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5.2 Um Hóspede Invisível

5.2.4 A casa aberta, a cena fechada

Para que Morro do Céu possa se construir como uma ficção, os moradores da casa devem, deliberadamente, ignorar a presença do cineasta. Não há olhares direcionados à câmera, bem como inexiste qualquer marca de incidência do antecampo no que vemos em campo. Os anfitriões concedem ao cineasta a entrada no espaço da casa, quase como se ele fosse da família, mas, ao mesmo tempo, não vemos trocas entre aqueles que partilham a cena. Os procedimentos formais adotados por Spolidoro na disposição da mise-en-scène e na organização da montagem impedem que haja qualquer permeabilidade entre campo e antecampo. Constrói-se uma cena fechada, demasiadamente estável, sem espaço para que haja reversibilidade entre os lugares ocupados por cineasta e personagens filmados. Ainda que o espaço da casa e seus habitantes aceitem o hóspede, trata-se de um hóspede mudo, que não pode efetivamente (em cena) trocar coisas com eles, a não ser dessa maneira como, junto à câmera, ele se põe a esperar. A cena não é lugar de tensão, nem de troca.

Ainda assim, nem tudo adquire essa transparência na dramaturgia que Spolidoro organiza a partir do material captado de forma documental (Andrade, 2009). Se em boa parte do filme este visitante invisível parece acessar com familiaridade os espaços da casa e as ações cotidianas da família Storti, produz-se também uma zona de sombra, que recai sobre o protagonista, Bruno. Ao longo do filme, o personagem é mostrado com alguma proximidade, seja nas perambulações com os amigos pelos arredores da colônia, na lida com a colheita da uva, no trabalho na oficina para posterior diversão com o carrinho de rally. Se podemos entrever algo de seus anseios e dúvidas nas conversas entre Bruno e os pais, nem tudo é dado a ver no que tange ao universo subjetivo do adolescente. A esse respeito, o filme mantém-se à distância, preservando a alteridade do personagem e fugindo de qualquer pretensão de enquadrá-lo ou apreendê-lo em demasia. Neste sentido, a pequena história de amor que se insinua entre Bruno e a “borboletinha de Cotiporã” (ainda que faça parte da intriga que sustenta a ficção) permanece como um lugar que o filme não adentra e que, como lembra Fábio Andrade (2009), é “muito sabidamente deixada sempre no extracampo”.

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CAPÍTULO VI

A ARMADILHA

FIGURA 6.1 – Fala de primeiro personagem surge despersonalizada ao final de plano vertiginoso com

comentário musical sombrio.

FIGURA 6.2 – “Luxo mesmo seria uma série de casas aqui nessa avenida”, diz D.

FIGURA 6.3 – Filmados com alguma distância, personagens E e D ora reagem

à fala um do outro...

FIGURA 6.4 – ... ora dirigem fala, gestos e olhares àqueles que filmam.

171 6.1 Abrir (sem Saber) a Casa ao Inimigo

“Área, espaço, é que é, nos dias de hoje, é que é o grande luxo!”. Ouvimos essa fala nos segundos finais de um longo plano em que a câmera, provavelmente presa a um guindaste, mostra uma estrutura entrelaçada de ferro sendo içada do solo e levantada até o topo de um edifício em construção (Figura 6.1). Inicialmente dissociada daquilo que vemos (comentaremos essa dissociação mais à frente), não demorará a surgir o corte para a imagem que ligará a voz ao corpo do primeiro personagem a aparecer no filme. Chamaremos esse personagem de D (por estar posicionado à direita, nesse enquadramento inicial). D é mostrado em plano aberto e de conjunto (Figura 6.2), ao lado de outro personagem, a quem chamaremos de E (por estar à esquerda do mesmo enquadramento). Ambos falam no decorrer desse plano, ora conversando entre si ou reagindo à fala um do outro (Figura 6.3), ora lançando fala e olhares para o espaço onde estão cineasta e equipe (Figura 6.4). Enquanto o vento balança os cabelos de E, D fala amistosamente e com desenvoltura para aqueles que filmam sobre o privilégio de residir em uma cobertura situada de frente para o mar, em Recife70. Para o personagem, o verdadeiro luxo, em se tratando do estilo ideal de moradias na região que habita, seria uma “série de casas aqui nessa avenida, seriam casas, todo mundo morando na sua própria casa, com seu próprio quintal de frente pro mar”. Para além do teor criticável da fala dos personagens em quadro – que ficaria por conta do julgamento de cada espectador –, já nessa primeira sequência com personagens de Um lugar ao sol (Gabriel Mascaro, 2009, 75‟) se estabelecem algumas escolhas de mise-en-scène que conformarão a relação entre cineasta (e equipe), personagens filmados e, sem dúvida, o espectador do filme. A câmera será instalada, fixa, a uma distância suficiente para mostrar os personagens ora em enquadramentos mais abertos, ora em enquadramentos que os mostrem mais de perto; os personagens serão filmados e entrevistados nas salas de seus apartamentos, sentados de frente (ou diagonalmente) para a câmera. Essa disposição da câmera em relação aos personagens valerá para todas as entrevistas realizadas no filme. Há raros momentos em que a câmera abandona essa posição fixa e distante, como quando, por exemplo, acompanha a imigrante francesa a percorrer espaços da casa e a mostrar objetos de artesanato trazidos de diferentes lugares do Brasil (para revendê-los – a preços que garantam a manutenção de seu estilo de

172 vida, é inevitável pensar – no Rio de Janeiro), ou quando segue um ocupado empresário do ramo do entretenimento de São Paulo no interior de seu apartamento.

Essa distância71 na qual a câmera é posicionada – e também assumida por cineasta e equipe – para filmar seus personagens parece essencial para produzir, no espectador, certo distanciamento em relação a essas pessoas que, em cena, expressam com “naturalidade” alguns preconceitos e pré-julgamentos, oriundos da sua condição social.

Mas também há passagens em que o rosto dos personagens é mostrado mais de perto. Para fazê-lo, na distância em que está posicionada, a câmera precisa manejar o recurso do

zoom óptico (pois é rara a aproximação espacial efetiva entre cineasta/câmera/equipe e

filmados). Há passagens nas quais esse movimento de zoom é mostrado na duração do plano, criando uma impressão de “disparo” em direção aos rostos dos personagens, como se a câmera fosse uma arma que atira contra aqueles que são filmados. Esses “disparos” não são perceptíveis, no momento da filmagem, pelos que são filmados, mas apenas pelo espectador, capaz de apreendê-los na forma final do filme.

Não poderia ser diferente nesse filme que não busca uma conversação efetiva com os sujeitos filmados, a ponto de sequer nomeá-los. Se sabemos os nomes de alguns personagens, é porque são eles mesmos que, presentes no quadro, referem-se a si próprios ou àqueles com quem dividem a cena (como é o caso do adolescente Felipão, cujo nome conhecemos no momento em que a mãe o apresenta); nem mesmo na sequência de créditos finais – onde normalmente são dispostos os nomes completos dos personagens filmados em um documentário – temos acesso a seus nomes. Seria pouco provável, entretanto, que aqueles que são filmados concordassem em ter seus nomes revelados, depois de assistirem ao filme finalizado. Mas esse não será o maior mal-estar produzido pelo documentário. O que nos parece mais estranho e que nos faz inclusive questionar a pertinência da utilização da noção de cena da hospitalidade para investigar as relações colocadas em cena no filme de Gabriel

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A distância a ser instaurada entre aqueles que filmam e aqueles que são filmados em uma cena combativa (que objetiva filmar o inimigo) é tematizada de diferentes modos no texto de Comolli, Como filmar o inimigo. Entendemos que o autor propõe que a relação de proximidade entre os corpos de cineasta e personagens (perto demais/longe demais), mediada pela câmera, deve ser sempre problematizada quando se trata de filmar o inimigo. É importante ressaltar que, no texto de Comolli, a figura do inimigo está mais associada às disputas políticas, envolvendo o campo das instituições/partidos, representantes e militantes políticos. Seria oportuno investigar, com mais cuidado, se os pressupostos trabalhados no texto de Comolli são pertinentes às aproximações que fizemos (e que outras leituras já fizeram) ao analisar o filme de Gabriel Mascaro, cujo “inimigo” é particularizado (ainda que o filme tenha a pretensão de, através de seus personagens, oferecer um mosaico que retrate como pensa certa elite brasileira).

173 Mascaro é o fato de que, nele, fica claro para o espectador que o cineasta não está na casa do outro para fazer um filme com ele, mas sim contra ele.