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2 Teoria da Vigilância: Panóptico, e Pós-panóptico

3 Da Governabilidade à Governança tecnológica: Biopolítica de Foucault aos dias atuais

3.4 Governabilidade e o biopoder

A evolução do significado de governabilidade deu-se em conjunto com diversas mudanças nas formas de poder. Entre elas, pode-se destacar o poder estatal, que mostrou ser um regulador de forças. Desta forma, ele deixou de ser possuído e passou a ser exercido. Foucault (2005) alega que o exercício do poder cria o saber, que começou a ser visto como a forma de controlar, no qual o poder legitimado só pode ser exercido com base em um saber coletivo.

Desta forma, a governabilidade percebe na população a possibilidade do exercício do mesmo. Com o surgimento de uma nova racionalidade governamental, entende-se no termo "segurança" o desenvolvimento socioeconômico de uma população. Foucault (2008) propõe que a questão da segurança sempre permeou os diversos tipos de governo. A diferença para ele é que na governabilidade ela ganha conotações econômicas, passando a representar a prosperidade do próprio Estado moderno.

Quando o autor analisa o poder na governabilidade, define-o como o princípio do próprio agir, que significa que os indivíduos são livres para escolher. Todavia, vale lembrar que na concepção foucaultiana não existe a liberdade per si, e sim práticas de liberdade que podem criar e produzir modos de se governar a população (FOUCAULT, 2008, DEAN, 1999). Portanto, a governabilidade é mais uma doutrina econômica e política.

Sobre a problemática da população, a sua descoberta conduziu à identificação do indivíduo como um ser metafísico, trabalhador e social. O elo população-indivíduo introduziu

um sentido um pouco paradoxal da vida para o exercício de poder (DEAN, 1999). A população passou a representar produção de riquezas, trabalho e tecido social governável (FOUCAULT, 2009; ROSE, 1999). Esta forma de pensar deu origem ao conceito de biopoder.

Quando o poder abandonou o modelo da soberania e adentrou no da disciplina, o mesmo passou a tomar forma de biopoder, no qual o conceito da vida tornou-se objeto central deste. Este conceito trata da atuação do poder sobre os corpos, a partir de diversos processos de organização da vida social. A arte de governar, como o biopoder, não se exercerá mais sobre o corpo do indivíduo como na sociedade disciplinar, mas sobre a população (FOUCAULT, 2008). Sob esta perspectiva, o autor vai chamar o governo político em torno da população de biopolítica, ou seja, trata-se de governar populações, controlá-las. A população tornou-se sumariamente um objeto que importa ser conhecido para ser controlado (FOUCAULT, MICHEL, 1995).

A biopolítica passou a constituir um esforço preventivo empreendido pelo Estado, em controlar e regular as condições de vida de uma população. Por meio deste conceito, tentou-se mapear todas as variáveis relativas à vida. A ideia seria intervir em todos os aspectos em comum de um contingente populacional. "De que se trata nessa nova tecnologia do poder, nessa biopolítica, nesse biopoder que está se instalando?" (FOUCAULT, 2000, p. 289). O autor introduz este questionamento no início de uma de suas palestras, evidenciando a importância do novo entendimento acerca da população, pois, para ele, antes de ser uma questão política, o biopoder se referia às taxas de natalidade e mortalidade. Apesar de este ter sido o primeiro elemento da biopolítica, tudo passou a configurar uma questão de Estado no momento no qual ações políticas e econômicas passaram a compor as questões ligadas à vida. Por exemplo, se um país tem baixos índices de natalidade, poderá sofrer escassez de mão-de- obra jovem, um envelhecimento acelerado da massa economicamente ativa, o que provocaria em longo prazo dados econômicos ao país. Invertendo a situação, se em um país existe um alto índice de natalidade, a necessidade de infraestrutura é muito maior e a possibilidade de se criarem zonas de exclusão também o é. Por meio de um simples exemplo, foi possível perceber que o biopoder é tanto econômico quanto político-social. Seguindo a mesma linha de raciocínio, a biopolítica lida com a população e a população com os problemas políticos.

O biopoder destina-se, portanto, à preservação do homem-espécie, da vida coletiva, do corpo social. Foucault (2000) alega que estas ações políticas são como objeto de poder – um poder que se preocupa com a vida e que, ao mesmo tempo, busca normatizá-la – a partir de um novo conceito de população compreendido por meio da biologia. Logo, se no poder disciplinar o foco estava nos corpos individualmente dispostos, o biopoder privilegia o corpo social amplo, aberto e contingencial. É preciso, por conseguinte, proteger o corpo social e a vida da população. Neste caso, o biopoder se exerce ao nível da vida (FOUCAULT, 2000; HARDH, NEGRI, 2006). No novo tipo de poder, não são só os corpos devem ser controlados, e sim toda uma população.

Outros mecanismos passaram a ser implantados. Diferente dos disciplinares, os da biopolítica vão tratar primordialmente do indivíduo coletivo. Os mecanismos disciplinares se importavam com o controle e a produtividade de uma população. Entretanto, esta relação foi modificada e o que importa agora não são medidores locais e individuais de qualidade e eficiência, e sim estatísticas globais sobre a população. Na biopolítica, leva-se em

consideração a vida, na qual os processos do homem-espécie servem para assegurar a regulamentação (FOUCAULT, 2000; CANDIOTTO, 2010).

Foucault (2008) argumenta que os mecanismos de poder disciplinar são vistos como uma forma de controlar o corpo-máquina, no qual o poder disciplinar age a partir do controle do tempo e da produtividade. No poder biopolítico, essa relação sofre uma mudança para o controle do corpo-espécie, sendo a gestão da vida como um todo. Todavia, ele chama atenção para uma mudança significativa no conceito da vida. No poder soberano, o regente tinha o poder de definir quem vivia ou morria, por meio do suplício. Na sociedade disciplinar, o poder está sobre a vida e no biopoder está em gerir a vida, por meio da vigilância e do controle, com o intuito de ampliar os aparelhos de produção capitalista.

O conceito de biopoder passou na modernidade e pós-modernidade a ser facilmente associado ao poder, relacionado diretamente à economia capitalista, na qual a população perde sua coletividade e é conduzida em um processo, quase esquizofrênico, de individualismo. Com o deslocamento da noção de população, não é de se estranhar que o próprio conceito de biopoder foi ressignificado. Mas, como esse processo ocorreu? O que fez o Estado, antes soberano, perder sua hegemonia para a economia? O liberalismo e posterior neoliberalismo tornaram-se o algoz de seu criador?

Com base nestes questionamentos, para se compreender este processo complexo e cheio de nuances, o capítulo adentra em sua fase crítica, e quiçá mais densa, sobre as causas que levaram o mundo ocidental a ser o que é. Para tanto, foi selecioanda uma coletânea de autores críticos ao liberalismo e neoliberalismo sobre a perspectiva do biopoder, para que ao fim deste caminho a governança tecnológica fosse desvelada.