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3 MEMÓRIA E HISTÓRIA: PORQUE LEMBRAR É PRECISO

3.4 Formação continuada – construção de um discurso descontínuo; a ruptura

3.4.2 A aproximação com as teorias “progressistas” da Educação Física

Se a aproximação com os debates da Educação Infantil é compartilhada pelas cinco depoentes, a aproximação com as teorias progressistas da Educação Física tem um lugar de destaque na fala de uma delas, Raquel, tendo sido citada na fala da professora Sílvia em outros dois momentos. Apesar de aparecer com destaque maior apenas em uma das narrativas consideramos pertinente articular o tema tendo em vista a riqueza de detalhes com que a professora retoma este elemento em suas memórias. Também podemos notar como na narrativa a professora faz uma articulação deste tema com a possibilidade de estruturar uma Educação Física que não esteja vinculada aos modelos escolarizantes.

A produção das teorias progressistas da Educação Física ganha força na década de 80, do século passado, quando os profissionais da área de Educação Física abrem-se para novas interfaces teóricas no campo, principalmente nos cursos de mestrado, com as áreas do campo das ciências humanas e sociais, que segundo Bracht (1999) evidenciam-se aquelas ligadas à sociologia e filosofia de vertente marxista. É neste período que a crítica ao paradigma da aptidão física e esportes, paradigma este que orienta a formação dos profissionais na área de Educação Física, toma impulso onde se denuncia a vinculação deste projeto de formação dos profissionais, com a manutenção do status quo. Neste sentido acompanhamos a reflexão de Bracht (1999, p. 76) quando afirma que no paradigma que orienta a formação e a prática dos professores de Educação Física pautada na aptidão física e no esporte

[...] a primeira [...] era considerada importante para a capacidade produtiva da nação [da classe trabalhadora] [...] e o segundo, pela contribuição que traria para afirmar o país no concerto das nações desenvolvidas (Brasil potência) e pela sua contribuição para a primeira, ou seja, para a aptidão física da população.

O autor afirma ainda que na crítica a este paradigma várias abordagens são elaboradas. No entanto aquelas que articulam uma posição para a área de Educação Física que se oponha à manutenção do status quo são as que se vinculam “a uma teoria crítica da educação, no sentido de fazer da crítica do papel da educação na sociedade capitalista uma categoria central” (BRACHT, 1999, p.79), neste último caso o autor cita as teorias progressistas denominadas: pedagogia crítico-superadora e pedagogia crítico-emancipatória. A primeira perspectiva, orientada no materialismo-dialético, tem como base pedagógica as reflexões produzidas na pedagogia histórico-crítica. Formulada por Soares et al (1992), cuja obra intitula-se Metodologia do Ensino da Educação Física, para esta perspectiva

[...] o objeto da área de conhecimento EF é a cultura corporal que se concretiza nos seus diferentes temas, quais sejam, o esporte, a ginástica, o jogo, as lutas, a dança e a mímica [...] propõe que este seja tratado de forma historicizada, de maneira a ser apreendido em seus movimentos contraditórios (BRACHT, 1999, p. 79).

A segunda perspectiva foi formulada pelo professor Elenor Kunz, da Universidade Federal de Santa Catarina. Tem como principais influências a pedagogia de Paulo Freire, a fenomenologia de Merleau-Ponty e referências da Escola de Frankfurt. “A proposta de Kunz parte de uma concepção de movimento que ele denomina de dialógica [...] A proposta aponta para a tematização dos elementos da cultura do movimento, de forma a desenvolver nos alunos a capacidade de analisar e agir criticamente nessa esfera” (BRACHT, 1999, p. 80)

Nas narrativas de uma das professoras aparecerá uma identificação maior com a segunda perspectiva, a crítico emancipatória, apesar de as duas perspectivas terem sido tema de debate da formação dentro do período por ela narrado conforme constatamos nos documentos oficiais e no depoimento da consultora entrevistada169.

Atrevo-me a dizer que esta identificação a qual me refiro encontra um registro/correspondência nas experiências da infância com Educação Física, nas quais a professora relata momentos prazerosos vividos na escola nas aulas de Educação Física, onde não havia exclusão, onde meninos e meninas brincavam juntos e Assunta, a professora de Educação Física na época, é também lembrada com muito carinho. Se por um lado esta identificação encontra correspondência na infância, por outro representa oposição àquilo que viveu na formação acadêmica que registro, quando da análise dos depoimentos, como sendo eminentemente técnica, excludente, produtora de dor e sofrimento.

Passemos então aos trechos do depoimento no qual a professora Raquel expressa como viveu na formação continuada a aproximação com as teorias progressistas da Educação Física, mais especificamente a perspectiva crítico-emancipatória.

Entendo que nos dois momentos de sua experiência, na infância e na formação continuada ela se afasta da experiência que viveu durante sua formação acadêmica.

169 O documento tem a seguinte referência: Florianópolis, 1996a. Destaco a seguir o trecho da fala da consultora

entrevistada, no qual faz referência a outra perspectiva, não contemplada no depoimento da professora, a perspectiva crítico-superadora, neste trecho ela se remete a perspectiva referindo-se aos autores como – Coletivo de autores: “Então nesse sentido, a formação que acontecia nessa Gestão (Frente Popular) era completamente diferente dessa formação que nós temos agora nos últimos 8 anos (Forca Capital). Por que? Porque nesse momento da Gestão da Frente Popular os consultores se encontravam. Eles discutiam. Nós sabíamos o que acontecia no ensino fundamental, nós tínhamos os textos gerais e precisávamos seguir os princípios filosóficos gerais... na época bastante pautado pelo materialismo-histórico. Nós estudávamos Vigotsky, nós estudávamos Wallon. E eram as referências principais que nós tínhamos pra Educação Física também. O que nós tínhamos, o Coletivo de Autores, que na época ainda era a grande... e acredito que ainda seja a grande referência. Então nós tentávamos transpor elementos do Coletivo de Autores juntamente com os princípios filosóficos e pedagógicos dos documentos mais gerais, e então a gente tentou começar a pensar a Educação Infantil, o 0 à 6” (Entrevista Déborah, 2004).

[...] eu tive o contato com o Kunz porque na Frente Popular nós tínhamos os professores [consultores] que eram da Universidade e nessa época o Kunz volta do doutorado e começa a divulgar a teoria do doutorado dele, a palavra-chave dele era se movimentar ele queria estar passando alguns temas da Educação Física, o atletismo por exemplo, e eu participei de uma oficina que ele desmistificou o atletismo, de que forma a gente poderia dar corridas, saltos, de um jeito diferente, a gente corria de um jeito não tão forçado, de saltar em altura na medida que você estipula, ... ele propõe assim _ porque você não salta de um barranco? porque as crianças elas se movimentam de uma outra forma, eles saltam de um outro jeito, então ele reestrutura, ele reelabora ele redimensiona o atletismo, ele não deixa de dar o salto, de proporcionar a criança que ela salte, mas não de um jeito estipulado pelo professor, saltávamos de barranco, corríamos com fitas: que forma você podia correr ouvindo o barulho da fita, que forma você poderia lançar o dardo, lançava de um jeito que você não precisa técnica, atira o dardo do jeito que você quiser, então tenta introduzir pra criança um movimento acho que na contramão de um outro jeito, não na forma que a gente aprendeu que é engessada _ você tem que saltar em distância ...

tanto, você tem que bater com o pé aqui com outro (lá), nada disso, você vem correndo e salta, salta por prazer, faz com a maneira de brincadeira, não com tantas exigências, ele vem mostrando esse lado ele vem ao encontro do jeito que a gente vem discutindo, o nosso jeito de funcionar para Educação Física na Educação Infantil, não precisamos estar trazendo as coisas da escola podemos ter como base, mas estar dando de um outro jeito e era assim que ele pensava. (informação verbal).170

A seguir Raquel comenta mais sobre a proposta de Kunz e mostra a ruptura que esta perspectiva propõe com o caráter instrumental da Educação Física:

[...] na verdade ele trás uma proposta, uma teoria, ele começa uma teoria diferenciada uma inovação, um marco na Educação Física esse se movimentar [...] ele levanta a valorização da pessoa, do ser humano, natural, de ser ele mesmo, de participar das coisas sem ter um resultado por trás, da criança poder curtir naturalmente, de ela viver essas brincadeiras naturalmente criar o prazer de estar na atividade, não ser por obrigação estar na atividade sem saber que ele precisa encestar, que ele precisa acertar pontos, poder estar na atividade, bem claro isso, por quê a gente tinha que eliminar as pessoas?, por quê a gente sempre escolheu as melhores? é dele isso, é do Kunz de repensar a Educação Física em todos os sentidos (informação verbal).171