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A aprendizagem informal é (apenas) uma aprendizagem de saberes práticos? 41

1 CAPÍTULO I APRENDIZAGEM, COGNIÇÃO E EXPERIÊNCIA CONTRIBUTOS TEÓRICOS

1.3.   O advento “formal” da aprendizagem informal 35

1.3.3.   A aprendizagem informal é (apenas) uma aprendizagem de saberes práticos? 41

É frequente associar-se a aprendizagem informal ao conhecimento empírico e a aprendizagem formal ao conhecimento científico, associação que remete para uma outra relação dialética importante na história do conhecimento humano: a que se estabelece entre empiria e ciência.

Foi Bachelar quem, em 1934, avançou o conceito de rutura epistemológica para marcar a cisão entre o conhecimento científico e o conhecimento decorrente do senso comum (ou representações). Segundo o filósofo, tratava-se de uma rutura nos planos do conteúdo e processual que só poderia dar origem a uma pedagogia da retificação ou da

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refutação em que as representações eram consideradas obstáculos à formação de

conhecimentos científicos, devendo, por isso, ensinar-se contra as representações e não com elas. Na mesma linha de pensamento, os pedagogos “da refutação”, dos quais se destaca Lesne (1977), rejeitam radicalmente o postulado de uma possível geração espontânea dos conhecimentos científicos e de um prolongamento natural entre conhecimento empírico (“representação”) e conhecimento científico. Esta corrente filosófica e pedagógica defende que se conhece contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal feitos e que “aceder à ciência é aceitar uma mutação brusca que deve contradizer o passado” (Bachelard, 1934).

Uma outra via de encarar a relação entre conhecimento empírico e conhecimento científico surgiu com Giordan e De Vechi (1987), que se insurgem contra o excesso de uma pedagogia da refutação. Para eles, com efeito, o reconhecimento da rutura epistemológica não implica uma pedagogia que se contentaria em fazer emergir as representações dos aprendentes apenas com o fim de as refutar e de as desqualificar em seguida face aos conhecimentos científicos a ensinar. Consideram que, pelo contrário, é exatamente através do confronto dialético contínuo entre as duas explicações (a contida nas representações do aluno e a proposta de quem ensina) que as representações poderão ser ultrapassadas por retificações sucessivas. As representações nem sempre constituem obstáculos à aprendizagem e o seu estatuto epistemológico de “erro” pode ser extremamente relativo em certos casos. Assim, para estes autores, deve aprender-se ora contra ora com as representações.26

Mas, voltando à rutura epistemológica, esta define o conhecimento empírico como aquele que, sendo desenvolvido pelos indivíduos através do contacto direto e quotidiano com a realidade e transmitido de geração em geração, é o produto de uma elaboração espontânea e superficial da razão. Tem como principais características o facto de ser ametódico (baseia-se na experiência quotidiana feita sem planeamento rigoroso), assistemático e fragmentário (não estabelece conexões entre conhecimentos), particular                                                                                                                          

26 Esta corrente está alinhada com o paradigma do equilíbrio de Piaget (1977, 1991 [1970]), no qual os conhecimentos anteriores do sujeito são encarados como uma matriz, uma estrutura de acolhimento, a partir da qual os elementos de informação novos são necessariamente apreendidos (assimilados). Quando estas informações novas entram em conflito com a estrutura de acolhimento ativada, esse movimento de assimilação pode conduzir, num determinado momento, a uma transformação (acomodação) dessa mesma estrutura. Nesta perspetiva, só pode haver aprendizagem com e, ao mesmo tempo, contra os conhecimentos prévios do sujeito, uma vez que a aprendizagem (a acomodação numa estrutura de acolhimento) supõe que haja, no mínimo, em simultâneo assimilação de informação nova pela estrutura de acolhimento e conflito entre esta e aquela.

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(liga-se sempre a um aspeto da realidade a partir do qual são feitas generalizações apressadas e imprecisas), subjetivo (depende de juízos pessoais a respeito das coisas, variando de indivíduo para indivíduo), dogmático (os seus conhecimentos são tidos como um conjunto de certezas - crenças, preconceitos, estereótipos, etc), pragmático (é orientado essencialmente para a ação, para a prática, para a eficácia da ação) e com valor utilitário (interessa-se essencialmente pelo “como fazer” e não pelo “porquê”).

Nos contextos informais que podem ser muito diversos (família, trabalho, grupo de amigos, associações, autoaprendizagem através de computador/internet, bibliotecas) adquirem-se, de facto, muito frequentemente conhecimentos e competências de base não-científica/empírica que, numa perspetiva de rutura epistemológica, são menos

válidos que os conhecimentos científicos adquiridos por via formal, sobretudo através da

instituição escolar.

Confrontando esta visão polarizada do conhecimento, existe uma outra abordagem que considera que os diferentes tipos de conhecimentos são válidos e que a fronteira entre conhecimento empírico e conhecimento científico não é estanque. Nessa visão, integrada no pensamento educativo de Paulo Freire (1972, 1996), considera-se que os adultos, nomeadamente os pouco ou não escolarizados, são portadores de saberes válidos, adquiridos ao longo do seu percurso de vida e que lhes garantiram a sua inserção em contextos familiares, profissionais e sociais. Todos nós aprendemos, adquirimos saberes de vários tipos ao longo da nossa vida, do nosso processo de socialização, de forma mais ou menos informal. Essa aprendizagem é encarada como um contínuo realizado ao longo de um percurso de vida, não se atribuindo valoração diferente às aprendizagens formais e às informais.

Independentemente do valor que lhes é atribuído, o facto é que os conhecimentos teóricos transmitidos pelas instituições de ensino e os saberes decorrentes de práticas são diferentes. Estes últimos são saberes contextualizados, nem sempre passíveis de explicitação e de objetivação. Como refere Lahire (1993b: 51), “os saberes práticos podem ficar invisíveis aos olhos dos seus próprios portadores”. Os saberes resultantes de práticas raramente se manifestam sob a forma codificada do saber, através do discurso verbal ou escrito. Por isso são muito difíceis de apreender. Tanto por quem os detém como por quem os investiga. Parecem opacos, estreitamente ligados à prática, à situação, à experiência, dificilmente extraíveis, objetiváveis, concetualizáveis.

Nesta linha de pensamento, Cavaco (2009: 655) afirma que “o saber resultante da experiência é um saber-empírico, endógeno, operatório e precário (…) porque está intimamente ligado às situações concretas.”. É o caso dos saberes rotineiros, mecânicos, postos em ação de modo automático, que constituem “saberes tácitos associados à

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opacidade da experiência”. Situados ao nível do inconsciente, na maioria das vezes, não são objeto de reflexão e de formalização. “Só um trabalho de reflexão sobre a ação permite que a partir deles possa haver transferência, generalização, abstração e conceptualização”. (idem: 655). Como refere Courtois (1992: 99, citado por Cavaco, 2009: 655), “o que é verbalizável constitui apenas uma parte dos saberes experienciais”, sendo o implícito e o subentendido mais que a parte passível de ser dita (idem: 655)

A natureza das aprendizagens realizadas - saberes teóricos ou saberes decorrentes de práticas – está muito relacionada com a sua forma: os saberes teóricos aprendem-se sobretudo em contextos formais, os saberes decorrentes de práticas sobretudo em situações informais. Mas atualmente, face à multiplicação de formas de divulgação do saber científico e à facilidade de acesso proporcionada pelos meios tecnológicos, esta relação deixou de ser simples e direta. Se, por um lado, a instituição escolar tenta incorporar crescentemente, seguindo a proposta centenária de Dewey, a experiência dos alunos, trazendo experiência e saberes práticos para a sala de aula, por outro lado, o campo da aprendizagem informal alarga-se até limites insuspeitados há alguns anos atrás. Nas sociedades contemporâneas, com a divulgação da cultura científica através de meios tecnológicos crescentemente partilhados por todos, é cada vez maior a possibilidade de se realizarem em contextos informais, aprendizagens conducentes à aquisição de saberes teóricos. Estes são, portanto (e paradoxalmente?),

saberes teóricos adquiridos informalmente.

A comum diferenciação entre aprendizagem experiencial (sobretudo ligada ao saber-fazer) realizada em contextos informais e a aprendizagem teórico-científica realizada em contextos formais (conducente aos saberes teóricos) parece-nos, pois, carecer, atualmente, de capacidade para explicar cabalmente o fenómeno da aprendizagem informal.