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Pascal e Machado de Assis – modos de leitura

CAPÍTULO 2 – PASCAL NO BRASIL: CETICISMO E ESPIRITUALISMO

2.3 Pascal e Machado de Assis – modos de leitura

Algumas referências autorais estão onipresentes na obra romanesca de Machado de Assis: Dante, Shakespeare, Molière, Goethe, Virgílio, Voltaire, os livros do Eclesiastes e de Jó, além de assuntos tomados da mitologia greco-romana.198 Se repararmos bem, os literatos prediletos de Machado de Assis possuem qualquer coisa filosófica. Alguns, como Voltaire e os Salmos, estão no limite entre uma coisa e outra. Não por acaso, de todos os textos bíblicos, Machado apresenta predileção para os portadores de sabedoria, aqueles que oferecem respostas metafísicas ao drama existencial humano, como o Eclesiastes e o livro de Jó. Os temas míticos do Livro Sagrado servem ainda como chave de interpretação para as crônicas do dia, seja em referências irônicas, por exemplo, dizendo “como Bossuet: só Deus é grande, meus irmãos” (OC, IV, 1256),199 seja ressignificando o próprio sentido do

texto, como nessa conversa imaginária com Jesus:

Dizias uma necedade quando afirmavas que contra a tua Igreja não prevaleceriam as portas do inferno. Estavas em erro, meu divino Cristo. A força da tua igreja não vem da tua doutrina; vem de alguns quilômetros de território. O catolicismo em Roma vale tudo; se o

197 Por exemplo, Chateaubriand (O génio do cristianismo, v. 2, p. 47), afirma que o Pascal sofista era inferior

ao Pascal cristão.

198 BRANDÃO, Ruth Silviano; OLIVEIRA, José Marcos Resende. Machado de Assis leitor: uma viagem à

roda de livros. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p. 115.

199 Machado se refere aqui ao poder espiritual exercido por Antônio Conselheiro, capaz de reunir em torno de

si mais de três mil homens armados, ao passo que as instituições republicanas não conseguiam angariar número igual de votantes.

pusessem em Jerusalém, não valia nada. Verité en deçà, erreur au

delà.200

Em ambos os casos, os sentidos de referência ao Evangelho apontam para o período de formação intelectual de Machado. Desde então, os filósofos com predominância literária, ou os que refletem sobre a maneira de escrever, como Chateaubriand, Montaigne, além de Renan e Schopenhauer terão a preferência de diálogo dentro do seu texto. Deixando de lado a análise puramente quantitativa, os estudos de fonte disponíveis apontam Pascal como a principal influência filosófica de Machado de Assis. Conforme se argumentou na seção anterior, essa influência ocorreu de maneira indireta na primeira juventude de Machado. Por isso, o estudo de fontes pode se servir do cruzamento de dados, do contexto intelectual, de dados biográficos, de similaridades eletivas, de referências dispersas e das repetições, como é o caso da passagem anterior. A citação à passagem favorita e recorrente na obra de Machado de Assis, verité en deçà, erreur au delà, é um elemento que pode reforçar a atribuição de autoria dessa crônica. É nesse jornal, escondido por detrás do pseudônimo, que Machado antecipa, em dez anos, o mesmo argumento que nas Memórias póstumas aparecerá como uma oposição a Pascal:

Pascal dizia que o homem não era anjo nem besta. Eu peço licença às suas ilustres cinzas para dizer que é uma e outra coisa. E esta natureza semiangélica e semibestial é que faz justamente a nossa grandeza, porque em suma podíamos ser exclusivamente bestas (e o somos às vezes).201

Retomarei este ponto no último capítulo, quando for relevante o contexto filosófico das Memórias póstumas. Por enquanto, basta notar que a possibilidade de reinterpretação da antropologia pascaliana por Machado, ou melhor, pelo Dr. Semana, foi condicionada pela desobstrução efetuada por Cousin sobre o texto das Pensées. O modo enviesado pelo qual Pascal fora recebido por Machado e, de resto, pelos intelectuais brasileiros explica, em boa medida, o número reduzido de citações diretas ao jansenista

200 MACHADO DE ASSIS et al. (Dr. Semana). “Badaladas”. Semana Ilustrada, n. 567, Rio de Janeiro, 22 out.

1871, f. 4500. Disponível em < http://memoria.bn.br/DocReader/702951/4544>. Acesso em 30 out. 2016. Os bibliógrafos machadianos têm dúvidas sobre a atribuição de autoria da série de crônicas “Badaladas”. Machado era um dos cronistas que escreviam sobre o pseudônimo Dr. Semana. Por isso, os editores da

Obra completa foram cautelosos ao não recolher esses textos.

201 MACHADO DE ASSIS et al. (Dr. Semana). “Badaladas”. Semana Ilustrada, n. 538, 2 abr. 1871, f. 4298.

francês em comparação aos campeões Shakespeare, Homero, Molière e, claro, a Bíblia. Não se pode desconsiderar o fato de que os três primeiros sejam autores literários. Para que fique claro, basta revisitar as Memórias póstumas, romance seminal, para que se assegure do entrelaçamento entre as visões filosóficas de Pascal e Machado. Diversos comentadores já se debruçaram sobre o tema. A seguir, reavaliamos a metodologia e o alcance dessas interpretações tendo em vista as novas informações obtidas pelo presente estudo de fontes.

Afrânio Coutinho realiza o primeiro estudo substancial sobre a relação entre Machado de Assis e Pascal. Segundo Coutinho, a análise moralizante e a observação psicológica dos caracteres, marcas do classicismo francês, afetaram profundamente o espírito de Machado de Assis, especialmente as leituras de Pascal e Montaigne.

A atitude filosófica de Machado, a sua concepção do mundo, da vida e do homem, formou-se também como resultado da meditação de grandes obras do pensamento universal, que, ao lado dos seus motivos pessoais, precedentemente estudados, lhe incutiram uma visão totalmente pessimista. Essas influências vieram acrescentar-se às tendências latentes no espírito do homem, geradas pela doença incurável, pela cor e pela inferioridade de origem, tendências que davam, já de si mesmas, ao observador perspicaz, uma consciência muito exagerada das misérias humanas, um gosto muito apurado em pintar o lado mau do homem, uma visão escurecida da vida social. Deram às tendências naturais um apoio filosófico, uma interpretação racional, uma autoridade doutrinária.202

Coutinho divide seu trabalho em duas partes. Na primeira, ele busca penetrar “no fundo obscuro da consciência” do autor para daí retirar seus motivos criativos. A “fisionomia espiritual” de Machado revelou “tenebrosos sentimentos íntimos”, resultado de sua enfermidade, da epilepsia, da gagueira, da cor da pele e da pobreza.

Lúcia Miguel Pereira havia aberto essa trilha quando utilizou a mesma metodologia para supor a filiação de ideias. Em determinada época de sua vida, Machado contagiara-se do pessimismo, se bem que rejeitasse o misticismo e a marca do pecado original. Ele encontrou, na origem divina, apenas mais um mistério, e na fraqueza do homem,

202 COUTINHO, Afrânio. “A filosofia de Machado de Assis” (1940). Machado de Assis na literatura brasileira. Rio de Janeiro: ABL, 1990, p. 157-158.

a relatividade das leis morais.203 É como se o homem de Pascal, pendulando entre a baixeza e a grandeza, se perdesse na marcha em direção ao mistério. Esse homem perdido é o narrador humorista e “quase sádico” de Machado de Assis. Aliás, em última instância, esse homem seria o próprio Machado de Assis. Cansado de lutar contra o mistério pascaliano, de esperar que a graça divina se lhe revele, ele produziu literatura por vingança, relativizando todo valor que se possa dizer humano.

A metodologia biogenética de Coutinho e Miguel Pereira já não encontra muitos defensores, porque se desfez hoje a crença de que o caráter do autor seja suficiente para explicar totalmente a sua obra. Com alguma frequência, em relação às teses de Coutinho, a crítica machadiana incorre na falácia do espantalho, que consiste em atacar o argumento mais fraco, nesse caso a utilização de fatores biográficos e sociais para explicar a obra, com a finalidade de atenuar a influência de Pascal.204

É na segunda parte do estudo onde o crítico baiano avança a sua hipótese menos extravagante, fincada numa metodologia mais aceitável: as antropologias de Machado e Pascal possuiriam grandes afinidades. Coutinho é certeiro ao dizer que ambos tentam resolver um problema comum, a saber, o “problema da vida cristã no mundo”. Para resolvê- lo, ambos adotam vocabulários de antropologia semelhantes.

“O homem de Machado é o homem de Pascal”, afirma Coutinho, com a diferença de que, para o nosso literato, não há redenção e ordem sobrenatural. Também não é possível esperar e adotar uma moral cristã, pois dentro do homem só há:

abismo, contradição, enigma; tarado, cheio de vícios, incerto, dubitativo, inconstante, incoerente, contraditório, flutuante, agitado, de espírito volúvel e inteligência fraca, sem nenhum apoio moral, com uma tendência imperiosa para o mal e o crime; escravo da sensibilidade e da imaginação que o extraviam e enganam, de leis arbitrárias, de um hábito tirano, da opinião; desordenado pelas paixões, cheio de misérias, vive eternamente atrás de uma quimera [...]. As suas ações, que formam o tecido da tragicomédia humana, tem sempre no fundo, mesmo as

203 MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Machado de Assis – Estudo crítico e biográfico. 3. ed. São Paulo; Rio de

Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1946, p. 232 e 260.

204 Veja-se, por exemplo: CEI, Vitor. A voluptuosidade do nada: niilismo e galhofa em Machado de Assis. São

Paulo: Annablume, 2016, p. 33 e 94: “Não se pode exagerar a vinculação do autor brasileiro ao matemático e teólogo francês”.

boas, um motivo secreto, que as explica e origina, ordenado pela felicidade, interesse, amor-próprio. Sempre o egoísmo, os sentimentos vis e a concupiscência são os móveis secretos de toda a vida no mundo. A concupiscência domina o caráter dos personagens machadianos.205 A explicação para o problema da vida cristã no mundo assume contornos metafísicos. O homem é incapaz de perceber como é verdadeiramente o universo criado, mantendo-se sob o véu das opiniões e da maldade. Trata-se de uma incapacidade comum a toda humanidade. A comparação entre os autores, porém, ocorre sempre em desabono para a literatura machadiana, mero pastiche das teses pascalianas caducas. É como se Machado de Assis fosse um mau leitor de Pascal. Machado errou ao ter exagerado no pessimismo e se “conformado apenas com o Pascal sombrio e não ter penetrado com ele nesse mundo do sobrenatural, ao qual conduziu a sua inquietude formidável”.206

Raymundo Faoro oferece outra resposta ao empreender uma leitura mimética da obra machadiana à luz de suas teses sobre a formação política e econômica do Brasil Império. Isso porque questões como a liberdade e a vida cristã no mundo podem adquirir características diferentes conforme o contexto histórico e social. As personagens e as situações compõem, reflexivamente, a estrutura arquitetônica da sociedade brasileira. O quadro sincrônico apresenta a base estamental espalhada como num trapézio. Nessa sobreposição de figuras fundam-se a burocracia do Estado e o patrimonialismo colonial, com seus próprios conjuntos de insígnias. O quadro diacrônico mostra as forças modernizantes tentando ascender verticalmente a estrutura piramidal de classes, ora combinando-se ora sobrepondo-se ao eixo basilar. A virtude de Machado de Assis foi supor a existência de um terceiro eixo, o hermenêutico. Mas a posição na qual o escritor se coloca para desvendar essa figuração social não é bem a mesma do moralista:

A denúncia, o desmascaramento, em Machado de Assis, não mostra, no fundo das ações, o inconsciente, os interesses de classe e a longa distorção do tecido histórico. Vai além, na verdade, do nariz de Cleópatra de seu louvado Pascal, para discernir uma ordem subterrânea, que ele supõe organizada segundo forças obscuras, empenhadas em se alhear da presunção humana. Ele sabe que tudo o que se vê, na superfície da sociedade, não passa de falsificação e mistificação.

205 COUTINHO. “A filosofia de Machado de Assis”, p. 189-190. 206 COUTINHO. “A filosofia de Machado de Assis”, p. 187.

Ignora, ou apenas pressente, emancipando-se, sem audácia, dos moralistas, que as relações entre os homens obedecem a outros imperativos, talvez falsos e vãos, como os ostensivos.207

É necessária a intervenção exegética do sociólogo sobre esse terceiro eixo, na medida em que falta ao próprio Machado de Assis o “preparo filosófico”.208 Caberia ao

sociólogo, intérprete da obra, preencher essa lacuna, transformando as possíveis influências em conteúdo coerente. Com esse auxílio, Machado de Assis é enfileirado ombro a ombro junto a Marx, Nietzsche e Freud, “mestres da suspeita” – designação de Paul Ricoeur –, da denúncia e do desmascaramento. As principais questões de seu tempo são colocadas como enigmas a serem decifrados. Os problemas da moralidade cristã e da liberdade, por exemplo, dourados por ações generosas e por discursos políticos edificantes, reconfiguram-se não como sentimento e destino de um indivíduo, mas como trama profunda das instituições, da sociedade, da história e da economia. Essas instituições comprimem e trituram a vontade interior e a conduta pessoal:

E o moralista, cegado pela virtude e pelo vício, móveis de toda a vibração humana, onde está ele? Parece que o sociólogo usurpa o seu lugar, atento à realidade exterior, fixada na história e na sociedade. O sociólogo tem a função exclusiva, ao contrário de revelar a sociedade, de denunciar a presença de uma trama inacessível à vontade humana e ao protesto. Mostra, sob a aparência de estudioso das instituições sociais, a impotência para reagir diante do monstro inexorável que comanda homens e coisas.209

O homem de Machado ainda lembra o homem de Pascal. Muito embora, no caso de Coutinho, esse homem não possuísse, em sua natureza algo metafísica, nenhuma aspiração elevada, qualquer ímpeto de grandeza ou ligação com a realidade sobrenatural. No caso de Faoro, a natureza que fatalmente o esmaga é a pirâmide social. Para um e outro, a consciência dessa natureza miserável do ser humano e o senso trágico da existência teriam se formado na maturidade, como contraponto ao romantismo otimista da juventude, após a suposta epifania com a obra de Pascal nos fins da década de 1870. Para todos os efeitos, o escritor brasileiro fora incapaz de enxergar, mesmo na maturidade, todas as cores da tela em

207 FAORO. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio, p. 361-362. 208 FAORO. Machado de Assis: A pirâmide e o trapézio, p. 360. 209 FAORO. Machado de Assis: A pirâmide e o trapézio, p. 363-364.

que pintava, distorcendo, portanto, o verdadeiro ensinamento de Pascal. Daí as censuras de Coutinho e Faoro.

O senso comum academista se apega ao truísmo de que a visão de mundo de Machado de Assis, colorida durante a década de 1870, tornou-se pessimista à medida que que ele desacreditasse do projeto progressista, científico e burguês da modernidade, sem socorro da alternativa mística ou da ética cristã. Por isso, a aproximação entre Pascal e Machado de Assis é mitigada por Sérgio Buarque de Holanda e Miguel Reale. Contudo, as ressalvas mais apontam uma inconsistência na interpretação da filosofia pascaliana – Coutinho desvaloriza a parte apologética das Pensées – do que reduzem a importância do jansenista na visão de mundo do nosso literato. Para estes intérpretes, a parcela trágica do projeto pascaliano não explicaria, de todo, a expressão literária do humour machadiano, pois sua antropologia não é uma consequência do pecado e da redenção. Não há tragicidade, portanto, apenas absurdo encoberto pela ironia. De acordo com Sérgio Buarque,

Machado de Assis não parece deliciar-se profundamente em sua própria descrença. E talvez sentisse como uma inferioridade a inaptidão para ver os homens de outra forma, para julgá-los dignos de amor. Assim, sob as aparências de uma zombaria constante, esconde um sentimento de deficiência. O humour é expressão adequada desse disfarce.210 Sejamos justos, Faoro e Coutinho já haviam ressaltado o humour como a ferramenta hermenêutica de que Machado dispunha para lidar com o enigma humano e escapar das conclusões pessimistas schopenhauerianas. Segundo Faoro, a questão da liberdade, por exemplo, especificada no discurso abolicionista, cumpriu a função ideológica necessária à coesão entre os estamentos: a liberdade não emancipa o escravo, pois ser livre é apenas um modo de ascender ao primeiro degrau da pirâmide que ainda o sufoca. Comentou-se anteriormente o exemplo de Prudêncio, o alforriado tornou-se senhor de escravo dos mais intransigentes, até ficar novamente diante de seu velho dono. A sucessão de significados, do escravo, do liberto, do escravista e do subserviente joga contra o projeto iluminista da liberdade, embora este projeto, por aqui, tenha a função de normalizar situações disparatadas (OC, I, p. 669).211

210 HOLANDA, Sérgio Buarque de. “A filosofia de Machado de Assis”. In: _____. O espírito e a Letra

I. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 311.

Até aqui as diversas tentativas de traduzir a literatura machadiana em filosofia imbuíram-se da crença de que um homem, através de uma obra particular, deva expressar o espírito de um tempo e de um povo. Nesse caso, interpretar significa apreender objetivamente o conteúdo dessa obra através de possíveis influências, ou seja, significa elencar as condições pessoais, históricas e sociais que conferem relevância à obra, num fluxo que parte de sua forma composicional, passa por um eixo temático e encerra a própria realidade.

Outra maneira de remeter o pensamento ficcional ao contexto histórico e social é efetuada por John Gledson e Roberto Schwarz. Comprometidos com o “paradigma do pé atrás”, corrente interpretativa que tende a desconfiar das asserções das instâncias ficcionais, esses intérpretes utilizam diferentes estratégias para encontrar vestígios da presença do autor “real”. O resultado desse tipo de interpretação invariavelmente nega qualquer traço intencionalmente filosófico presente no texto machadiano.212

A interpretação histórico-sociológica, encabeçada por Roberto Schwarz, capta, na forma volúvel do romance, a estilização da classe dominante brasileira, que fique claro, a vivência da contradição entre práticas arcaicas e teorias liberais. Esse padrão formal é o procedimento empregado por Machado na composição das Memórias póstumas de Brás Cubas. Ora os eventos apresentam a condição da insuficiência humana, ora a feição pessoal das personagens e do narrador, ora alguma característica brasileira. Estas perspectivas se misturam quase sem transição, critério e definição. O particular e o universal se revezam e se desqualificam, podendo ser usados, dependendo do mau-caratismo do narrador, como norma ou como transgressão. Assim qualquer filosofia é um filosofema sem conteúdo, pois retrata apenas a desfaçatez retórica e ideológica das personagens da classe dominante.

Para esta interpretação, não há que se falar em “filosofia” (sistema, discurso pretensamente verdadeiro), nem em influências filosóficas determinantes, mas tão somente em mascaramento e desconversa ideológica. O mesmo pode ser dito sobre as possíveis

212 SCHWARZ. Um Mestre na Periferia do Capitalismo: Machado de Assis, 1991. 2. ed. Duas Cidades: São

Paulo, 1991; GLEDSON, John. Machado de Assis: impostura e realismo, uma reinterpretação de Dom Casmurro. Tradução Fernando Py. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Ao adotar essa estratégia, esses críticos devem oferecer uma resposta ao problema do realismo em Machado de Assis. Trataremos disso no último capítulo. Sobre o “paradigma do pé atrás”, ver BAPTISTA, Abel Barros. “O legado Caldwell, ou o paradigma do pé atrás”. Santa Barbara Portuguese Studies 1 (1994), p. 145-177; KINNEAR, J. C. "Machado de Assis: To Believe or Not to Believe?", in Modern Language Review, v. 71, Edimburgo, 1976.

relações entre a filosofia pascaliana e o texto machadiano. Apesar disso, é possível perceber sob a forma volúvel vestígios da intenção realista e anti-ideológica do próprio Machado de Assis.

O exercício da literatura comparada consiste em percorrer e relacionar os caminhos recorrendo aos textos de diferentes autores. Silviano Santiago, por exemplo, alude às Provinciais de Pascal, especialmente a crítica à casuística jesuíta, “a doutrina das opiniões prováveis”. Eis o ponto de referência para o discurso propositalmente ambíguo do narrador de Dom Casmurro, que se utiliza do verossímil para convencer-nos de que ele é a verdadeira vítima da trama.213 O expediente casuístico da opinião provável é atacado por Pascal na

Carta XIII de suas Provinciais. Em comum, Pascal e Machado criticaram os jesuítas, responsáveis, no caso brasileiro, por nossa educação moral e religiosa. Assim, a filosofia de Machado de Assis não tinha como base o “ressentimento de mulato”, mas a análise dos desvios da cultura brasileira, “que sempre viveu sobre a proteção dos bacharéis e sob o beneplácito moral dos jesuítas”.214 O perigo da comparação é o privilégio teórico concedido

a um dos correlata ao se tentar traduzir uma filosofia através da forma literária ou ao se tentar implicar e descobrir o verdadeiro significado da obra literária.215

As interpretações de Miguel Reale e Otto M. Carpeaux são paradigmáticas deste método interpretativo. Quando tentam identificar manifestações filosóficas no texto, constatam que elas não correspondem ao original, utilizando “aspas” ou traduções para dar