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2 EDUCAÇÃO ESPECIAL NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO

2.3 A aquisição da escrita pelo aluno com Deficiência Intelectual

A temática da aprendizagem da leitura e escrita vem sido discutida no cenário brasileiro desde o início da década de 1980 por meio de teorizações e, principalmente, por estudos empíricos reveladores na insuficiência das estratégias de ensino dessas habilidades. Evidenciam-se práticas de alfabetização cristalizadas, reprodutoras de um fazer docente descontextualizado e que desconsidera os saberes prévios que as crianças detêm antes mesmo de ingressarem na escola.

Uma importante contribuição a mudanças nesse cenário foi observada no contexto brasileiro, também em meados da década de 1980, a partir das pesquisas de Emília Ferreiro e Ana Teberosky sobre a Psicogênese da Língua Escrita (FERREIRO; TEBEROSKY, 2001). Com aporte no construtivismo piagetiano, as formulações das autoras e seus colaboradores foram consideradas uma “revolução conceitual” no campo específico da alfabetização.

A Psicogênese da Língua Escrita caracteriza-se pela sucessão de etapas cognitivas, segundo as quais as crianças formulam hipóteses sobre a escrita, a partir da interação com o meio social e escolar. As etapas cognitivas são descritas em três grandes níveis conceituais: nível pré-silábico, silábico e alfabético.

O nível pré-silábico caracteriza-se por um momento em que, após compreender que é indispensável a utilização de formas próprias para a escrita, diferentes do desenho e já utilizando letras (ou sinais gráficos), a criança passa a exigir uma variedade e quantidade mínima de letras na palavra (não admitindo a repetição e não sendo menos de três), para que esta possa ser lida ou escrita. A criança, nesta fase, não apresenta nenhum vínculo entre o que escreve e o som das palavras, podendo a escrita representar as características do objeto ao qual se refere. No nível silábico inicia-se a fonetização, ou seja, a relação entre as letras e seus significantes sonoros: a criança, nesta etapa, estabelece a hipótese de que a cada sílaba oral corresponde uma letra na escrita/leitura, com ou sem seu valor sonoro convencional. Por fim, no nível alfabético, a representação gráfica por meio das letras, relaciona-se aos fonemas das palavras e não mais às sílabas orais. Por isso, ao invés de cada sílaba ser representada por uma letra (conforme a hipótese anterior) a criança passa a compreender que as sílabas poderão ser escritas com uma, duas, três ou mais letras. Neste período há uma espécie de “fidelidade” aos

fonemas observados, quando da escrita das palavras, e a criança procura representar exatamente os sons que escuta. A hipótese alfabética promove a superação das hipóteses anteriores por meio da complementaridade entre leitura e escrita, isto é, o que está escrito já pode ser efetivamente lido e o que se escreve pode ser lido por outras pessoas alfabetizadas.

Mamede (2003) investigou a prática de professoras alfabetizadoras, em escolas públicas municipais do Estado do Ceará, à luz do referencial psicogenético da língua escrita. Para apreender a percepção das professoras sobre a Psicogênese, a pesquisadora indagou-as sobre a aplicação do Teste das Quatro Palavras e uma Frase, instrumento de diagnóstico/avaliação do processo de aquisição da língua escrita, baseado nas pesquisas de Ferreiro e Teberosky, e utilizado na rede de ensino em questão. Entre os achados da pesquisa foi apontada a percepção dos docentes sobre a importância do uso do teste, face o instrumento se prestar a avaliar a evolução conceitual das crianças, não figurando, entretanto, como única e nem principal possibilidade de avaliação dessa evolução.

Em se tratando de alunos com deficiência intelectual a aquisição da escrita ganha contornos mais específicos, os quais são discutidos nesta subseção. Fernandes e Figueiredo (2010) referem diversos estudos que revelam semelhantes as aprendizagens da leitura e da escrita de crianças com deficiência intelectual, dos processos vivenciados por aquelas sem tal condição. A diferença no processo de aquisição da leitura e escrita entre os dois grupos diz respeito, principalmente, ao tempo superior observado naqueles alunos com deficiência intelectual.

O desafio do ensino da leitura e escrita no ensino regular, ofertado numa perspectiva homogeneizadora, sobreleva-se no caso dos alunos com deficiência intelectual, causando enormes prejuízos àqueles que necessitam ser amplamente desafiados por meio de práticas que lhes faça desenvolver a abstração, atenção, memória, linguagem, etc.

A tarefa de ensinar a escrita (também) aos alunos com deficiência intelectual, delegada aos professores do ensino regular, vê-se comprometida porque há desconhecimentos e incompreensões sobre a deficiência intelectual, sobre como esses alunos aprendem, conduzindo ao empobrecimento inevitável das práticas a eles destinadas (OLIVEIRA, 2013). Lustosa (2002), em investigação sobre as práticas alfabetizadoras no contexto do ensino regular, revelou que os alunos com deficiência intelectual não eram demandados e que seus professores precisavam, então, ressignificar o conceito de deficiência intelectual para serem capazes de práticas mais adequadas.

Figueiredo e Poulin (2008) analisaram os aspectos funcionais do desenvolvimento cognitivo de crianças com deficiência intelectual, abordando, entre outros aspectos, o

desenvolvimento da linguagem escrita. Fazendo uso de materiais concretos (letras móveis, fichas, figuras, livros de literatura infantil, etc.) para elucidação das questões pesquisadas, os pesquisadores viabilizaram que a criança compreendesse o solicitado, bem como se certificaram de terem compreendido as respostas da criança. Isto porque “[...] a criança pode ter dificuldade em responder a determinadas questões porque não as compreende e não por incapacidade cognitiva” (FIGUEIREDO; POULAIN, 2008).

Em atividade realizada com criança de cinco anos e nove meses, com deficiência intelectual leve e que conhecia apenas a letra inicial de seu nome, os pesquisadores retiraram e esconderam algumas das letras do nome da criança. Esta apresentou respostas indicativas de que considera que seu nome pode ser lido quando sabe onde estão as letras que compõe seu nome. A possibilidade de leitura encontra-se, assim, na disponibilidade da letra e no conhecimento do local das letras. Apoiada em outras respostas das crianças a perguntas formuladas pelos pesquisadores, estes concluíram que “[...] sobre a aquisição da linguagem escrita é permitido observar um desenvolvimento semelhante àquele das crianças normais, tal como foi descrito por Ferreiro e Teberosky (1986)”. Os resultados sugerem, então, que sob os aspectos estruturais, o desenvolvimento das crianças com deficiência e sem deficiência é semelhante, sendo divergente no tocante aos aspectos funcionais, razão pela qual o problema da representação do mundo e da significação do real da criança com deficiência intelectual necessita ser considerado (FIGUEIREDO; POULIN, 2008).

Figueiredo (2008) realizou estudo sobre o processo de aprendizagem da língua escrita por alunos com deficiência intelectual em uma escola da rede de ensino de Fortaleza- CE. O estudo teve duração de quatro anos e respaldou-se no aporte sociohistórico e construtivista dos processos de aquisição da língua escrita, sendo os sujeitos onze alunos com deficiência intelectual.

Os achados do estudo evidenciaram avanços significativos nas produções escritas dos alunos, “[...] permitindo identificar níveis semelhantes àqueles encontrados por Ferreiro e Teberosky (1986) em crianças ditas normais” (FIGUEIREDO, 2008, p. 84). A pesquisadora identificou, no início das intervenções, que seis alunos apresentavam produção escrita expressa por traçados, linhas circulares, sem a tentativa de produção de caracteres. Já outros alunos utilizavam determinado repertório de caracteres, com intenção de representar frases ou textos, contudo, sem segmentação entre as palavras nas frases ou texto. Finalizadas as intervenções, os alunos que compunham o último grupo passaram a

[...] escrever utilizando-se da hipótese alfabética com uma boa distribuição espacial e noção de segmentação, embora ainda com pequenas dificuldades ortográficas”. O primeiro grupo, quatro alunos [...] começaram a produzir a escrita utilizando letras, apesar de apresentarem dificuldades no traçado das mesmas e não se utilizarem, ainda, da hipótese silábica. Os outros dois alunos [...] encontravam-se num nível intermediário entre os dois grupos anteriormente citados (FIGUEIREDO, 2008, p. 84).

Foram percebidas na investigação três principais estratégias de escrita25: “identificação e associação de letras/palavras”, “comparação de letras/palavras” e “apoio nas unidades sonoras das palavras/sílabas”. Essas estratégias, além de mobilizadas pelos sujeitos, emergiram das mediações pedagógicas realizadas na tentativa de auxiliar a interpretação ou a produção da escrita dos alunos. Esclarece, então, a pesquisadora, que “[...] a mediação pedagógica se evidenciou como um aspecto relevante para a aprendizagem e o desenvolvimento da escrita dos alunos com deficiência intelectual” (FIGUEIREDO, 2008, p. 86) à medida que estratégias apontadas pelos mediadores eram pouco a pouco internalizados pelos sujeitos.

A pesquisadora inferiu, ainda, que os avanços conceituais dos alunos, em relação à linguagem escrita, foram motivados pelas experiências sobre a língua escrita oportunizadas, ao acompanhamento e incentivos das práticas de escrita no ambiente familiar e à própria mobilização do sujeito para a leitura e escrita (FIGUEIREDO, 2008, p. 85). O referido estudo e as discussões dele provenientes sobre estratégias e níveis de escrita e a importância da mediação, dentre outros, referem-se ao ensino regular e ao professor que lá atua, uma vez que é nesse espaço que se desenvolvem prioritariamente os processos de aquisição da escrita.

Questiona-se, neste estudo, sobre o papel do professor do ensino especializado nesse processo e, por isso, recorre-se às lições de Oliveira, Braun e Lara (2013). Ao professor do ensino especializado cabe a proposição de estratégias (previstas no Plano de AEE), por meio das quais o aluno seja desafiado a fazer uso de seu pensamento abstrato, da linguagem, da memória, a fim de se instrumentalizar para, por exemplo, ser capaz de se apropriar da linguagem escrita, habilidade que identifica o humano.

Com apoio nos estudos apresentados que revelaram que as crianças com deficiência intelectual e aquelas sem esta condição desenvolvem processos semelhantes para adquirem a linguagem escrita, inferimos que os professores das salas de aula regulares podem apoiar-se nos fundamentos da Psicogênese da língua escrita para mediarem os conhecimentos da escrita para todos os alunos. No caso dos alunos com deficiência intelectual o professor

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“Entende-se por estratégia de escrita, os recursos que o sujeito mobiliza na tentativa de produzir a linguagem escrita” (FIGUEIREDO, 2008, p. 85).

conta ainda com o colega especializado para apoiá-lo nessa tarefa, por meio de estratégias que estimulem saltos na funcionalidade desses alunos e o desenvolvimento de suas capacidades de abstração, memória e linguagem, viabilizando, assim, práticas inclusivas de atendimento a esse alunado.

3 OS DESAFIOS DA ESCOLA PARA PROMOVER E AVALIAR A