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3 A APLICABILIDADE DO ART 3º DO REGIMENTO DA JUSTIÇA

CAPÍTULO II A GRANDE VIRADA

II. 3 A APLICABILIDADE DO ART 3º DO REGIMENTO DA JUSTIÇA

O art. 3º do Decreto Introdutório ao Regimento da Justiça estabelece que aos indígenas de S.Tomé e Príncipe, das costas oriental e ocidental da África, podia ser aplicada a pena de trabalhos públicos remunerados.

Acontece que nem no Decreto introdutório, tampouco no próprio Regimento, especificava-se quem seria considerado indígena para os efeitos da aplicação da lei.

256 Art. 2º do Decreto de 18 de Dezembro de 1854 257

114 Isto somente ocorre em 20 de Setembro de 1894258, seis meses após a entrada em vigência do Regimento nas províncias ultramarinas. Necessário esclarecer que o

Regimento da Administração da Justiça nas Províncias Ultramarinas259 só foi publicado em Moçambique em 28 de abril de 1894, quando era governador interino o Sr. Lança Correia, que fora nomeado em 05 do mesmo mês e ano, entretanto, ainda que publicado em abril, teve o regimento de aguardar que a definição de indígena fosse conhecida, a fim de que tivesse aplicação quanto a estes, lembrando que, no art. 177 do Regimento o governador de Moçambique estava autorizado a criar tribunais especiais para julgamento das questões entre os indígenas, observe-se bem: a lei se reporta a tribunais especiais, o que em princípio nos faz refletir sobre uma organização judiciária.

O Decreto é publicado, mais uma vez, atendendo aos princípios da urgência e especialidade, art. 15º Acto Adicional nº 52 e no seu art.10º informa: “Para os effeitos d´este decreto somente são considerados indígenas os nascidos no ultramar, de pae e mãe indígenas, e que não se distingam pela sua instrucção e costumes do commum da sua raça” 260, no entanto, tal Decreto, só é publicado em Moçambique em 24 de novembro de 1894, data em que passa, efetivamente, a vigorar naquela província.261

É mesmo aqui que começa a delinear-se em tons muito claros o processo discriminatório em relação aos indígenas. Observe-se os delitos e transgressões que são apenados com a pena correcional: a especificação que parece ser taxativa, ou seja, somente estes crimes é que seriam punidos, alcança quase toda a população indígena: a) vadiagem; b) embriaguez; c) desobediências às autoridades: d) ofensa corporal voluntária de que não resulte impossibilidade de trabalho e que não seja praticada contra agentes da autoridade pública; e) ultraje público ao pudor; f) ultraje à moral pública; f) transgressão de posturas municipais, que corresponda multa a que o transgressor não pagar; g) transgressões dos preceitos regulamentares do trabalho indígena. Admite-se uma outra pena de trabalho correcional, com penalidade maior de que 90 dias, para os crimes não compreendidos no artigo antecedente.

Se analisarmos os tipos penais descritos acima, temos que a conduta do indígena, em quase todos os seus momentos, levava a que estes fossem enquadrados nos

258 D.G, nº 220 de 28.09.1894, p. 820 259 BOM, nº 17 de 28.04.1894, pp. 218-231 260 D.G, nº 220 de 28.09.1894, p.829. 261 BOM, nº 47 de 24.11.1894, p. 591-592

115 crimes tipificados. O Relatório de Ennes (1893) é muito contundente em relação a um deles, a embriaguez, que deveria ser combatida de todas as maneiras possíveis, porque ela, por si só um crime, era, também, causa da pratica de outras infrações; de acordo com ele: “[...] o negro bebeu, bebe e há-de beber, ninguém o impediria de fazer isto [...] satisfazer a paixão singular pela embriaguez, porque, não tendo outro licor, acharia meio de se embriagar com a água dos rios”. 262 Está claro que evitar a embriaguez tinha uma conseqüência: a disposição dos “braços” do que não se embriagava.

Sem dúvida que somente o estilo literário de Ennes é responsável por esta metáfora, mas ela serve para justificar porque a embriaguez está incluída nos crimes punidos com pena correcional e que fazia parte, junto com os demais aqui indicados, do seu projeto de reforma judiciária, já mencionado na base 7º. 263

Os julgamentos dos crimes aqui especificados, e os não especificados, art. 4º do Regulamento, eram feitos através de processo sumário, oral e que não admitia recurso, art. 5º. A técnica afastando-se do direito, a especialização retirando a garantia judicial do duplo grau de jurisdição. A Justiça sem erro era protagonizada em favor dos objetivos da lei, trabalho para os indígenas, que não tinham mesmo a quem recorrer, e, portanto, continuavam a conjugar os verbos da submissão: obedecer, trabalhar, cumprir, resignar-se. Um exemplo do que as autoridades podiam fazer em termos de aplicação de penas aos indígenas, sem qualquer lei que criasse o tipo penal, está no aviso da administração do Concelho de Moçambique, onde o administrador, Francisco José Diniz, avisa que vai ser dada ordem à polícia para prender todos os pretos de qualquer sexo, que depois das 10 horas da noite forem encontrados fora de casa.264Que tipo de crime estaria cometendo o “preto”? Qual a infração cometida?

O artigo 5º do Decreto cria um novo procedimento para a apuração dos crimes mencionados e para a sua punição, esclarecendo que este procedimento deveria ser observado até que um código de processo criminal fosse decretado para o ultramar. É bom que de logo se esclareça que, até o ano de 1930, não foi editado qualquer código de processo penal para o ultramar, não se podendo assim considerar o Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas.

262 ENNES, A., ob.cit., p.48 263 Idem p. 483.

264

116 Em 1912, o Juiz de direito Augusto de Vasconcellos apresentou um projeto de Código de Processo Penal para a Província de Moçambique. Observe-se bem que o código de processo era para todos na província e não especificamente para os processos crimes que envolvessem indígenas.

Em 1941 é criada a Missão Etnognósica da Colónia de Moçambique dirigida pelo jurista José Gonçalves Cota, que apresentou o seu estudo e um projeto de Código

Penal dos Indígenas da Colónia de Moçambique265, embora tal projeto não contenha

normas de direito processual.

Assim, à exceção dos casos indicados pela lei, o processo penal a ser observado era o estabelecido no Código de Processo Criminal da Metrópole,266 a exceção dos procedimentos que estabelecessem a existência de júri.

Os processos crimes indicados na lei (contra os indígenas) deveriam atender ao procedimento sumaríssimo, que admitia a discussão verbal, sem depoimentos escritos, corpo de delito indireto. Começava com uma participação policial ou administrativa e mediando apenas, entre esta e o julgamento, o intervalo indispensável para o exame direto, citação do réu e intimação das testemunhas de acusação e de defesa, não sendo permitida a intimação por carta e nem número maior de que três testemunhas. Eduardo Vaz Sampaio analisando o regimento em questão afirma que: “O processo sumario do artigo 5º, que simplifica immenso a instrução das causas origina, algumas vezes abusos por parte da policia – quase sempre indígena – que é geralmente chamada a servir de testemunha.” 267

O que tem de ficar bem claro é que os crimes, aos quais se podia aplicar a pena de trabalho correcional, estavam discriminados, não se podendo criar outras hipóteses de incidência. O que se podia fazer, de acordo com a lei, era transformar a pena correcional em pena de trabalho correcional por mais de 90 dias aos delitos não discriminados supra.

As autoridades que podiam aplicar tais penas estão discriminadas na lei, art. 181º e o processo é o que se chamava de polícia correcional; todos os demais crimes seriam julgados em processo ordinário pelo juiz de direito, embora a instrução e coleta de

265 COTA. J.G, (1946: 53- 157) 266 Art. 183º do Decreto de 20.02.1894 267

117 provas pudessem ser feitas tanto pelo juiz municipal, quanto pelo popular. Os juízes de direito, pois, tinham competência para todas as causas cíveis e criminais que não estivesse na atribuição dos juízes municipais e populares.268

Ainda no ano de 1894, o Decreto de 15 de Dezembro eleva a pena de prisão correcional no caso de reincidência, podendo alcançar até três anos.269