente das técnicas utilizadas, este método de análise "guiada," no âmbito de um diálogo-questionamento de tipo maiêutico, traduz-se numa proposta de

"aprendizagem pela descoberta acompanhada", cujos objectivos se podem resumir em

cinco palavras: (fazer) Dizer; (fazer) Descobrir; (fazer) Estruturar; (fazer) Realizar; (fazer) Imaginar.

A tomada de consciência cognitiva faz emergir a "competência real" na medida em que permite distanciação, generalização e despersonalização, pelo reconhecimento de que os problemas invocados, as dificuldades de realização do trabalho, os constrangimentos e perturbações que gera estão ligados ao trabalho e são partilhados pelos outros. Isto é, verifica-se um distanciamento do "eu" por uma aproximação ao "nós" (Teiger et Laville, 1991).

Por outro lado, o reconhecimento das competências reais postas em prática contribui para a revalorização das actividades profissionais e para a revalorização de si próprio

(Teiger, 1993b, Falzon et Teiger, 1995) - dado o elo estreito entre "conhecimento" e

"aumento de auto-confiança"9.

Neste nível de relação entre a ergonomia e a formação, a aprendizagem dos conceitos e métodos da análise ergonómica do trabalho pode assim ser considerada, de acordo com

Teiger (1993c); Teiger, Lacomblez et Montreuil (1997), como "ferramenta cognitiva" de transformação de representações, podendo contribuir para uma formação de tipo

"desenvolvimental", já que permite aos seus participantes adquirirem um maior

conhecimento e domínio de saberes sobre a sua função e posto de trabalho, adoptando novos pontos de vista que vão permitir a transformação da própria situação de trabalho e da sua relação com ela.

5.7.2. A análise ergonómica do trabalho como instrumento de concepção de