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1.6 Os Filmes Que Escolhemos

2.1.2 Abraão domina a cena

Quando passamos para o próximo plano, vemos novamente as fotos da filmagem de 64 circulando pela sala. Os agregados da casa olham as fotografias com interesse e admiração (Figura 2.5). Sobrepõe-se a esse plano a voz incisiva de Abraão, deslocada de sua imagem. Ele orienta a mãe a falar coisas que considera importantes para serem registradas no filme: “Diga, não é lhe orientando politicamente, todos os regimes são iguais...”. Há um corte e só agora vemos a imagem correspondente à fala de Abraão, a câmera mostrando-o em plano médio, os olhos do personagem ainda buscando o chão: “... desde que a pessoa não tenha proteção política”. A câmera movimenta-se para a esquerda, buscando Elizabeth, que permanece com o olhar baixo, concordando com as palavras do filho. Abraão continua a pontificar sobre os regimes políticos: “Todos são rústicos, violentos, arbitrários, independente das camadas, das situações econômicas”. Há um corte e voltamos a observar as imagens circulando pela sala. A continuidade da fala de Abraão é sobreposta a essas imagens. O filho agora está mais incisivo: “Todas as facções políticas esqueceram Elizabeth Teixeira, simplesmente porque não tinha poder”. Esse efeito de sobreposição produzido pela montagem contribui para a sensação de que o personagem está sempre impondo sua fala, seja à mãe, seja diretamente a Coutinho, a quem Abraão parece confrontar a partir de então, exigindo que o cineasta adote o tipo de registro que o personagem deseja oferecer ao filme. Abraão toma a

29 Ao notar que a repetição de certos planos e situações emblemáticos (a tomada do jagunço quebrando um pote

aos pés de um camponês; a frase correspondente ao último plano filmado em 1964, “tem gente lá fora”; a cena em que o filho de José Virgínio procura os livros deixados para trás pela equipe de filmagem do Cabra 64) é um dos procedimentos centrais de Cabra marcado para morrer, Jean-Claude Bernardet desenvolve o seguinte argumento: “a repetição reafirma o caráter fragmentário em detrimento da continuidade. Mas tenho a impressão de que ela possui como função principal marcar a vitória sobre a lata de lixo da história. Isso foi resgatado, isso foi salvo, e então se diz e se rediz que esse fragmento foi desenterrado, foi reconquistado, foi integrado à história, que não se tenha dúvida; e repete-se de novo para agarrar-se a ele, para que não torne a desaparecer, para conjurar uma eventual nova perda” (BERNARDET, 2003, p. 235-6). Como “Vitória sobre a lata de lixo da história” tornou-se o título do célebre artigo de Bernardet sobre Cabra, consideramos que a expressão não se refira apenas ao argumento desenvolvido sobre o uso reiterado das repetições no filme, e possa ser entendida como uma síntese do que o filme conquista ao “lançar uma ponte entre o agora e o antes, para que o antes não fique sem futuro e o agora não fique sem passado” (BERNARDET, 2003, p. 227).

64 cena como um pequeno palanque, para fazer a denúncia e explicitar o ressentimento acerca do abandono ao qual a mãe e a família Teixeira foram relegados.

Há um corte para outro plano das fotos sendo observadas pelas pessoas na casa. A fala de Abraão volta a ser sobreposta às imagens, mas agora há uma oscilação no som que parece revelar que não se trata exatamente da continuidade da fala anterior. Ele desabafa: “Está aqui a revolta do filho mais velho!”. E lança uma ameaça, que apenas ouvimos: “Agora se o filme não registrar esse meu protesto...”. Novo corte, vemos Elizabeth a balançar a cabeça em acordo ao que ouve. A voz de Abraão continua no fora de quadro: “... essa minha veemência...”, e agora os olhos de Elizabeth levantam-se e parecem mirar Coutinho no antecampo (Figura 2.6).

FIGURA 2.5 – Conhecidos e vizinhos observam as fotos que mostram Elizabeth no Cabra 64.

FIGURA 2.6 – Enquanto ouvimos o desabafo de Abraão, Elizabeth mira Coutinho, no antecampo.

FIGURA 2.7 – Abraão toma a cena. FIGURA 2.8 – Abraão encara Coutinho, no

65 No plano seguinte, a cena está bastante tomada por Abraão. A câmera30 apanha o personagem em contra-plongée; ele gesticula bastante com a mão direita na medida em que o tom de sua fala vai aumentando: “... essa verdade que falta à capacidade intelectual expressiva do coração de minha mãe”. Há um corte abrupto no movimento de Abraão com o dedo em riste (Figura 2.7), e a câmera concentra-se agora lateralmente no rosto de Elizabeth, Abraão em segundo plano. Observamos que, nesse momento em que Abraão acentua as exigências de que sua fala seja preservada no filme, a montagem – que até então entrecortara o som da fala do personagem com outras imagens filmadas no interior da casa de Elizabeth – sustenta, na duração do plano, a tensão que se instaura entre Abraão e Elizabeth (visíveis em campo) e Coutinho (invisível no antecampo, mas presente em cena).

Com a mão no rosto, pensativa, Elizabeth mira fixamente o antecampo, de onde surge a voz de Coutinho: “Eu registro tudo o que os membros da família quiserem falar. Estão livres pra falar”. Antes mesmo que a fala de Coutinho seja completada, Abraão levanta o braço, mais uma vez o dedo em riste, e volta a esbravejar: “Mas eu quero que o filme registre esse nosso repúdio a quaisquer sistemas de governo”. A câmera mantém Elizabeth e Abraão no quadro. Elizabeth continua a balançar a cabeça, aderindo à fala quase agressiva do filho, que mira Coutinho no antecampo, como se exigisse a adesão do cineasta. Aqui o jogo entre o que vemos e ouvimos em campo e a evocação e presença do cineasta no antecampo adquire seu momento mais tenso. Do antecampo, sem alterar a voz, vem a confirmação de Coutinho: “Estará registrado, te garanto”. Com os olhos fixos em Coutinho, a face de Abraão é soberana, cheia de convicção, quase desafiadora. Ao lado do filho, Elizabeth também dirige o olhar para Coutinho no antecampo (Figura 2.8). Abraão não se dá por satisfeito e continua a esbravejar contra os regimes políticos: “Nenhum presta para o pobre”. Elizabeth, a mão na cabeça, consente: “Nenhum”. A câmera treme, desenquadra Elizabeth e há um corte abrupto para a cena seguinte, já à noite e fora da sala, na qual o filme de 1964 é projetado para Elizabeth, família e conhecidos assistirem.

Em seu esforço excessivo para afirmar seu discurso, Abraão parece não ter a dimensão de que o filme a se constituir não apenas retirará Elizabeth Teixeira da clandestinidade, mas se esforçará para dar conta de uma complexidade de questões que atravessam uma experiência histórica marcada por uma interrupção violenta (pessoas separadas pela história política do

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Nessa passagem, fica claro o jogo, na montagem, entre as imagens das duas câmeras que filmam o encontro na casa de Elizabeth, ambas concentradas, nesse ponto, na cena tomada por Abraão.

66 país, pela repressão, pela violência de um governo que constrange, prende, esconde, tortura, conduz as pessoas ao exílio). Justamente por ser gerida pelas pessoas que fazem parte dela (os personagens e aqueles que os filmam), a cena da hospitalidade está constantemente variando. Como Abraão exerce uma força excessiva ao impor-se em cena, Coutinho e o filme precisam, a seu modo, enfrentá-lo, mesmo que seja necessário romper a cena. É o que efetivamente acontece, já na montagem, quando há o corte ao final da fala de Abraão. Respeitada a reivindicação feita pelo personagem (de que sua fala seja registrada), o filme pode agora voltar ao tipo de registro que interessa mais a Coutinho, baseado no diálogo, na conversação.