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A atuação normativa: a medicina social e intervencionista

2 DA REGRA À EMOÇÃO: O SABER MÉDICO E PSIQUIÁTRICO FALA

2.2 O BRASIL E A CONSOLIDAÇÃO DA PSIQUIATRIA MODERNA

2.2.2 A atuação normativa: a medicina social e intervencionista

As primeiras décadas do século XX marcaram, então, a consolidação do saber/poder psiquiátrico no Brasil através da construção dos asilos, do tratamento moral e da atuação na esfera legislativa, com ênfase nos procedimentos disciplinares. O espaço de intervenção estava criado e legitimado e, a partir de então, se estenderia para além da esfera da doença mental. Segundo Roberto Machado, o decreto 1.132/1903 faz do psiquiatra a maior autoridade sobre a loucura, nacional e publicamente reconhecida. (MACHADO, 1978, p. 484). A medicina é chamada a legislar e regulamentar os comportamentos sociais. Ela serviria de base para o regramento da sociedade por, supostamente, estar mais próxima da verdade sobre a vida humana. Podemos ver claramente essa concepção a partir da fala do médico e deputado José Martins da Cruz Jobim – um dos fundadores da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro e membro da Mesa Administrativa do Hospital D. Pedro II:

É da medicina e das ideias que ela fornece que os legisladores de todos os países têm procurado tirar os fundamentos de grande número das leis, tanto mais sólidos e estáveis quanto elas têm por base o conhecimento da natureza

humana e das mais verdadeiras necessidades (...). (JOBIM apud MACHADO, 1978, p. 186)

A associação entre o saber/poder médico e a atividade legislativa não seria possível sem a consolidação do campo da medicina social. Para esse campo, estaria designado uma atuação política no âmbito de medicalizar a sociedade e os comportamentos, saindo de uma perspectiva individual da doença e atuando no coletivo de forma preventiva. A aliança com o Estado e a atuação normativa garantiu aos médicos o poder e prestígio que vemos na declaração acima e uma quase irrestrita atuação no sentido de regular e definir o que era saudável e o que era patológico nos comportamentos, inclusive no campo das artes. Com um pretenso saber total, a medicina era autorizada a legislar sobre quase todos os assuntos que diziam respeito à vida em sociedade. Segundo Machado, a medicina social está ligada a uma ação permanente de controle, visto que “o médico não é apenas alguém que possui uma técnica, conhece os grandes tratados teóricos, observa e, portanto, detém um saber. É também uma autoridade, alguém que intervém: decide, executa, fiscaliza e pune.” (MACHADO, 1978, p. 258)

Nesse sentido, é que Eleonora Antunes vai apontar esse período como de uma conformação normativa da psiquiatria. Os campos de atuação da chamada medicina social ou das Ligas de Higiene Mental se expandem a tal ponto de a autoridade do médico versar sobre assuntos os mais diversos, incluindo os artísticos, identificando nas produções do período, especialmente na arte surrealista, os focos possíveis de doenças mentais ou desenvolvimentos anormais da personalidade e do intelecto. A prática intervencionista da medicina lhe autoriza a legislar sobre a arte e a subjetividade, o que se torna um tanto perigoso, pois não se coloca limites para a ação normativa da psiquiatria e demonstra quanto poder foi conquistado pelo saber médico numa atitude corporativa e reguladora. Sobre o aspecto cultural da loucura e sua construção conceitual, Elizabeth Roudinesco diz:

Em lugar de afirmar (...) que o surgimento de uma parafernália conceitual, a da psicopatologia, permite explicar a presença da loucura na natureza humana, mais vale mostrar que essa parafernália se construiu sobre a ilusão retroativa de uma loucura previamente existente na natureza. Consequentemente, a loucura não é um fato de natureza, mas de cultura, e sua história é a das culturas que a dizem loucura e a perseguem. Da mesma forma, a ciência médica só intervém como uma das formas históricas da relação da loucura com a razão. (ROUDINESCO, 1994, p. 15)

Seguindo as reflexões de Foucault sobre a loucura e sua construção social e histórica, Roudinesco chama a atenção para as delimitações culturais dos comportamentos desviantes ou considerados loucos. Dessa forma, traz para a análise argumentos para desmistificar o tratamento moral ou biológico da loucura e nos faz atentar para as regras que, em determinados

momentos históricos, são hegemônicas na construção desse fenômeno social. Passa-se a considerar quem estabelece as regras, de que forma veicula seus discursos e como se consolida institucionalmente, fortalecendo espaços de poder político, econômico e cultural. Apesar de considerarmos que a autora supervaloriza o aspecto cultural da loucura, em detrimento de suas bases orgânicas – que existem – achamos de extrema importância ressaltar sua análise neste trabalho, uma vez que desnaturaliza o conceito de loucura, nos ajuda a compreender suas dimensões culturais e as bases para a intervenção social da medicina.

O ato de versar sobre assuntos estéticos demonstra essa normatização da criatividade e expansão do poder médico para assuntos além dos seus domínios específicos e para a construção social do fenômeno da loucura. O poder de dizer o que é arte e o que não é, não cabe mais ao crítico ou ao próprio artista, mas ao médico, que advoga o direito de definir o que é ação criadora normal e o que é doença, e pode usar a expressão artística como instrumento de classificação de patologias e exemplificação. É a arte ao serviço da medicina, da patologização dos comportamentos, da medicalização da sociedade, segundo a visão de alguns profissionais da área. O debate que se forma em torno, especialmente do surrealismo e da arte moderna, vai fortalecer a ação profilática das Ligas de Higiene Mental, trazendo para o primeiro plano da discussão sobre saúde mental, a expressão da criatividade saudável e normal e de seu oposto, uma estética claramente “deformada” e “degenerada”, entendida como um claro indício de perturbação psíquica e, consequente, perigo à ordem social.

É importante salientar que quando falamos aqui da relação entre a arte e a psiquiatria, não estamos nos referindo, nesse momento, à expressão artística como promotora de saúde mental, como instrumento na análise e melhora da qualidade de vida do paciente. Essa perspectiva vem a se fortalecer anos depois, por volta da década de 1940 com a criação do setor de terapêutica ocupacional do hospital D.Pedro II pela psiquiatra Nise da Silveira e tem outro enfoque. Até então, nos referimos ao uso da arte por um saber/poder instituído e crescente da medicina social e da psiquiatria como instrumento de classificação, segregação e avaliação de processos considerados patológicos no campo da saúde mental. Além disso, abordaremos a forma como a arte moderna, em especial o Surrealismo, construiu seu diálogo com a loucura e se apropriou, também, das discussões da Psicanálise no início do século XX, constituindo outro viés dessa relação arte/loucura.

Segundo Eleonora Antunes, a relação entre arte e loucura vai se construindo ao longo do tempo a partir de diferentes eixos: quando a arte é tida como louca pelo poder autoritário;

quando a loucura tem voz na criação artística – momento de experimentação na arte do século XX; quando as artes são apropriadas pelas terapias – formação das terapias criativas, Arteterapia; quando a psicanálise é apropriada pelas artes – inserção dos debates e conceitos da psicanálise no ambiente artístico. Desses momentos, os dois primeiros e o último são abordados nesse trabalho como fundamentais na relação entre arte e loucura. O terceiro diz respeito às terapêuticas desenvolvidas com base na expressão artística e tem espaço no Brasil a partir da psiquiatra Nise da Silveira, como mencionamos anteriormente. Esse aspecto da relação não nos interessa aqui, pois o entendemos como específico da discussão dobre desenvolvimento das psicoterapias no Brasil. (ANTUNES, 2002, p. 23)