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3 MEMÓRIA E HISTÓRIA: PORQUE LEMBRAR É PRECISO

3.2 Formação inicial: da falsa representação sobre a Educação Física

3.2.1 Formação inicial – sofrimento e dor

Raquel não teve experiência com Educação Física no ensino médio, pois trabalhava e por isso estava dispensada das aulas. Ao concluir seus estudos, sua única possibilidade de cursar uma faculdade era fora de sua cidade. A sugestão que lhe foi feita, na época, era de cursar Pedagogia ou Educação Física na UDESC, em Florianópolis. Decidiu-se por Educação Física. Explicita, porém, que sua vontade não era de ser treinadora e sim professora de crianças. É interessante lembrar que Raquel, ao final de seu relato sobre as experiências de 5ª a 8ª série do ensino fundamental, nos conta de boas lembranças com relação à Educação Física, bem como de sua identificação com a professora. A entrada na formação acadêmica irá representar uma ruptura com esta experiência que relatou.

Retomo nas narrativas de Raquel aquilo que ela nos conta sobre sua graduação. Na sua fala fica evidenciado o quanto o processo pelo qual passou em sua formação inicial traz a marca do controle sobre o corpo como conceito que deve ser incorporado pelos graduandos, futuros professores. No curso, onde predominava o aprendizado dos esportes, a primazia da técnica representa o domínio sobre o corpo.

Exemplar é a relação que o esporte, e a educação por meio dele, tem com a dor e o sofrimento. Como constantemente aprendemos com os veículos da indústria cultural, o esporte valoriza enormemente a superação da dor que não pode ser vista pelo esportista competidor como uma experiência essencial do corpo, por meio da qual são reconhecidos seus limites, mas sim como algo que deve ser esquecido, recalcado, superado, ou então, no limite, tornado fonte de prazer. A técnica seria uma forma racional de organizar e potencializar uma relação de severidade e de domínio absoluto com o próprio corpo. O refinamento trazido pelo aparato tecnológico e a instrumentalidade corporal acabam sendo mediadores da perversa equação de celebração e de desprezo, de amor-ódio pelo corpo. (BASSANI; VAZ , 2003, p.21)

Uma das palavras que muito se repete, em um dos momentos da narrativa da professora, é sofrimento/sofrer/sofrido.

Os trechos selecionados a seguir convidam-nos pela sua densidade a demorar um pouco mais em elementos que aparecem na sua fala como: “[...] então eu me indignava um pouco com esse jeito deles funcionarem” (informação verbal).75

No rastro desta fala da Raquel, na qual revela seu repúdio à forma como os professores ensinavam, fui buscar, no depoimento, palavras, expressões que sinalizavam esta indignação. A seguir destaco aquilo que encontrei: saltar as barreiras de atletismo isso era

um trauma; um trauma; perfeição; coisas que me marcavam; aquilo era um drama eu chorava; tudo isso são marcas que eu repudiava; mas essa perfeição que eles valorizavam eu não conseguia; muito perfeccionista; sofri demais; tinha medo dela (da professora); não ia com prazer; entrava em choque com essa coisa que tinha que dar conta do que eles achavam que tinha que ser o ideal; tudo isso são coisas que me lembro de muito sofrimento; é um curso que mexia muito com o corpo a gente sofria muito... doído fisicamente e doído emocionalmente; o quanto eu sofri na época; daí eu entrei em contradição (informação verbal)76

Uma das grandes contribuições de Adorno para a educação está na crítica à racionalidade instrumental, na radicalização da dialética, a dialética negativa. “A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma.” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985a, p.114).

O tema do sofrimento nas formas de subjetivação tem importância na obra de Adorno por causa da leitura da história como tragédia, em oposição à história celebrativa, como ilustra esta passagem: “O trágico é reduzido à ameaça da destruição de quem não coopera, ao passo que seu sentido paradoxal consistia outrora numa resistência desesperada à ameaça mítica” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985a, p.142).

Reconhecem os frankfurtianos que a história da humanidade é fruto do sofrimento, mas, nem por isso, este é justificável. A forja do sujeito é de renúncia, de separação do sujeito com relação ao objeto, por isso o corpo na história da razão é o elemento mais visado, nele estão as marcas as cicatrizes. Assim, esquecer o sofrimento significa a glorificação do sofrimento, jamais criticá-lo.

A professora narra então sua experiência de formação inicial tomando como ponto de partida a saída de sua cidade natal para Florianópolis onde realizou a graduação. Ela nos conta

75 Entrevista com a prof.ª Raquel, 2005. 76 Entrevista com a prof.ª Raquel, 2005.

que as dificuldades foram muitas, saindo de uma cidade do interior para morar sozinha, afastando-se da família (mais uma vez) tendo que trabalhar para se sustentar e pagar uma parte da faculdade.

Para focarmos isto que se apresenta na narrativa da professora destaco o queGagnebin (2001, p. 52)comenta acerca daquilo que em Adorno representa um giro sobre o sujeito:

Adorno não se debruça [...] sobre a esfera individual para ali enclausurar uma esperança de salvação, mas, muito mais, para diagnosticar em sua negatividade, em sua desagregação dolorosa (Zerrissenheit) umas sementes de resistência à positividade da totalidade social imposta. É notável sua insistência nesta demora dialética no negativo, nesta permanência paciente “dentro da coisa” (grifo do autor). A professora nos conta então da formação em Educação Física:

[...] então eu tive dificuldade em algumas disciplinas, em outras eu tive mais sucesso, [...] não gostava de handebol, não gostava do jeito que o professor de handebol dava aula, porque eu nunca aceitava aquela coisa você tem que fazer cesta, você tem que fazer gol, eu não conseguia conceber [...] então eu me indignava um pouco com esse jeito deles funcionarem, principalmente comigo parecia que tudo era muito novo, eu não sabia jogar basquete, eu não sabia jogar handebol, eu não conseguia saltar as barreiras de atletismo, isso era um trauma, a impressão que eu tinha é que batia nas minhas canelas, eu corria muito mas tinha um medo tremendo de saltar as barreiras, eu tenho um trauma do salto em distancia o professor me deu zero, olha só que loucura porque eu queimei, anulou o meu salto porque não pode voltar, tem que sair pelo lado, eu voltei e pisei... anulou! eu não conseguia aceitar isso, eu me esforcei tanto em pular... enfim, essas coisas me marcavam [...] (informação verbal).77

É preciso marcar o corpo que erra e que claudica, que não é exato.

[...] eu tive dificuldade, tive que treinar muito as barreiras porque batia nas minhas canelas, eu não dava conta aquilo era um drama, eu chorava, CHORAVA! aquelas barreiras altas ...eu ia treinar, treinar, treinar pra dar conta... nossa...reprovei em atletismo uma vez por isso, por causa das barreiras, e por causa do zero que tirei, então tudo isso são marcas que eu repudiava, [e perguntava] por que eu tenho que ter resultados? [porque tenho] que ser a melhor? eu sou uma pessoa muito esforçada e tentava dar conta, mas essa perfeição que eles valorizavam eu não conseguia; mesma coisa em [ginástica]rítmica, a professora muito perfeccionista, ...tem que ser na ponta do pé...bem no ritmo; também tive dificuldades grandes com a professora [de ginástica rítmica] então tinha que ser tipo bailarina, mas você vem de uma realidade totalmente contraria de movimentos grandes, daí você vai pra uma coisa pequena eu também sofri demais com a professora [de ginástica rítmica] ...não tenho boas lembranças do jeito que eles me ensinaram sabe, aquela professora me exigia demais, eu tinha medo dela, a gente não ia com prazer, tenho boas lembranças de fazer ginástica olímpica que era diferente da rítmica que tinha que ter muito ritmo, movimento muito sincronizado na opinião dela, eu sofria muito; então na verdade...eu era esforçada de estar aprendendo e entrava em choque com essa coisa que tinha que dar conta do que eles achavam ser o ideal...ter feito natação em céu aberto, sair da piscina não aquecida, andar um percurso grande, ir lá se trocar, tudo isso são coisas que me lembro de muito sofrimento. Então é um curso que mexia muito com o corpo, a gente sofria muito...do frio, dolorido... doído fisicamente e

doído emocionalmente [...] A exigência na formação era com a técnica porque na verdade o que as professoras queriam é que nós fossemos... bons técnicos, pessoas que, no entendimento deles, só saberiam ensinar se soubessem fazer o gol, se encestasse a tal da bola, que pudesse pular a tal da barreira com eficiência, na opinião deles era isso e como eu tinha dificuldade eu relutava nesse tipo de coisa eu me esforçava muito nos trabalhos teóricos, pra dar uma compensada [...] na minha infância eu não tinha esse problema, eu sempre participava de tudo, então - porque eu não poderia participar aqui também com tanta desenvoltura como eu fazia na minha infância? porque na minha opinião e na época também, não era só hoje, na época eu não conseguia entender o nível de exigência que eles faziam com a gente, [...] daí quando vem pra universidade e tinha que ser tudo muito certinho, a bola, o toque, o jump daí eu entrei em contradição (informação verbal).78

Raquel, no trecho a seguir, nos mostra como os princípios da esportivização mantinham-se presentes mesmo no momento de entrada na escola, quando ainda era acadêmica, para praticar o estágio, condição para aqueles que desejavam atuar como professores.

[...] foi também muito sofrimento o estágio, primeiro tinha que cronometrar cinco minutos de aquecimento para depois disso ... o inicio da aula, o meio da aula, volta a calma, então aquela coisa de estar meio sincronizado, de dar conta disso (informação verbal).79

Não nos enganemos pensando que hoje, na atualidade, esta ação sobre o corpo que o secundariza e subjuga desapareceu, dando lugar a uma relação de prazer e descontração. Neste sentido, afirma Bracht (1999, p. 84): “Paulatinamente no século XX saímos de um controle do corpo via racionalização, repressão, com enfoque biológico, para um controle via estimulação, enaltecimento do prazer corporal, com enfoque psicológico”. A marca do prazer, de um retorno hedonista sobre o corpo encobre a ainda falsa reconciliação entre homem e natureza. O enaltecimento do corpo não representa o enaltecimento do sujeito senão que seu desaparecimento.