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CAPÍTULO II A GRANDE VIRADA

II. 3.1 Juízes municipais e juízes populares

Em 1894 a capital da Província era Moçambique e, portanto, cabeça da Comarca e onde estava instalado o Juiz de Direito, Dr. Manoel Pereira Pimenta de Souza e Castro270 e o Delegado do Procurador da Coroa e Fazenda, o Dr. Antonio Emídio de Angústias e Sá,271este último foi alvo de sindicância instaurada por força de diversas queixas de empresas comerciais estabelecidas em Lourenço Marques, sendo nomeado sindicante o juiz da Comarca, isto em 1897,272por ordem do então Comissário Régio, Joaquim Augusto Mousinho de Albuquerque, assim nomeado em 25 de Novembro de 1896.273

Em cada julgado, que não fosse sede de Comarca, funcionavam os Juízes Municipais que preparavam e julgavam as causas cíveis que não fossem de competência do juiz popular. Em matéria crime instruíam e julgavam as causas que não pertencessem a juízo especial e em que as penas fossem separada, ou cumulativamente, de prisão e desterro de até um mês; repreensão; censura; multa até os valores estabelecidos na lei e preparavam todas as demais causas, fossem crimes ou cíveis, em que tivessem jurisdição territorial, remetendo-as, depois, para os juízes de direito que tinham a competência para julgá-las. Podiam, ainda, prender ou fazer prender delinquentes, nos termos da lei. Os juízes municipais não tinham alçada, o que significa que das suas decisões e sentenças havia recurso para o juiz de direito. Eram escolhidos através de lista tríplice do presidente da relação do distrito judicial e informação do governador; a preferência estabelecia-se em favor de quem tivesse curso superior, ou formação

268 Art. 84º § Item 1º do Decreto de 20.02.1894 269 D.G. nº 286 de 17.12.1894

270

BOM, nº 20 de 19.05.1894, p. 268, trata-se da publicação da ratificação de juramento do Delegado do Procurador, que foi feito, anteriormente, em fevereiro do mesmo ano.

271 Idem.

272 BOM, nº 14 de 03.04.1897 273

118 secundária ou especial, ou seja, não necessariamente, precisava-se de qualquer formação especializada em direito. Art. 50º274

Os juízes populares, ou juízes de paz, funcionavam nas freguesias, eram nomeados para cada ano civil, também eram escolhidos em lista tríplice, apresentada pela corporação municipal e informada pelo juiz de direito respectivo. Esta autoridade não era peculiar, tão somente, ao direito português, também foi utilizada pela França, Decreto de 15 de maio de 1891, e, embora não tenham sido instalados na colônia francesa do Senegal, de acordo com Idourah (2001) “foi a instituição judiciária que mais tempo durou no Congo Francês”.275 A utilização desde juizado nas colônias não é, pois, uma peculiaridade portuguesa, nem, tampouco, a prática de investir as autoridades administrativas em funções do judiciário, o que já acontecia em França, reafirmando-se em 1889.276

Em 1894 são nomeados como juízes populares, através da portaria de nº 382, Manuel Guerreiro Cavaco e Manoel Fernandes Correia, este último como substituto do primeiro,277 para atuarem em Lourenço Marques, na sede da comarca, sendo o presidente ele, e os Juízes João Semedo Cardoso e Adelino Augusto Fernandes Vaz, os dois últimos por promoção, como juízes da Relação278.

Os juízes populares tinham o poder conciliador e de julgamento por equidade, ex

aequo et bono, nas causas cíveis sobre bens mobiliários (móveis e semoventes) ou sobre

danos. E aqui é que está a grande inovação em relação ao julgamento dos indígenas em causas cíveis, pois é nesta jurisdição que se observa, ao menos deveria ser observado, exatamente por força da autorização legal, o direito consuetudinário dos indígenas, veremos isto mais adiante.

274 D.G, nº 43 de 20.02.1894 275 IDOURAH, S.N. (2001:.68-69)

276 Idem, p.69-70. O decreto de 1889 no seu art. 1º investia as autoridades administrativas de Loango,

Brazsaville e Franceville nas funções de juiz de paz, que tinham competência para julgar as causas relativas às ações pessoais e mobiliárias cujo valor nao excedesse a a 1550 francos e ações imobiliárias que nao excedessem a 100 francos, nessas causas os julgamentos eram feitos em primeira e única instância. Também lhes foi atribuída competência em matéria de simples polícia e de polícia correcional nos delitos em que as penas aplicáveis fossem de simples multa ou pena de prisão não superior a dois meses. A jurisidição desses juízes, caso não fosse, através de regulamento, determinada pelo Governador, estava circunscrita ao território de cada circunscrição administrativa.

277 BOM, nº 33 de 18.08.1894 p.433 278

119 Nas causas crimes os juízes populares podiam, ex officio279 ou à requerimento da parte, levantar auto de notícia de qualquer crime cometido na freguesia, mencionando nos autos todos os indícios, circunstâncias e testemunhas que pudessem esclarecer os fatos, remetendo os autos ao juízo respectivo; também procedia a todos os atos e diligências do processo preparatório criminal, que lhes fosse requisitado pelos juízes de direito e populares. De suas decisões só havia recurso em casos de excesso de jurisdição, incompetência ou ofensa a lei,280 Paulo Pinto de Albuquerque comentando a existência desta divisão na instrução das causas crimes, argumenta que, neste particular,

[...] no direito ultramarino conseguia-se uma melhor observância do princípio da acusação nas causas puníveis com penas superiores à prisão ou desterro até um mês, repreensão, censura ou multa até um mês ou até 60.000 em face da divisão de competências entre o juiz municipal e o juiz de direito, cabendo a este apenas o julgamento da causa e àquele a instrução e a pronúncia. Acresce que a decisão do juiz de direito ultramarino, ao invés da do juiz de direito da metrópole, se encontrava, toda ela, sob o controle do Tribunal da Relação, pelo que os vícios cometidos pelo juiz na fixação dos factos provados, designadamente, com aproveitamento da prova da instrução e em prejuízo do princípio da imediação, poderiam ser sindicados pelo tribunal de recurso.281

Embora concordando que o duplo grau de jurisdição favorece realmente o princípio da acusação282, permitindo a reapreciação da prova e de todos os fatos argüidos na instrução, não há benefício algum em diminuir a importância do princípio da imediação, porque uma causa instruída e julgada por um único juiz tem muito mais condição de adequação à realidade dos fatos, uma vez que o contato com as partes, com os testemunhos, o ver e ouvir as reações de cada um exerce uma enorme influência no julgamento.

Nem os juízes municipais e nem os populares pertenciam ao quadro da magistratura, eram considerados meros funcionários da justiça,283 e estes últimos podiam cumular o cargo com qualquer outro administrativo de eleição, bem como com

279

Por iniciativa própria, sem necessidade de provocação da parte

280 Art.96 Itens 1º,3º e 4º e art. 97 Decreto de 20.02.1894 281 ALBUQUERQUE, P.P de, (2003:899)

282 Princípio da acusãço consiste na existência de uma iniciativa da ação, seja nos crimes públicos ou

privados, os primeiros por parte do Ministério Público;e os segundos pela parte ofendida, sendo certo que a autoridade judicial tem de ser acionada para atuar, não o podendo fazer “spont sua”. Além do mais, a acusação tem de estar bem delineada para que a prova seja direcionada aos fatos alegados e que devem ser comprovados na instrução da causa.

283

120 a prática do comércio, mas lhes era proibido exercer a advocacia, o mesmo ocorrendo com todos os outros juízes do ultramar e aos procuradores da coroa e fazenda.

Enquanto os juízes municipais não tinham alçada, sendo todas as suas decisões, fossem elas interlocutórias,284 fossem terminativas do feito, passíveis, a critério das partes, de recurso para o Juiz de Direito, o mesmo não acontecia com os juízes populares, que tinham alçada fixada, conforme dito acima, e das suas decisões somente havia recurso caso se tratasse de incompetência, excesso de jurisdição ou ofensa a lei.285

O Regimento suscita algumas dúvidas, conforme demonstra solicitação da Relação de Moçambique ao governo da Província a respeito da aplicação dos Arts. 1185º e 1197º da Novíssima Reforma Judicial, que, de acordo com a resposta da Metrópole, continua tendo aplicação no ultramar.286 Também resta dúvida em relação ao art. 14º sobre a substituição do juiz de direito pelo conservador do registro predial e a possibilidade de acumulação de função enquanto na substituição.287

Em 10 de agosto de 1895, António Ennes, que foi nomeado Comissário Régio em Moçambique em 30 de Novembro de 1894, cria, através Decreto Provincial de nº 66, a circunscrição de Maputo no distrito de Lourenço Marques, que deverá ser dirigida por um administrador, que poderia ser civil ou militar; nos Arts. 6º e 10º da portaria fixando-se a competência desta autoridade: as contidas no primeiro artigo, de natureza administrativa, e as do segundo, de natureza judicial.288 Ao administrador, pois, como juiz municipal, art. 9º, cabia o julgamento dos milandos, com um detalhe, é que estes milandos deveriam ter como uma das partes europeus, ou asiáticos, mas estava-lhe vedado interferir em milandos que devessem ser julgados pelos régulos ou chefes indígenas,289 aqueles, nomeadamente, em que as duas partes eram indígenas.

284

Decisões interlocutórias – Juiz decide questão incidente no processo para lhe dar andamento. Decisões terminativas pôem termo ao processo; são as sentenças, que podem ser terminativas ou definitivas, as terminativas extinguem a relação processual sem lhe analisar o mérito; as definitivas encerram a relação processual julgando o mérito da causa..

285

Art. 97º Decreto de 20.02.1894

286 Os artigos nomeados reportam-se à participação do Ministério Público nos feitos. A Relação

argumentava que, como a interferência do Ministério Público é obrigatória nos processos crimes, em que a sentença seja condenatória e a pena seja superior a cinco anos de degredo, como seria a aplicação dos artigos mencionados, uma vez que o art. 183º da reforma determina que só sejam escritos os depoimentos, se as partes não renunciarem ao recurso.BOM nº 12 de 21.03.1896, p 120

287 Idem.

288 BOM. nº 32 de 10.08.1895, pp. 317-319 289

121 Em 28 de Dezembro de 1895, António Ennes, faz uma nova remodelação na administração em Moçambique, e, através da portaria nº 78-A, altera a divisão administrativa das terras da coroa do distrito de Lourenço Marques, dividindo-o em cinco circunscrições.290

Maputo passa a ser a 5ª. Circunscrição, juntamente com o distrito de Catembe, entretanto, o Decreto provincial de julho de 1895 continua em vigor, somente Catembe é que deve observar o estabelecido para as demais circunscrições indicadas, art. 2º.291As circunscrições, à exceção da 5ª, deveriam ser administradas por um administrador, que seria um oficial do exército, que, também, como o administrador de Maputo, tinha funções judiciais, era ele, também, o juíz municipal e tinham competência para aplicar multa de trabalho de 1 a 15 dias aos indígenas que fossem presos por embriaguez; desordem, ofensas à moral e ao pudor, desobediência à autoridade, infrações a regulamentos policiais, além de julgar milandos em que uma das partes não fosse indígena, porque, caso os milandos se estabelecessem entre dois indígenas, a competência era do régulo, ou chefe indígena,292 como já o era anteriormente.

Se faz necessário notar que se os indígenas, de acordo com o que consta do Art.11º, recorressem da decisão, tal recurso não tinha efeito suspensivo, ou seja; a condenação tinha de ser imediatamente cumprida, o que significa dizer que, caso fossem absolvidos, no juízo “ad quem293” teriam cumprido uma pena inutilmente. § 3º do Art. 11º.

Criado o Distrito Militar de Gaza em 1895, as funções judiciais eram exercidas pelo governador militar do distrito, Art. 3º do Decreto provincial de nº 78-B.294

O Regimento, no Art. 4º, extinguiu as Juntas de Justiça, isto em fevereiro de 1894, sendo publicado em Moçambique em abril do mesmo ano, portanto, ou numa, ou noutra data, as Juntas deveriam ter deixado de funcionar, acontece que, conforme demonstram os acórdãos publicados no Boletim Oficial de Moçambique295 em 18 de abril, a Junta continuou a julgar. Observe-se que as sessões ocorreram depois da

290 BOM, nº 52 de 28.12.1895, pp 509-511. 291 Idem, 509

292 Ibidem,. Arts 11º-12º p 510. 293

Juízo de revisão -Segunda instância

294 BOM, nº 52 de 28.12.1895, p.511.

295 BOM, nº 18 de 05.05.1894, p. 247; BOM, nº 19 de 12.05.1894, p. 255-256; BOM, nº 20 de

19.05.1894; BOM, nº 22 de 02.06.1894 p.289; BOM, nº 25 de 23.06.1894, p. 326; BOM, nº 26 de 30.06.1894, pp..338-339. BOM, nº 30 de 28.07.1894, p. 409-410.

122 publicação do Regimento no Diário do Governo, o que nos leva a questionar qual a data em que efetivamente entrava em vigor as leis ultramarinas: a da publicação no diário do governo ou nos boletins oficiais? A resposta lógica deve ser a da publicação no Boletim Oficial das Colônias.

A instalação do Tribunal da Relação prevista no Regimento, não se fez de imediato, o que levou a Antonio Ennes, como Comissário Régio em 1895, através da portaria de nº 07, e justificando o seu ato como sendo para abreviar os prejuízos da não instalação do Tribunal da Relação em Moçambique, isto, segundo a norma “[...] por falta de apresentação dos juízes nomeados [...]” determinar, por ordem do Rei, “[...] que o presidente da relação constitua e faça funccionar esse tribunal, convocando para tal fim os supplentes a que se refere o art. 13ª do Regimento [...]”.296 Os suplentes seriam, em Moçambique, de acordo com a lei, o Juiz de Direito e o conservador do registo predial da comarca onde funcionava a relação. Bem se vê, pois, que de nada adiantava a urgência em que as leis eram editadas para o Ultramar, tendo em vista que muitos das medidas ali criadas eram de difícil execução pela falta de material humano.

Nesse mesmo ano, 1895, toma posse, como governador do distrito de Lourenço Marques, o Capitão de Engenharia Alfredo Augusto Freire de Andrade,297 que mais tarde, em 1906-1908, passa a ocupar o cargo de Governador Geral da Colônia.

Funcionando o Tribunal no ano de 1895, o Conselheiro Presidente determina que sejam criados julgados municipais nas comarcas de Moçambique, Quelimane e Inhambane, e em obediência a tal determinação, através da portaria de nº 105-F de 16 de abril de 1895, são criados: um julgado em Moçambique em Antonio Ennes; quatro em Quelimane: Mutarara, Chinde, Tete e Zumbo, sendo os dois primeiros em territórios de prazos, os dois últimos em territórios sujeitos a comandos militares e três em Inhambane: Inharrime, Maxixe, Massinga. 298