• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II A GRANDE VIRADA

II. 3.4 – Julgamento ex aequo et bono

Efetivamente, o caminho para a aplicação do princípio do “respeito aos usos e costumes dos indígenas” era a equidade. A equidade, de acordo com Correia Teles, citado por Nuno J Espinosa Gomes da Silva (2000), “[...] em sentido largo, é ao meu ver, o mesmo que Direito Natural não escripto, isto he não sancionado por Leis Positivas.” 314

Reportamo-nos a Correia Telles porque a definição de equidade dada por ele refere-se ao Código Civil Português de 1867, vigente à época da edição do Regimento de Justiça de 1894, portanto era observando este conceito que os senhores juízes populares e os territoriais deveriam julgar as causas de sua competência em matéria cível.

O autor do projeto que foi transformado em Código Civil Português, respondendo às críticas que lhe foram dirigidas por Vicente Ferer, diz: “falando-se no artigo nos princípios geraes da equidade, parece-nos que mui claramente se indicavam os princípios do direito natural e da boa razão a que se refere a lei de 18 de Agosto de 1769 [...]”. 315 O Código, entretanto, apesar do projeto de Seabra falar em equidade, quando da sua aprovação definitiva, se reporta a princípios de direito natural. E o artigo ficou com a redação seguinte: “Art. 16º - Se as questões sobre direitos e obrigações não poderem ser resolvidas, nem pelo texto da lei, nem pelo seu espírito, nem pelos casos análogos, prevenidos em outras leis, serão decididos pelos princípios de direito natural, conforme as circunstâncias do caso.” 316

Todavia, a aplicação da equidade, que no dizer de Rebelo de Souza “é a justiça do caso concreto”,317 em relação às causas que envolvessem indígenas teria de ser valorada de uma maneira bem diversa das que envolvessem europeus. Por que isto aconteceria? Porque a equidade autoriza o Julgador a, afastando-se do texto da lei e do espírito dela, procurar razões para o julgamento nos princípios gerais da equidade, procurando aplicar no caso concreto, um direito mais justo, mais equivalente ao estágio de civilidade do indígena. Este estágio de civilidade, pois, passava pelo entendimento de justo e injusto diante dos usos e costumes indígenas. Para tanto, estes costumes e usos

314 GOMES DA SILVA, N.J.E. (2000:437) 315 Idem.

316 Código Civil Portuguez de 1867, Lisboa, Imprensa Nacional, (1868:5) 317

128 teriam de ser valorados pelo aplicador da lei, diferentemente do que ele fazia na aplicação do seu próprio direito, o português, que era completamente diverso de tudo o quanto se praticava entre os indígenas. O direito natural teria de ser, no caso da aplicação da justiça aos indígenas, não o que era universalmente aceite pelos europeus como inerente à natureza humana, (ius naturale) mas sim o que poderia ser entendido como tal para os indígenas. A moral indígena não era igual à moral como entendida pelos europeus, portanto, o padrão de comportamento considerado como justo e respeitado pelos europeus, não poderia ser utilizado em relação aos indígenas. Então como se faria isto? Aplicar-se-ia o direito português ou o direito indígena? Entender-se- ia o que como comportamento lógico? E o que seria lógico na visão do “português” em relação ao comportamento dos indígenas, que para eles tinham “costumes bárbaros”.

Estaria o juiz popular, um juiz leigo, que não fazia parte do judiciário, apto a realizar o processo lógico que permitiria a observação do principio da equidade? E, em relação ao que estabeleceu o Código de Seabra, o Código Civil Português, saberia ele distinguir o que seria equidade e o que seria direito natural?

Entendendo-se como direito natural aquele que tem uma origem superior, que poderia ser classificado como um direito comum a todas as gentes, que é anterior ao direito positivado pelas leis, que funciona como um orientador de princípios morais e da boa lógica de convivência, um direito que é natural ao indivíduo, nasce com ele; estaria o Juiz popular fazendo, efetivamente justiça, ao recorrer aos princípios morais ditados por este “ius naturale”? E em que consistiria para ele este direito natural? Seria aquele seguido pelos que professavam a fé cristã e pelos princípios estabelecidos pela religião cristã? Se assim fosse já se cometeria o primeiro erro do julgamento, porque a crença dos indígenas nada tinha a ver com a fé cristã. Os seus mitos de origem, as suas divindades, a crença no poder dos antepassados, enfim, o seu direito natural, não tinha qualquer correspondência com os dos portugueses, portanto, qualquer julgamento que recorresse ao direito natural para resolver a questão, estaria comprometido, seria, na realidade, um julgamento feito com parcialidade.

Distinguindo o direito natural da equidade, que não são equivalentes, porquanto um se baseia realmente numa lei superior, que atinge todos os homens, um direito supranacional, como se fosse uma regra moral aceita por todas as gentes, e a outra, a equidade, se baseia no bom senso, na valoração do indivíduo, nas circunstâncias em que

129 ele vive, no seu grau de conhecimento, nas praxes locais, o julgador teria de comparar isto com o que está estabelecido no texto da lei com vistas a minorar os efeitos da sua aplicação. Teria, pois, o juiz popular condição de julgar as causas que envolvessem direito de propriedade entre indígenas, salientando que os casos que envolviam propriedade, posse, enfim, relacionamento com a terra, na sua grande maioria, estavam estreitamente ligados com direito sucessório, completamente diverso do direito sucessório regulamentado pela metrópole?

Que tipo de bom senso, que tipo de juízo de equidade, poderia ser feito por quem desconhecia, completamente, o direito costumeiro dos indígenas? Como o aplicador da Justiça lidaria com o seguinte costume:

[...]Antes do casamento as cousas são assim. Uma vêz, porém, consumado o casamento a fidelidade da mulher é uma condição essencial para a harmonia conjugal.

O seu adultério gera ao mesmo tempo a obrigação de indenizar o marido e o direito ao divórcio.

Neste campo não podemos entrever o menor sinal e honra ferida. A honra é um sentimento e não um interesse material.

Mas se dissermos que o homem traído, por vezes mata a mulher e o cúmplice, ou que se suicida e que esses factos se dão igualmente, quando se trate de cônjuges em regime matriarcal, ou em regime patriarcal [...] não podemos negar a existência dum sentimento de honra ferida, em alguns casos de adultério da mulher.

Parecerá absurdo, porém, pensar do mesmo modo quanto a lòmues, macuas, achimirimas, tacuanes, alolos, maones, macondes e alguns ayauas, que oferecem as suas mulheres aos visitantes ou hóspedes, que, as trocam, as emprestam por certo tempo. Não exageremos, contudo, reconhecendo-lhes um sentimento de honra muito especial, mas bem definido. Quando a mulher se entrega a um estranho com consentimento do marido tudo está bem para êste que julga ter cometido um acto de mera simpatia para com o estranho ou até de cortezia, em alguns casos, mas sem aquele consentimento a desonra será manifesta podendo fàcilmente originar uma cena sangrenta.318

Bem verdade que o juiz popular, de acordo com a lei, somente aplicaria o juízo de equidade nos casos por ela nomeados, mas como um juiz se posicionaria diante desta regra de direito natural dos indígenas das etnias indicadas no texto, de ceder a sua mulher a um visitante para demonstrar cortesia. Como ele reagiria em uma causa que envolvesse algum fato relacionado a um empréstimo de mulher? Que juízo de valor ele

318 AHM-FDSNI, Cx. 1638. Estudo de Etnologia mandado elaborar pelo Governo Geral de Moçambique

em 1944 - II parte – DIREITO CRIMINAL CONSUETUDINÁRIO.- O sentimento da Justiça – O conceito do bem e do mal – A honra conjugal – O altruísmo – O Amor.(grifo nosso)

130 faria diante deste fato sabendo que no seu universo, no seu direito jamais um empréstimo deste aconteceria, até porque não havia qualquer previsibilidade disto seja na lei positivada, seja no direito natural?

O Juízo de equidade não parte do nada, há de existir uma norma regulando uma determinada conduta, para que se possa avaliar a conveniência de ser aplicada, ou não, com todo o rigor, a lei regularizadora, portanto, o Juiz popular julgando uma questão de terras entre indígenas, ou entre indígenas e um não indígena, teria de conhecer, e bem, os usos e costumes dos indígenas, bem como a lei portuguesa, além dos princípios morais, que não poderiam ser tratados como universais, em relação aos indígenas.

Esclareça-se por oportuno, que onde não existisse juiz popular, as atribuições judiciais eram dos administradores, muitos deles militares, também, sem formação jurídica, acostumados com os rigores da lei e da hierarquia.

Mas no particular da aplicação dos usos e costumes dos indígenas, os senhores administradores, mesmo não sabendo que assim estavam procedendo, aplicaram o princípio da equidade319 em muitos dos seus julgamentos, pois, em muitos deles, agiam com bom senso no que se refere à observação dos usos e costumes indígenas, embora este balanceamento fosse ordenado, não por princípios gerais de justiça, moral, igualdade, e sim pelas próprias características morais pessoais do julgador, o que equivale a dizer que o Julgador detinha um poder discricionário no momento da aplicação da lei conforme esclarece Dennis Loyd: “Este corretivo é geralmente introduzido conferindo um certo poder discricionário para interpretar as leis mais no espírito de equidade do que na adesão estrita à letra da lei e para limitar ou controlar os seus efeitos em casos de adversidade ou sofrimento”.320

Os administradores de circunscrição, conforme demonstraremos no decorrer deste trabalho, efetivamente aplicaram, em muitos julgamentos de “milandos”, a equidade, sem o saber, sem ter dela qualquer conhecimento técnico, não só em causas cíveis e comerciais, mas, também, nas pequenas causas criminais que lhe eram apresentadas, a exemplo do que nos trás Harry G.West. citando Edgar Nasi Pereira, que conta que:

319 Sobre equidade e direitos naturais ver: Dennis Lloyd – A Idéia de Lei (2000: 136-164); John Rawls –

Uma Teoria da Justiça (1891:101-106);__Justiça como Equidade- Uma Reformulação (2003); Mário Curtis Giordani – Iniciação ao Direito Romano (2000:90-95).

320

131 um administrador distrital da época colonial, em Mueda, a quem um homem – acusado de matar um parente acusado de feitiçaria – foi trazido pelas autoridades gentílicas para ser julgado. O administrador relata os pormenores do caso com vaga curiosidade, antes de referir como a morte do acusado através de contrafeitiços tornava irrelevante a decisão que ele tinha de tomar entre, por um lado, aplicar o código penal e considerar o acusado culpado de homicídio ou, por outro lado, indultar o acusado devido a «circunstâncias atenuantes» resultantes de «convicções» sancionadas culturalmente. 321

II.4 - A DEFESA DE UMA JUSTIÇA ESPECIAL PARA OS INDÍGENAS EM