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A ascensão literária e o abismo da política

CAPÍTULO 1 – FONTES, INFLUÊNCIAS E FORMAÇÃO FILOSÓFICA NA

1.2 A ascensão literária e o abismo da política

Ao escrever a biografia paterna, Joaquim Nabuco enuncia o tipo acabado de homem público, qual seja, aquele que possui qualidades como a oratória, a diplomacia e o senso histórico para a realização das tarefas nacionais.79 Esse tipo ideal mobiliza seus predicados para escalar os diversos cargos do governo, encontrando na política o seu princípio e o seu destino final. Aqui antecipamos duas diferenças cruciais: embora cultivasse aquelas características, Machado de Assis nunca vinculou o seu projeto de vida a uma carreira de Estado, ou melhor, esse projeto esteve mais ligado à prática ficcional do que a ambições políticas e partidárias. No fim da vida, escrevendo a Lúcio de Mendonça sobre uma possível imersão na política, Machado objetava:

A lembrança do meu nome, honrosíssima em si, veio de encontro a um grande obstáculo. Não quero referir-me à representação literária, que a bondade dos amigos me dá, como um prêmio de assiduidade e tenacidade no trabalho. Refiro-me à significação política, quando eu (vou) galgando os sessenta anos, para não dizer a verdade inteira. Meu querido, não é idade em que comece um papel destes quem não exerceu nenhum análogo na mocidade (C, IV, p. 1350).

Nenhum dado biográfico, além de uma suposta candidatura, indica que o seu projeto de vida esteve ligado à carreira política. Ademais, levando-se em conta o conjunto de sua obra ficcional, a vida pública das personagens é apenas uma extensão de seus interesses próprios. De maneira geral, não há ingerência da profissão de servidor público, ou daquilo que ela poderia positivamente significar para o país, dentro da trama das narrativas.80

Isso não significa que o contato com os agentes estatais e a experiência como funcionário público não tivessem influência sobre a obra literária de Machado. Ao contrário, como demonstram as teses de John Gledson e Sidney Chalhoub, existe uma relação estreita entre as experiências do funcionário público, do cidadão e do escritor durante a última metade do

79 NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império: Nabuco de Araújo: sua vida, suas opiniões, sua época. Rio

de Janeiro: H. Garnier.1899-1900. 3 v.

80 GUEDES, Paulo; HAZIN, Elizabeth. Machado de Assis e a administração pública federal. Brasília: Senado

século XIX,81 como se aquela experiência profissional rendesse matéria para a literatura e reformasse a consciência política do homem Machado de Assis. Nos romances e nos contos, desfilam em série os personagens servidores públicos, diplomatas, militares e políticos em geral. Salvo exceções, a profissão desses personagens e os afazeres do dia são relegados dentro da trama das narrativas, cujo foco é a apresentação metonímica de alguns índices sociais ou essenciais ao ser humano: as relações de dependência em torno do favor e da renda, a burocratização estamental, a ambição e a vaidade encobertas pela sede de nomeada, etc.

Machado de Assis expõe com humor todos esses índices em “O programa”, conto publicado no jornal A Estação (dez. 1882 – mar. 1883). Esse conto narra a ideia fixa do jovem Romualdo em se tornar alguém de renome, um ministro de Estado ou um herói de Plutarco. Para isso, ele organiza um “programa da vida”, prevendo as seguintes etapas: começaria pela literatura, depois o bacharelado, a iniciação científica, o casamento e a nomeada política, no parlamento e no ministério. Ele estreia seu programa com uma poesia no Correio Mercantil, em 1858.

No fim daquele ano tinha o Romualdo escrito e publicado algumas vinte composições diversas sobre os mais variados assuntos. Congregou alguns amigos – da mesma idade, – persuadiu a um tipógrafo, distribuiu listas de assinaturas, recolheu algumas, e fundou um periódico literário, o Mosaico, em que fez as suas primeiras armas da prosa. A ideia secreta do Romualdo era criar alguma coisa semelhante à Revista dos Dois

Mundos, que ele via em casa do advogado, de quem era amanuense.

Não lia nunca a Revista, mas ouvira dizer que era uma das mais importantes da Europa, e entendeu fazer coisa igual na América (OC, III, p. 87).

A diferença de nomes confere a medida do pastiche. Os jornais da época que levavam o nome de O Mosaico, no Rio de Janeiro e em Guaratinguetá (cidade onde se escondia uma paixão de Romualdo), rapidamente encerraram suas atividades, apesar da pompa e da variedade de seus programas. Por outro lado, a revista francesa circulava a todo vapor. O acervo de Machado continha apenas um exemplar – bastante anotado, por sinal –

81 GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. Tradução de Sônia Coutinho. 2. ed. São Paulo: Paz

e Terra, 2003; CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

de 1852 da Revue,82 fato irrelevante diante da praxe de lê-la nas bibliotecas. Os principais representantes do ecletismo escreviam ali. Por aqui, eram muitos os tipos de leitores desta revista. Mesmo uma cidadezinha interiorana como Valença possuía a coleção completa. Na Capital do Império, pelo menos a Biblioteca Fluminense e o Gabinete Português de Leitura contavam coleções inteiras do periódico francês.83 Segundo Roberto Schwarz, entre os doutrinários dessa revista estava Charles de Mazade, “um dos modelos retóricos da crônica machadiana”.84 E é em uma crônica que Machado a descreve:

Vou dar agora uma novidade, a mais de um leitor.

Sabes tu, político ou literato, poeta ou gamenho, sabes que há aí perto, na cidade de Valença, uma biblioteca municipal, a qual possui uma coleção da Revue des Deux Mondes, a qual coleção está toda anotada pela mão de Guizot, a cuja biblioteca pertenceu?

Talvez não saibas: fica sabendo (OC, IV, p. 325).85

Em meados de 1850, conjugava-se imprensa política, científica e literária. As revistas científicas dessa época traziam como título secundário, muitas vezes, “jornal científico e literário” ou “jornal de artes, ciências e literatura”. Homens de letras espiavam a esfera pública e não era raro observar um político ou um cientista metendo-se a fazer versos. Os cargos de baixo escalão do Estado eram preenchidos, em sua maioria, por profissionais liberais que não obtinham renda suficiente com o exercício de sua própria profissão. O primeiro censo realizado no Brasil, em 1872, dá conta de que 15% da população livre e ocupada pertencia ao funcionalismo. O emprego público se tornou, na expressão exagerada de Joaquim Nabuco, uma “vocação de todos”. Jovens bacharéis brasileiros da mesma casta de Machado de Assis, como o poeta abolicionista Castro Alves, o futuro ministro e escritor Rui Barbosa, além do próprio Nabuco, passaram a militar dentro e fora do governo,

82 VIANNA. “Revendo a biblioteca de Machado de Assis”, p. 271. A periodicidade da Revue era trimestral.

Machado possuía o v. 4 daquele ano, publicado no último trimestre.

83 CAMARGO, Katia. “Leitores e questões identitárias no Brasil oitocentista”. Revista Porto. Rio Grande do

Norte, v. 2, n.. 3, 2013, p. 75.

84 SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance

brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1981, p. 86, nota 5.

85 Publicado originalmente na Ilustração Brasileira, 15 mar. 1877. Machado ainda cita a revista em O Cruzeiro,

na série “Notas Semanais”, 1 set. 1878. François Guizot (1787-1874) foi um sociólogo político e importante doutrinário do liberalismo. Fez parte do grupo de espiritualistas ecléticos junto de Maine de Biran, Victor Cousin e Royer-Collard. Exerceu especial influência no liberalismo conservador brasileiro. De acordo com o professor Alex Sander Campos, editor da Machadiana Eletrônica, Machado fez uma pequena transcrição da Revue em O Futuro (15 set. 1862). O excerto de texto estará disponível na próxima edição daquela revista.

preferencialmente através dos jornais, conforme a alternância ideológica dos gabinetes ministeriais. À voz pública, o governo de D. Pedro II tinha o conceito de conferir relativa liberdade de expressão aos órgãos de imprensa, tolerando antimonarquistas e os desagravos que repugnavam a sua própria pessoa. Apesar da fama do moderador, não se deve menosprezar a relação de subserviência econômica e ideológica que desfavorecia esses órgãos e certamente limitava a tomada de posição contrária ao governo central. Três das liberdades fundamentais eram restritas ou inexistiam nesse período, a saber, a liberdade eleitoral, cujo sufrágio censitário permitia ainda algum grau de manipulação, a liberdade do Estado em relação à Igreja, que só irá vigorar oficialmente durante a República, e, a mais contraditória e incompreensível, a liberdade de ter direitos, cerceada pelo sistema escravista a mais de um milhão de membros daquela sociedade dita liberal.86

Visto dentro desse contexto, a política representava, para Machado de Assis, menos uma vocação pessoal do que a possibilidade de se estabelecer financeiramente, e menos uma questão de dinheiro do que de laços fraternais que lhe permitissem ascender ao mundo literário. Não lhe interessava participar da “politicagem” e do espetáculo promovido pelas paixões partidárias, pela retórica da liberdade, embora lhe importasse, como matéria recorrente em sua obra, a relação contraditória entre aquela retórica e as práticas a ela contrárias, o acotovelamento e os afagos entre os homens livres que buscavam exceder aos outros e alcançar, nas palavras do narrador das Memórias póstumas, “uma supremacia, qualquer que fosse” (OC, I, p. 617). Conceitos de moralista como a vaidade, o favor, o amor- próprio, o concubinato e a falsa piedade são consistentes com um gênero de antropologia cética com a qual Machado passaria a perceber o mundo, a partir de certa idade. A análise dos contos “O oráculo”, “Valério” e “O programa”, na próxima seção, deve reiterar a dramatização das tentativas de ascensão social por meio do jornalismo político e do serviço público.

Voltemos ao conto. Antes de terminar suas fabulações literárias, o Romualdo de “O Programa” publica o primeiro tomo de Verdades e Quimeras, livro de teoria literária que tratava de divagar, com o genuíno romantismo, sobre a verdade da poesia. Após o primeiro sucesso, ele seguiu com o seu projeto de se tornar bacharel, mas... vieram a primeira derrota

amorosa, a primeira derrota política, as derrotas jurídicas na imprensa e outras mais. Criou dívidas e inimigos. Envelheceu. Chegou a concluir que o programa fora a causa de seus males.

E, então, comparando ainda uma vez os sonhos e a realidade, lembrou- lhe Schiller, que lera vinte e cinco anos antes, e repetiu com ele: “Também eu nasci na Arcádia...”. A mulher, não entendendo a frase, perguntou-lhe se queria alguma coisa. Ele respondeu-lhe: – A tua alegria e uma xícara de café (OC, III, p. 98).

Ficamos, de início, como a mulher, quase sem entender a menção. Mas então nos recordamos que aqui o narrador repete, como mote, a epígrafe do conto. A menção a Schiller faz referência ao primeiro verso do poema “Resignation”, uma espécie de hino para o romantismo alemão. “Também eu nasci na Arcádia” instiga a nostalgia que deve ter inspirado Machado de Assis na composição desse conto, publicado em 1883. O nosso literato-filósofo87 ingressara coincidentemente como revisor de provas, vinte e cinco anos

antes, no mesmo ano e no mesmo jornal que o desafortunado Romualdo. Foi no Correio Mercantil, jornal moderadamente anticlerical e antiescravista, depois na Marmota Fluminense, onde experimentara as primeiras poesias.88 Nesse último jornal, Machado publicou uma poesia homônima, “Resignação”, em que retomava a ideia de inevitabilidade da morte e das ilusões diante uma vida repleta “da dor e do martírio” (OC, III, p. 699).

Nessa época, assim como seu personagem, Machado abandonou a sua teologia de artista de inspiração espiritualista e se tornou, por alguns meses, republicano, democrata e liberal. Veremos no terceiro capítulo o que significou essa “teologia de artista”. Por ora, devemos observar que o engajamento político e liberal derivou de seu contato com Eugène Pelletan, notável no artigo “O passado, o presente e o futuro da literatura”, publicado em O Paraíba, em abril de 1858. Durante um ano, ele abraçou a profissão de jornalista como se fosse um “levita”, subordinando a verve artística à missão política de homem da imprensa.89

87 O termo “literato-filósofo” pode realizar certa contradição com o que dizíamos na Introdução sobre não

haver indícios de que o próprio Machado tenha aspirado o título de filósofo. A tese é de que a literatura machadiana pode ser interpretada contendo componentes filosóficos, ou expressando um “pensamento ficcional”. Daí considerá-lo “literato-filósofo” e não “filósofo-literato”, no mesmo sentido que Brás Cubas se considerava “defunto-autor” e não “autor-defunto”.

88 “Ela” (12 jan. 1855) e “A Palmeira” (16 jan. 1855) publicados na Marmota e “O grito do Ipiranga” (09 set.

1856) no importante Correio Mercantil. “À Ilma. Sra. D.P.J.A.” (03 out. 1854), uma poesia anterior, mas sem tanta repercussão, foi publicada no Periódico dos Pobres.

É de se notar o relativo sentimento de resignação e nostalgia, pois o otimismo que carregava sobre o futuro das letras nacionais, sobretudo em relação ao teatro, foi sendo, aos poucos, derrotado.

Em saudosa crônica, Machado de Assis lembra como Quintino Bocaiuva o convidara a fazer parte da redação do Diário do Rio de Janeiro, em 1860:

Nesse ano entrara eu para a imprensa. Uma noite, como saíssemos do teatro Ginásio, Quintino Bocaiuva e eu fomos tomar chá. Bocaiuva era então uma gentil figura de rapaz, delgado, tez macia, fino bigode e olhos serenos. Já então tinha os gestos lentos de hoje, e um pouco daquele ar distant que Taine achou em Mérimée. Disseram coisa análoga de Challemel-Lacour, que alguém ultimamente definia como

très républicain de conviction et très aristocrate de tempérament. O

nosso Bocaiuva era só a segunda parte, mas já então liberal bastante para dar um republicano convicto. Ao chá, conversamos primeiramente de letras, e pouco depois de política, matéria introduzida por ele, o que me espantou bastante, não era usual nas nossas práticas. Nem é exato dizer que conversamos de política, eu antes respondia às perguntas que Bocaiuva me ia fazendo, como se quisesse conhecer as minhas opiniões. Provavelmente não as teria fixas nem determinadas; mas, quaisquer que fossem, creio que as exprimi na proporção e com a precisão apenas adequadas ao que ele me ia oferecer. [...] Na manhã seguinte, achei ali Bocaiuva escrevendo um bilhete. Tratava-se do

Diário do Rio de Janeiro, que ia reaparecer, sob a direção política de

Saldanha Marinho. Vinha dar-me um lugar na redação com ele e Henrique César Múzio (OC, II, p. 580).

À função de crítico teatral, Machado ainda acumulou a de tradutor e a de comentarista legislativo. Daí a pouco fora despachado para o Senado Imperial, onde trabalhou como cronista parlamentar.90 Foi a oportunidade de estudar os tipos, os cacoetes e as afetações daqueles grandes figurões políticos, cuja sociabilidade, dispersa ao redor da ambição pela glória, era sistematicamente transferida para a ficção. Tornar-se deputado é um símbolo de vitória social em quase todos os seus livros.91 No caso de Machado, mesmo que seja verdadeira sua intenção em candidatar-se a uma cadeira de deputado, o tumulto que se seguiu deve ter servido apenas para confirmar a sua desilusão com a política. Saldanha Marinho, o liberal que poderia ser o seu cabo eleitoral, logo foi demitido, declarando-se

90 MAGALHÃES JÚNIOR. Vida e obra de Machado de Assis, v. 1, p. 163. 91 MAGALHÃES JÚNIOR. Machado de Assis desconhecido, p. 82.

republicano, junto com vários amigos, mas não Machado. Ele contornara o abismo da política colocando-se na posição de um fideísta, assentando-se na crença de que a tradicional instituição monárquica é fundamental para a tranquilidade civil, e desacreditando de qualquer melhoria em relação a uma eventual mudança no sistema de governo.

Endereçando-se à Opinião pública, chamando-a, como Pascal, de “regina del mondo” (La 44 Br 82), ele deixa escapar essa confissão:

Quanto às minhas opiniões políticas, tenho duas, uma impossível, outra realizada. A impossível é a república de Platão. A realizada é o sistema representativo. É sobretudo como brasileiro que me agrada esta última opinião, e eu peço aos deuses (também creio nos deuses) que afastem do Brasil o sistema republicano porque esse dia seria o do nascimento da mais insolente aristocracia que o sol jamais alumiou.

Não frequento o paço, mas gosto do imperador. Tem as duas qualidades essenciais ao chefe de uma nação: é esclarecido e honesto. Ama o seu país e acha que ele merece todos os sacrifícios (OC, III, p. 1141). Na verdade, Machado simplifica o passo de Pascal, que falava primeiramente da imaginação, princípio de erro dos sentidos e do juízo, que se estabelece no homem como uma segunda natureza. Ambos concordam se tratar de uma força universal. Fruto da imaginação, a opinião reina sobre todo o mundo e toda a gente, ela está aquém do episódico, embora provoque diferentes ações episódicas a depender das relações sociais específicas em que se enquadre. E Machado completa o simplificado: “se a opinião domina os costumes políticos, a senhora domina os costumes sociais” (OC, III, p. 1143). A senhora, hetaira, cortesã ou prostituta, imitação da virtude, traz ao caso brasileiro alguma sutileza, por exemplo, faz as pessoas terem hábitos pios, sem terem o espírito religioso, caminharem à igreja por vaidade e não por fé. No decorrer da formação filosófica de Machado, a discussão ético-política sobre a opinião terá o concurso de razões epistemológicas sobre as limitações humanas de compreender a realidade. Contaremos no quarto capítulo um caso em que a retomada de argumentos céticos antigos, via tradição agostiniana, interfere na elaboração ficcional de conceitos como o amor e a dúvida. O exemplo de Machado parece arrematar o fim do discurso de Pascal no fragmento da aposta (La 418 Br 233), em que o jansenista recomenda aos descrentes que comecem por fingir piedade e imitar a virtude cristã, o que “naturalmente” os faria acreditar e os deixaria “abestalhados” (abêtir), isto é, como bestas. Essa recomendação repugnou o conservadorismo cristão da época. Machado escancarava

que o efeito a longo prazo da simulação daquelas virtudes, em teste no caso brasileiro, não era o reconhecimento da própria baixeza, mas o aumento das paixões e dos vícios.

Apesar do combate, nas críticas teatrais, aos maus sentimentos e à imoralidade, o que tornou Machado uma figura conhecida no meio conservador, no início dos anos 1860, foram suas crônicas parlamentares de tom liberal. No Conservatório, ele reverenciava os bons costumes e o tratamento correto da linguagem. No parlamento, era insubordinado e provocador:

Eu, mal chegava ao Senado, estava com os anjos. Tumulto, saraivada grossa, caluniador para cá, caluniador para lá, eis o que pode manter o interesse de um debate. E que é a vida senão uma troca de cachações? [...] Réplica, tréplica, agitação, um dia cheio [...] Assim continuei a intervir nos debates, e a fazer crescer o meu direito político (OC, 4, p. 876).

Os anos de cobertura política, no início da década de 1860, foram suficientes para arrefecer o pulso liberal do jovem escritor? A investigação biográfica oferece uma hipótese alternativa curiosa: Machado alimentava em si ambições políticas, tendo candidatura especulada e fracassada para deputado no segundo distrito de Minas Gerais.92

Ele também teria ficado desgostoso com as mudanças ideológicas do próprio jornal, cada vez menos enérgico e mais flexível ao conservadorismo.93

O malogro que sentiu se explica por uma inadaptação a esses jogos sutis, nascida da sua juvenil intransigência. Este insucesso levou-o a procurar na literatura, menos impura, senão outras satisfações, pelo menos outro caminho. O teatro, retorno às fontes, foi a primeira delas.94 Assim como o seu personagem, Machado sofreu diversas derrotas, se não desvios da rota em seu projeto literário inicial. Se a práxis e os joguetes da política arruinassem a teoria progressista e o projeto edificante, a formação e os conhecimentos dramatúrgicos ainda poderiam ditar suas posições teóricas. As posições políticas não eram “nem fixas nem determinadas”, como lembra o cronista de “O velho Senado”. Mesmo que a nomeada não procedesse de um mandato político, Machado se consagraria na crítica

92 MAGALHÃES JÚNIOR. Vida e obra de Machado de Assis, v. 2, p. 8. 93 MASSA. A juventude de Machado de Assis, p. 308.

especializada da nova cena teatral dos anos 1860 como árbitro das preferências estéticas e do sentido moral.

Nessa época, o governo central adotou várias medidas de estímulo cultural, por exemplo, mandou construir grandes teatros e passou a financiar companhias inteiras. Os dramas, pouco a pouco, se afastavam das notações clássicas e arcádicas em busca daquilo que expressasse romanticamente a alma brasileira. Com o conhecimento atualizado na área