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2 Teoria da Vigilância: Panóptico, e Pós-panóptico

3 Da Governabilidade à Governança tecnológica: Biopolítica de Foucault aos dias atuais

3.2 A arte do governar: o poder pastoral em Foucault

A evolução da humanidade é facilmente associada ao conceito de governar. Quando o homem deixou de ser nômade e descobriu o cultivo de plantas e a domesticação dos animais, toda a estrutura da sociedade começou a ser modificada e os primeiros núcleos familiares surgiram.

Com a estruturação das nascentes sociedades, o homem poderia ter seguido por dois caminhos: o agrícola e o pastoral. Muitas das civilizações antigas optaram pelo pastoral. Este

pode ser associado a muitas culturas, entretanto teve na judaico-cristã sua representação máxima, na qual um povo nômade dotou um único senhor para conduzir suas vidas, e por meio dos pastores escolhidos por este "ser" onipresente e onipotente buscariam a terra prometida e a salvação eterna (HAUDRICOURT, 1962). Presente em muitas culturas antigas, Foucault (2008) ressalva que este tipo de governo não era bem visto nas civilizações greco- romanas, que dispunham de outra forma de governar suas cidades-estados. Mesmo sem representar todas as grandes potências da antiguidade, este tipo de poder é encontrado em outras nações, tais como a egípcia, por meio da figura dos Faraós, detentores do poder, dado pelos deuses, de governar a população, sendo facilmente associado à figura pastoral. Outra grande civilização que utilizava o conceito do poder pastoral, apesar de não explicito, era a chinesa, por meio da ideologia do confucionismo (FOUCAULT, 2008).

O pastor é visto como um líder/governante, detentor de total poder diante do rebanho-povo. Foucault (2008) percebe essa relação como algo essencialmente bom, pois toda a ideologia em torno desta é conduzida para a sobrevivência de uma coletividade.

Todavia, diferente de outras modalidades de governo, a atividade pastoral possui algumas peculiaridades. A primeira característica que a diferencia do modelo de governo greco-romano é o seu objeto. Diferente deste último, que visa na proteção da cidade sua principal função no governo pastoral, a importância está nos indivíduos, que constituem o rebanho-povo. O pastorado passou a estar atrelado ao deslocamento ao invés de territórios fixos (FOUCAULT, 2008; DEAN, 1999).

A segunda característica é a busca em se fazer o bem. Porém, esta particularidade não é exclusiva do pastorado, podendo ser identificada nos governos gregos e romanos. A diferença está na ênfase dada pelo pastor ao perceber esta função como seu foco central (FOUCAULT, 2008), conduzindo sumariamente a terceira distinção que é a noção de salvação.

Salvar o rebanho era a sua principal função. "O fato de existir um pastor implica que, para todo indivíduo, existe a obrigação de obter a salvação" (FOUCAULT, 2008, p.68). O poder pastoral, portanto, refere-se a uma análise da consciência. A salvação do rebanho logo se transformou na da alma. O pastorado também está relacionado com a lei, neste caso, divina, pela qual só poderia alcançar a salvação quem a seguisse sem questionar. Com isso, adentra-se na quarta característica que é a do responsável por zelá-lo, constituído a partir da imagem central do pastor. Como figura basilar deste tipo de poder, a ele foi concebida atividades específicas, tais como reunir, proteger e guiar. Com isso, ele e o seu povo passam a ter dupla dependência, na qual um depende da existência do outro (DEAN, 1999; CASTRO, 2009).

A quinta e última característica é quanto à missão do pastor, que é paradoxal, pois ao mesmo tempo em que ele tem o dever de olhar para todas as suas ovelhas, não pode descuidar de nenhuma em particular. O seu poder totalizante se transfere para o individual, no qual o saber se torna o elemento-chave deste tipo de governo.

Com base nestas características, o poder pastoral passou a formar um importante tipo de governo na antiguidade, que se expandiu por toda a Europa graças ao crescimento do cristianismo como instituição de poder e controle social.

Este tipo de governo obteve seu auge no período medieval, por meio da Igreja Católica. Durante quinze séculos o mesmo se deslocou, alterando-se por meio de novas

instituições e formas de poder. O controle exercido pela Igreja cristã cuidava essencialmente do governo das almas dos indivíduos, exercendo-o, entrando no âmago da principal instituição, a família. O poder pastoral cristão, contudo, apresenta duas características diferentes do anterior, mais livre das amarras da burocracia e das instituições (FOUCAULT, MICHEL, 1995).

A primeira novidade reside na vigilância minuciosa e ininterrupta sobre as ovelhas/povo, em que este poder teria como intuito ensiná-las e doutriná-las, conduzindo-as em direção da conduta integral. Por meio desta vigilância, este tipo de poder teria o saber/conhecimento sobre o comportamento das pessoas. É difícil não notar a semelhança entre o poder pastoral e o poder disciplinar exercido pelas instituições modernas e pós- modernas.

A segunda diferença está no uso da consciência como forma prática de controlar os cristãos, de modo que o olhar do outro o manteria sempre em estado de alerta e vigília, sendo instaurada a obediência individual, absoluta e permanente. Apesar de toda essa influência, foi com a Contra-reforma que este ganhou intensidade. Desta maneira, houve a busca por uma influência individual ainda maior, no que Foucault (1995) argumenta ser uma forma ostensiva e obrigatória de agir e pensar, influenciando diretamente na formação das subjetividades dos indivíduos, passando a ser reconhecida como uma técnica de governo.

O pastorado foi a primeira grande forma de governar do mundo antigo. Com influência em todo o continente Europeu, se apresentou como uma nova forma de controlar e vigiar os fluxos sociais. Todavia, o mundo estava mudando rapidamente e este sistema de governo não condizia mais com a realidade. Apesar de relevante, estava sendo substituído. Com o surgimento do Estado Moderno e suas práticas racionais de governar – por meio de controles estatísticos, policiais e fiscalização –, se fazia necessário bem mais do que o conhecimento sobre os indivíduos. O poder deixava gradativamente as mãos dos pastores. Esse movimento ficou conhecido por Foucault (2008) como a arte de governar.