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2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.3. A ARTE E SEU DISCURSO

2.3.1. A ARTE CONTEMPORÂNEA

Desde os primórdios de sua existência, o ser humano, em sua constante busca por entender a si mesmo e o mundo em sua volta, sentiu a necessidade de intervir em seu ambiente e utilizou-se de artefatos para deixar sua marca no mundo. Muito antes de essas intervenções e artefatos serem rotulados como “obras de arte” e exibidos em museus e galerias, elas já faziam parte do cotidiano dos povos e desempenhavam papéis fundamentais em suas comunidades que iam além de seu valor estético e contemplativo. Danto (1997, p. 95), em seu livro “Após o fim da Arte”, versa sobre como a percepção desses artefatos é atrelada à época na qual eles são contemplados:

Muitas das obras de arte do mundo (pinturas rupestres, fetiches, peças de altar) foram criadas em épocas e lugares em que as pessoas não tinham nenhum conceito definido sobre a arte, já que interpretavam a arte em termos de suas outras crenças. É verdade que hoje nossa relação com estes objetos é principalmente contemplativa, uma vez que os interesses que eles incorporam não são os nossos, e as crenças à luz das quais eles eram considerados eficazes não podem mais ser amplamente mantidas, muito menos entre aqueles que as admiram.

Esse propósito questionador da arte, que tenta dar conta do mundo em sua volta e, ao mesmo tempo, é condicionado pelos limitadores desse mesmo contexto temporal e espacial no qual suas manifestações são concebidas e contempladas, serve como estímulo para que encaremos nosso cotidiano com um olhar livre do

condicionamento de nossas rotinas. Nas palavras de Canton (2009), “a arte ensina justamente a desaprender os princípios das obviedades que são atribuídas aos objetos, às coisas. [...] A arte pede um olhar curioso, livre de ‘pré-conceitos’, mas repleto de atenção.” Por conta desse “olhar curioso” perante a vida, as manifestações artísticas, em conjunto com as narrativas que as acompanham, podem revelar informações interessantes a respeito da sociedade na qual elas foram concebidas e sua interpretação deve, portanto, estar sempre atrelada a seu contexto histórico.

Sally Mann é uma artista norte-americana cuja produção fotográfica se concentra predominantemente de meados dos anos 1980 até hoje. Portanto, é sob a ótica da Arte Contemporânea que sua fotografia deve ser analisada. O que se convenciona a chamar de Arte Contemporânea designa o período de produção artística em que hoje vivemos e, justamente por ainda não haver um distanciamento histórico suficiente, possui delimitações por vezes imprecisas e algumas de suas características são ainda objeto de debate entre os especialistas da área.

Os eventos históricos de 1989 — a queda do Muro de Berlin, a fragmentação dos países do bloco socialista, a abertura parcial da China ao capitalismo, o fim da Guerra Fria, o fortalecimento dos blocos comerciais e o crescimento do comércio global — mudaram a face das relações mundiais e, para a Arte, marcam o início do período conhecido como Arte Contemporânea (STALLABRASS, 2004). A Arte Contemporânea surge como sucessora da Arte Moderna e se distingue desta por uma constante negociação entre a arte e a realidade, e tem como um de seus valores centrais as interrelações entre as diferentes áreas do conhecimento humano (CANTON, 2009).

A abertura comercial de um mundo globalizado e o estabelecimento do capitalismo como única alternativa para a economia global trouxeram um entusiasmo inicial à classe artística devido a uma grande liberdade de criação e comercialização de suas obras, além da possibilidade do intercâmbio com artistas fora do eixo Paris – Nova Iorque. Entretanto, essa mesma abertura comercial celebrada por derrubar as barreiras culturais e por transformar o mundo, outrora dividido pela Guerra Fria, em uma suposta aldeia global, trouxe consigo sua forma irrestrita de capitalismo: o neoliberalismo e o livre comércio. O que se viu, em termos econômicos, foi a criação de regras de proteção à indústria e à agricultura dos países ricos e industrializados,

como os Estados Unidos, e a abertura do comércio com países em desenvolvimento, transformando-os em um promissor mercado consumidor. Com a indústria da arte não foi diferente: o mesmo neoliberalismo que propiciou a liberdade artística também estreitou os laços entre a arte e o capitalismo, promovendo a criação de uma arte muitas vezes voltada à cultura de massa, e criando alianças entre empresas e museus, cuja atividade passou a ser cada vez mais comercial. Observa-se também, a partir dos anos 90, a indústria da arte permeando espaços comerciais e utilizada para divulgar os mais variados bens de consumo. A influência da arte, a partir desse período, é particularmente proeminente na indústria da moda e nas campanhas de marketing, de modo que, por compartilharem inúmeras características estéticas com os preceitos da arte, a propaganda passou a ser considerada “a arte a serviço do capitalismo” (DANTO, 1997, p. 139).

Em termos práticos, o que se percebe na contemporaneidade é uma produção artística multicultural, crítica e politizada, que está preocupada com as questões sociais e, principalmente, as relativas às minorias, mas que, ao mesmo tempo, tende a se curvar aos atrativos de uma sociedade de consumo rápido e aos ditames do livre- comércio e do neoliberalismo. Essa contradição entre uma postura crítica em relação às amarras de um mundo capitalista de economia ultraliberal, com um forte posicionamento político progressista que questiona as injustiças desse sistema em relação às minorias, e a inevitável rendição aos atrativos apelos de uma sociedade voltada ao consumo, na qual a arte opera em favor do capital, é característica fundamental da Arte Contemporânea.

Outra característica da Arte Contemporânea decorrente do estreitamento dos laços entre a arte e a cultura de massa é a maior atenção midiática dada aos artistas e às suas vidas pessoais. Sobre a transformação de artistas contemporâneos em celebridades, Stallabrass (2004, p. 14-15) comenta:

[...] a arte contemporânea entrou em contato mais próximo com elementos seletos de uma cultura de massa e se tornou tão onipresente que esta mudança às vezes é confundida com um novo engajamento com o 'real' ou com a 'vida real'. As estrelas da arte são vistas há muito tempo como celebridades, mas agora a cena artística como um todo é tratada muito como a indústria da moda ou do pop, e até mesmo seus personagens menores aparecem nas publicações dedicados a rastrear a vida das estrelas. Em

particular, a arte e a moda têm sido cada vez mais vistas lado a lado, uma vez que o culto da juventude, que envolveu a cultura como um todo, também saturou o mundo da arte.

Tal elevação dos artistas contemporâneos à categoria de celebridade talvez possa explicar o persistente interesse pela vida pessoal de Sally Mann, que por toda sua carreira viu a atenção do grande público dividida entre os aspectos artísticos de suas fotografias e a curiosidade sobre os “bastidores” nos quais tais imagens foram criadas, em que busca por informações sensacionalistas sobre a fotógrafa e sua família muitas vezes teve uma avidez semelhante a dos leitores de revista de fofocas.

Outra contradição dessa instigante relação entre a Arte Contemporânea e a implementação de uma pauta econômica ultraliberal nos Estados Unidos, nos início dos anos 90, deu-se pelo fato de que a liberdade de criação e de questionamento desfrutada pelos artistas da época, que os levaram a testar os limites do status quo e explorar temáticas controversas como o sexo e a religião de modo explicitamente provocatório, tem suas raízes entrelaçadas ao livre-comércio, que, ironicamente, tinha o apoio político do partido Republicano, a bancada mais conservadora do país. Essa mesma bancada conservadora entrou em choque direto com alguns artistas especialmente controversos, como Robert Mapplethorpe e Andres Serrano, sobre a utilização do dinheiro público para o financiamento de exposições de temáticas por eles consideradas obscenas ou blasfemas (STALLABRASS, 2004). Conhecida como a “Guerra Cultural” dos anos 9024, tais ataques à produção artística ao que não se encaixava nos moldes estabelecidos pelos conservadores republicanos resultaram em cortes significativos no fundo governamental para o financiamento das Artes, o

National Endowment for the Arts (NEA), levou a cancelamentos de exposições e a

demissões de diretores de museus, que se arriscavam a organizar exposições tidas como controversas.

A própria Sally Mann, na ocasião do lançamento da série de fotografias de seu livro Immediate Family, em 1992, foi alvo de duras críticas em virtude de algumas imagens de seus filhos, que foram consideradas impróprias pelos círculos mais

24 O Termo “Guerra Cultural”, ou “Culture Wars”, no original em inglês foi cunhado em 1991 pelo

sociólogo norte-americano James Davison Hunter, com a publicação de seu livro “Culture Wars: The Struggle to Define America”.

conservadores. Mesmo não tendo recebido qualquer financiamento público para a organização de sua exposição, as fotografias de Immediate Family, que hoje são apreciadas sob um diferente ponto de vista, foram duramente criticadas por alguns círculos da imprensa americana – a fotógrafa foi acusada de ser uma mãe relapsa e até de explorar a imagem de seus filhos para promover a pedofilia. Pode-se dizer que a controvérsia sobre o lançamento de Immediate Family foi, em parte, intensificada pelo fogo cruzado entre as alas mais conservadoras da sociedade americana e a classe artística progressista e questionadora do status quo, sem que esses dois grupos percebessem que seus posicionamentos tão distintos provinham da mesma abertura econômica e social de um mundo contemporâneo em constante transformação.