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CAPÍTULO 4 ANÁLISES E RESULTADOS

4.4. Discussão final

4.4.3. A argumentação sobre os conhecimentos

De acordo com o mapeamento descrito na seção 3.3 (os quadros de apresentação dos dados), podemos avaliar que o formador carregou em sua fala, ao longo de todo o curso, visões sobre a NC e sua relação com o ensino. Tais abordagens da NC pelo formador tiveram um caráter freqüentemente descritivo. Apesar dessa presença da NC no discurso estabelecido em sala de aula, nossa hipótese inicial - de que a haveria intensa argumentação sobre a Natureza do Conhecimento Científico – não se confirmou no presente estudo. Verificamos, ao contrário, que muito raramente os licenciandos argumentaram sobre visões acerca da NC, sendo que esta argumentação, quando existente, se concentrou na fala do formador. Entretanto, a argumentação da NC se fez presente nos argumentos dos licenciandos quando em associação com o conhecimento pedagógico, ou seja, os licenciandos argumentaram geralmente acerca do ensino da NC. Além disso, nossos dados e análises qualitativos nos apontam que os licenciandos elaboraram vários argumentos cujo conteúdo faz referência ao Conhecimento de Conteúdo Substantivo e ao Conhecimento Pedagógico.

Conforme já mencionamos, os episódios diferem quanto ao conhecimento dominante no conteúdo dos argumentos produzidos. No episódio 1 o único conhecimento em jogo é o Conhecimento de Conteúdo Substantivo. No episódio 2 há uma predominância do Conhecimento Pedagógico, principalmente nos argumentos elaborados pelos licenciandos,

apesar de haver alguma incidência de Conhecimento de Conteúdo Sintático em associação com o Conhecimento Pedagógico, tanto nos argumentos elaborados por parte do formador quanto dos licenciandos. Ainda no episódio 2, coube ao formador a produção de todos os argumentos em que há a presença unicamente do Conhecimento de Conteúdo Sintático. O episódio 3, por sua vez, contou com a dominância do Conhecimento de Conteúdo Sintático: nos argumentos do formador o CCSi apareceu freqüentemente isolado; nos argumentos dos licenciandos manifestou-se sempre em associação com o CP. Especialmente na fala de JOÃO, o autor do relato do episódio 3, pudemos constatar um CPCSi, apesar desse conhecimento estar carregado de incorreções e lacunas referentes ao CCSi que o constitui. Assim, na fala dos licenciados, podemos dizer que no episódio 3 também há uma boa incidência do Conhecimento Pedagógico, apesar dele não aparecer isolado, estando sempre associado ao CCSi.

Uma inspeção do “quadro de apresentação dos dados” e da descrição e análises realizados referentes aos três episódios, nos sugerem que a participação argumentativa22 do formador e dos licenciandos foi mais intensa nos episódios 1 e 2. O episódio 3 é apontado como aquele em que a participação argumentativa se deu de maneira menos intensa, mesmo porque ele teve relativamente poucos argumentos se considerarmos o seu longo tempo de duração.

Quanto à presença discursiva da Natureza do Conhecimento Científico, enquanto um componente do CCSi, sua presença discursiva no episódio 1 foi inexistente, enquanto a sua presença no episódio 2 foi menor que no episódio 3, mesmo porque este último episódio teve um tempo de duração muito maior.

Ainda com relação ao episódio 3, é importante salientar que, quando a NC esteve presente nos argumentos dos licenciandos ela quase sempre se manifestou em associação com o Conhecimento Pedagógico, ou seja, os licenciandos argumentaram freqüentemente sobre o ensino da NC e não sobre o seu conteúdo – diga-se, sobre uma visão da NC, algo que, entretanto, foi operado várias vezes na fala do formador.

Essas informações e considerações nos levam a questionar: por que os licenciandos argumentam mais sobre o CCSu e o CP? Por que praticamente não argumentam acerca de uma visão da NC? Por que a NC, quando presente nos argumentos dos licenciandos, apresenta-se associada ao CP, ou seja, por que os licenciandos argumentam sobre o ensino da NC e não sobre a própria NC? Aliás, percebemos que em situações nas quais o próprio

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Estamos chamando de “participação argumentativa” a produção de argumentos por um interlocutor numa determinada situação argumentativa.

formador desafia um licenciando a justificar a sua visão acerca da NC, o mesmo desloca a argumentação para o Conhecimento Pedagógico, evitando argumentar diretamente sobre a NC. Assim, temos ainda outra questão para adicionarmos a nossa agenda: por que, quando desafiados a justificarem uma visão sobre a NC, os licenciandos deslocam seus argumentos para o CP?

As respostas para estas questões podem ter suas raízes naquilo que Breton (1999), Brockriede (1990) e Toulmin (1958) estabelecem como imprescindível à argumentação: um certo grau de coincidência de códigos dos interlocutores, ou seja, a existência de um mínimo de conhecimentos comuns compartilhados. Dito de uma outra maneira, podemos dizer que deve existir um mínimo de redundância nas enunciações das pessoas que estão argumentando. Se admitirmos este ponto de vista e levarmos em conta as formas de participação argumentativa dos licenciandos nos três episódios, devemos reconhecer que os licenciandos compartilham em algum grau e se sentem familiarizados tanto com o Conhecimento de Conteúdo Substantivo quanto com o Conhecimento Pedagógico. Por outro lado, este ponto de vista nos leva a considerar imediatamente que o Conhecimento de Conteúdo Sintático seria estranho para os licenciandos, enquanto algo muito pouco familiar, de modo que os significados das palavras enunciadas pelo formador não seriam minimamente compartilhados pelos licenciandos. Isso nos ajuda a entender o fato dos licenciandos deslocarem o conteúdo dos seus argumentos para o CP: podemos considerar que as supostas lacunas de conhecimento acerca da NC por parte dos licenciandos poderiam ser responsáveis pelo fato de que, quando desafiados pelos argumentos do formador (desafios referentes à visões acerca da NC), os licenciandos recorressem a argumentos de áreas mais familiares em que se sentissem mais seguros, como argumentos de Conteúdo Pedagógico.

Neste caso, podemos nos indagar: porque os licenciandos não pediram as credenciais das justificativas empregadas pelo formador em seus argumentos, conforme pode acontecer para o caso em que os códigos têm pouca coincidência (BRETON, 1999; TOULMIN, 1958)? Porque, ao invés disto, os licenciandos se mantiveram numa postura discursiva passiva, respondendo com o silêncio aos argumentos colocados pelo formador? Nossas respostas a estas questões estão em considerar que o formador tem uma posição assimétrica no espaço da PEF I e os licenciandos, por reconhecerem a autoridade assimétrica dos argumentos epistemológicos do formador, respondem à incompatibilidade de códigos com o silêncio e com a passividade, que são formas de se submeter a uma autoridade. Assim, seria exatamente devido à autoridade do formador reconhecida pelos licenciados que estes respondem com o silêncio quando da intensa divergência de códigos. Por outro lado, podemos esperar que em

situações em que há maior simetria entre os interlocutores, seja mais provável que a intensa divergência de códigos leve o auditório a uma atitude mais ativa, no sentido de solicitar as credenciais das afirmações utilizadas pelo orador na construção dos seus argumentos.

Retomando a discussão da participação argumentativa dos licenciandos relativa aos outros dois domínios de conhecimento (CCSu e CP), seria interessante fazermos a seguinte indagação: como se constituíram os códigos compartilhados referentes a estes dois domínios de conhecimento? Para responder esta indagação, podemos lançar mão de duas hipóteses, uma para cada domínio de conhecimento, e que também colocaremos na forma de questões.

Assim, quanto ao CCSu, estariam os códigos compartilhados pelos licenciandos relacionados a um histórico de contato prolongado deles com este tipo de conhecimento ao longo da graduação, o que lhes tornaria o CCSu bastante familiar? Seria tal contato responsável por lhes darem segurança e o mínimo de códigos compartilhados para argumentarem acerca deste domínio de conhecimento?

Da mesma maneira, quanto ao CP, estariam os códigos compartilhados pelos licenciandos relacionados à sua própria experiência no contexto escolar – experiência como docentes e como discentes, situação em que estiveram na condição de observadores da prática de seus professores? Neste caso, seriam tais experiências responsáveis por lhes darem segurança e o mínimo de códigos compartilhados para argumentarem acerca deste domínio de conhecimento?

Estas hipóteses, se sustentadas, seriam indícios para a nossa consideração de que há uma certa coincidência de códigos entre os interlocutores quanto ao CCSu e o CP. Por outro lado, também podemos nos questionar: e quanto à nossa consideração da quase ausência de códigos compartilhados quando consideramos o CCSi?

Novamente, lançaremos mão de uma hipótese, colocada na forma de questão: quanto ao CCSi, seria a ausência de um ensino sistemático acerca da filosofia da ciência ao longo da graduação um dos fatores responsáveis pela falta de um mínimo de códigos compartilhados pelos licenciandos referentes a este domínio de conhecimento?

A nossa pesquisa não nos permite responder estas indagações, mesmo porque elas fogem do escopo na nossa proposta de investigação. Elas surgiam enquanto percepções nossas acerca do relacionamento dos licenciandos com os diversos domínios de conhecimento ao longo do curso de graduação. Estas percepções se pautam em nossa própria experiência enquanto ex-alunos do curso de Licenciatura em Física, além de informações acerca da grade curricular do curso. Entretanto, tais percepções não são suficientes e nem adequadas para responder cientificamente as indagações que levantamos. Antes, o propósito de mencioná-las

aqui é mais para abrir novas frentes de estudo do que propriamente suprir lacunas da nossa pesquisa. Assim, tais indagações devem ser consideradas enquanto hipóteses que podem orientar futuras pesquisas.

Em resumo, as considerações de Breton (1999), Brockriede (1990) e Toulmin (1958) nos dão a chave para responder satisfatoriamente as nossas questões construídas durante a análise dos dados, pois nos fornecem fundamentos teóricos para compreendermos os diferentes graus de participação argumentativa dos licenciandos. As hipóteses que lançamos sobre o relacionamento e contato dos licenciandos com os três domínios de conhecimentos ao longo do curso de graduação se conjugam coerentemente com as nossas explicações de ordem teórica, reforçando-as. Contudo, é importante salientar que a nossa pesquisa se estabeleceu num contexto humano, carregado de complexidades. Mantendo nossa fidelidade à perspectiva naturalística que nos orientou ao longo de toda a investigação, gostaríamos de destacar que, com relação aos diferentes graus de participação argumentativa em função dos diferentes domínios de conhecimento, a justificativa que esboçamos há pouco não deve ser considerada a única, nem tampouco a determinante, uma vez que temos consciência de que outras causas podem operar conjuntamente para estabelecerem os comportamentos observados. Entretanto, a própria limitação do nosso instrumental teórico e metodológico nos permitiu iluminar apenas algumas regiões do objeto de estudo, enquanto outras permaneceram obscuras. Assim, o que podemos dizer é que, dentre as possíveis causas para as diferentes formas de participação argumentativa dos licenciandos, nossas possibilidades metodológicas e analíticas nos permitiram compreender tais formas em função do grau de compartilhamento dos conhecimentos em jogo entre o formador e os licenciandos.