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5.2 Um Hóspede Invisível

6.1.1 A astúcia complacente no antecampo

Todo o tempo, cineasta e equipe permanecem no antecampo. Sentimos sua presença pelos constantes olhares e gestos expressivos que são, juntamente com as falas, dirigidos pelos personagens em quadro para as vizinhanças da câmera, e pelas raras ocasiões em que, com muita dificuldade, ouvimos alguma pergunta ou comentário dos que filmam. Apesar de constantemente evocados (pelos olhares, gestos e falas dos personagens), cineasta e equipe estão à espreita e, em nenhum momento, compartilham do mesmo enquadramento que os personagens filmados (ainda que, em algumas passagens, possamos ouvir suas vozes72). Entretanto, como temos afirmado desde o início, mesmo não compartilhando do quadro, cineasta e equipe sempre estão – pelo menos nos documentários em que há presença do cineasta e equipe no momento das filmagens73 –, de algum modo, a dividir uma cena instaurada pelo filme. Fica nítido para o espectador, já nessa primeira sequência em que vemos e ouvimos os personagens de Um lugar ao sol, que nessa cena compartilhada por personagens, cineasta e equipe, aqueles que são filmados parecem ter pouca clareza de que aqueles que filmam desejam, com o manejo de suas imagens e falas, produzir um filme no qual serão mostrados como pessoas que, às vezes, beiram o patético, e diante das quais o

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Há passagens em que, além da voz do cineasta, é possível ouvir outras vozes provenientes do espaço onde estão aqueles que filmam. Há uma ocasião em que uma das personagens menciona o nome de uma pessoa da equipe de produção, Gabriela (que, pelos créditos de encerramento do filme, imaginamos tratar-se de Gabriela Ribeiro, que trabalhou na pesquisa e produção local, no Rio de Janeiro).

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Aqui é importante lembrar que nem sempre, quando se trata de documentários, o cineasta (e eventual equipe) está presente no momento da filmagem. Em uma dessas variações, teríamos a tradição do documentário de compilação (ou documentário de arquivo), em que, para que haja filme, o cineasta seleciona e organiza (muitas vezes respondendo pela função de montador) imagens e sons previamente filmados/existentes. Uma figura notória dessa tradição é Esfir Shub (também conhecida como Esther Shub), cineasta soviética que, em 1927 lançou A queda do Império Romanov, filme comemorativo dos dez anos da Revolução Russa. O filme de Shub foi construído a partir da pesquisa e seleção de arquivos fílmicos de diversos cinegrafistas (incluindo filmagens amadoras) que registraram, entre 1912 e 1917, a assimetria entre a vida dos trabalhadores e os rituais opulentos da dinastia czarista em uma Rússia em conflito, que culminará com a abdicação do Czar Nicolau 2º e a revolução proletária. Lembramos que há vários documentários brasileiros recentes nos quais o cineasta responde pela organização de material filmado por outros, sendo que, muitas vezes, a própria filmagem integra a proposta do filme concebido pelo cineasta. Filmes como Doméstica (Gabriel Mascaro, 2012), Pacific (Marcelo Pedroso, 2009) e Rua de mão dupla (Cao Guimarães, 2004), ainda que bastante diferentes em suas proposições, têm em comum o fato de suas imagens e sons terem sido feitos pelos próprios personagens que aparecem nos filmes. Os cineastas atuam ora como propositores das situações filmadas, ora como organizadores e montadores do material filmado. Lembramos também a tese de doutorado de Cezar Migliorin, que, entre outras proposições, convoca o leitor a repensar as posições tradicionais de cineastas, personagens e espectadores em filmes nos quais o cineasta está “de saída” (MIGLIORIN, 2008).

174 espectador deve, no mínimo, manter um pé atrás. Acerca desse olhar lançado pelo filme sobre os personagens, afirma Fábio Andrade (2009):

(...) o filme sustenta um olhar pré-definido sobre tudo que olha. O recorte faz, das pessoas, talking heads oficiais de uma condição espacial que, muito provavelmente, interessa mais à verdade do filme do que à das personagens. Os caminhos dessa fala são sempre muito parecidos, passando, principalmente, por alegorias de poder e misticismo. Os desvios do tema – com raras exceções de dignidade – normalmente expõem uma desconexão com o mundo que o filme, antes de problematizar ou se dedicar a compreender, vê apenas como ridícula. (...) o problema maior de Um lugar ao sol é justamente a redução desses discursos a peças de uma tese que não é de suas personagens, mas sim que o filme constrói à revelia delas.

Ora, se o que prevalecia em todos os filmes que analisamos até aqui era um gesto forte do cineasta de abrir-se para o outro filmado, aproximar-se de seu cotidiano, adentrar o espaço de sua casa, evidenciando, nessa entrada, as proximidades e distâncias que se instauram na relação, sempre mediada pela câmera, entre aqueles que filmam e aqueles que são filmados, em Um lugar ao sol o gesto é bem distinto. Aqui, para entrar na casa do outro, cineasta e equipe produzem um ardil e escondem as reais intenções, impedindo os sujeitos filmados de escapar de uma posição que lhes é previamente destinada pelo filme: a de inimigos. Desse modo, se utilizamos Um lugar ao sol para explicitar como, em certos casos, a cena da hospitalidade no documentário pode produzir suas degenerações, convém reforçar que aqui a relação se estabelece em outro registro: o da armadilha, do logro. Retomamos o comentário de Victor Guimarães, em que ele aponta que

o filme escolhe se aproximar de seus personagens sob a forma da armadilha. Subjaz às escolhas de cada depoimento filmado com aqueles personagens a seguinte situação de enunciação: aqueles sujeitos performam um determinado estilo de vida e determinadas opiniões sobre os mais diversos temas, que são organizados segundo uma montagem que os desqualifica reiteradamente. (GUIMARÃES, 2011)

Como em nenhum dos outros filmes que compõem nosso corpus de análise, o cineasta aqui é tão soberano que impõe àqueles que são filmados, através do logro, um lugar que, preferimos acreditar, não desejariam ocupar. Imaginamos que, ao abrir suas casas para aqueles que filmam, os anfitriões de Um lugar ao sol estejam fascinados pela perspectiva de serem mostrados pela câmera em suas belas coberturas. A casa, menos que espaço de hospitalidade, é um espaço de exposição, em que os filmados podem exibir seu estilo de vida (como acontece em revistas e programas televisivos que combinam estilo de vida e decoração). Assim, baixam a guarda para esse visitante que oculta sua face mais hostil e que, na filmagem, evita mostrar-se demais, mantendo-se falsamente complacente no antecampo,

175 arquitetando silenciosamente a cena montada, previamente concebida e orientada a expor aqueles que são filmados em seu egocentrismo, futilidade e alienação.

No percurso da tese até aqui, interessou-nos atentar para o modo como, ao instalar-se provisoriamente – com equipe e câmera – na casa (e em outros espaços cotidianos) dos personagens filmados, o cineasta é acolhido por estes (que, em diferentes inflexões, abrem suas casas e desenvolvem suas auto-mise-en-scènes) e, em uma espécie de contrapartida, também acolhe os personagens filmados (através das escolhas de mise-en-scène e de outros recursos expressivos próprios a cada filme). Em Um lugar ao sol, é patente a assimetria entre a acolhida oferecida pelos personagens àqueles que filmam e a que o filme oferece àqueles que são filmados.

De um lado, estão cineasta e equipe, interessados em mostrar como vivem e o que pensam os que habitam coberturas em edifícios de alto padrão. Parece haver um pressuposto ao filme: esses personagens serão tomados como representantes da parte mais privilegiada de uma sociedade repleta de contradições que o cineasta, com o filme, deseja revelar. O cineasta só pode construir esse espaço/tempo provisório, habitável em comum, através da instauração de uma pequena mentira, que ele precisa esconder daqueles que filma. É um ardil. Mariana Souto explica, a partir de informações extrafílmicas, em que consistia a estratégia de aproximação de Gabriel Mascaro com os personagens filmados em Um lugar ao sol:

Parte da estratégia de aproximação de Mascaro era se apresentar como um diretor famoso internacionalmente, ter assistentes agendando as entrevistas e chegar deliberadamente atrasado, alegando compromissos importantes. Com isso, parecia querer forjar sua participação naquele universo, aproveitando-se da valorização do status, do exibicionismo, da necessidade de autoafirmação dos entrevistados, que pensavam estar conversando com um mesmo de classe, ficando assim mais à vontade para tecer determinados comentários. (SOUTO, 2013, p. 293-4)

Do outro lado estão os sujeitos filmados, que aceitam abrir suas casas àqueles que filmam, seduzidos pela perspectiva de que teriam, no filme, um espaço de exibição, como se pudessem estar inteiramente em casa e mostrar (a um público) o estilo de vida que ostentam e, ainda mais, aquilo que julgam ser. “Eles estão tão orgulhosos de si mesmos que a hipótese de que haja um outro que os desaprove não lhes faz nem cócegas” (COMOLLI, 2013, p. 280). Aqueles que são filmados não enxergam uma potencial ameaça nesse hóspede que chega com o aparato de filmar. Desatentos em sua sede por mostrar suas vidas, tais personagens são convencidos pela palavra ardilosa, que franqueia ao cineasta e equipe a entrada em suas casas. Muitos permitem que ele filme diversos ambientes, sem se dar conta de que tal exposição será

176 alvo de severo escrutínio. Uma oposição sutil é entrevista na última – e já bastante comentada em outras análises – sequência do filme, na qual a personagem pede ao cineasta que desligue a câmera, questiona-o sobre o rumo das filmagens e, como que desconfiada da arapuca criada por aqueles que filmam, abandona a cena.

Fica claro que, nesse espaço/tempo que dividem com os personagens, cineasta e equipe farão o possível para não reagir com hostilidade àqueles que são filmados. Filma-se uma cena aparentemente apaziguada, na qual os personagens expressam o que pensam sobre alguns temas. No filme, há raras interferências verbais daqueles que filmam e, nessas poucas ocasiões, a fala do cineasta (e equipe) serve para estimular os personagens a continuar desenvolvendo o que pensam. É difícil perceber alguma afronta direta oriunda daqueles que estão no antecampo aos sujeitos filmados. Na duração da tomada, cineasta e equipe permanecem ardilosa e falsamente condescendentes com o que dizem os sujeitos filmados e evitam qualquer discordância. Fazem o possível para serem tomados enquanto visitantes cordiais e interessados no que os personagens têm a expressar. Se há condescendência no momento das filmagens, na montagem o cineasta explicitará sua oposição a esses personagens.