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2 DA REGRA À EMOÇÃO: O SABER MÉDICO E PSIQUIÁTRICO FALA

2.4 O INCONSCIENTE, CONCEITO REVOLUCIONÁRIO

2.4.2 Hasard Objectif e Sincronicidade

Um conceito que se torna central nessa reflexão de Breton sobre uma sabedoria mística e misteriosa de eventos ocultos, ligados a uma lógica inconsciente e relacionados à realidade física do indivíduo é o de hasard objectif – algo como “acaso objetivo”. Esse conceito é pensado para se referir a fenômenos de natureza fantástica, maravilhosa, coincidências no mundo “real” que mantém íntima correspondência com as dinâmicas do inconsciente e a realidade psíquica de alguém. Eventos que prescindem de uma ordenação causal, mencionados por Paul Eluard como uma “verdadeira precipitação do desejo”, uma “física da poesia”. Seria algo como a concretização dos acasos, seguindo lógicas misteriosas do inconsciente.

A dimensão do hasard objectif pressupõe, também, um reconhecimento da unidade sensível do universo. A conexão do artista ou do poeta com essa sorte de eventos, com essa misteriosa unidade sensível, poderia se manifestar e ser fortalecida a partir da criação de uma série de obras chamadas de poemas-objetos, objetos fantasmas, objetos de função simbólica, ou os próprios objetos surrealistas (LEAL, 2007). O próprio André Breton produziu uma obra a qual nomeou de le hasard objectif em 1959 – uma placa de cortiça onde há a inscrição de um vulto sinuoso junto a uma fita circular preta e uma espécie de amêndoa de vidro. Para Brigitte Leal, essa obra e sua apresentação na exposição Éros, de 1959 na Galeria Cordier “parece responder plenamente às proposições mais secretas do desejo”, concluindo que “o diálogo do inconsciente e da natureza é, para o surrealista, como aquele de um contato vital.” (LEAL, 2007). A imagem de Breton sugere a ideia de um vulto feminino, de um ser envolto em brumas, uma espécie de sombra, algo que mostra força na sua delicadeza. Como o mistério de um registro mnemônico, evoca as regiões ocultas da psique, ancorada no aparente paradoxo do efêmero e do permanente. A imagem de le hasard objectif, nos lembra mais uma marca, um vestígio deixado pela impressão de algo na cortiça, uma marca perene e sutil, e que parece sobreviver ao tempo.

FIGURA 3 - LE HASARD OBJECTIF. ANDRE BRETON, 1959 FONTE: Centre Pompidou. Disponível em http://www.centrepompidou.fr

A ideia de hasard objectif busca, assim, dar conta de uma dimensão espiritual da vida psíquica e criativa; um momento crucial em que o inconsciente individual alcança algo do coletivo, maior do que ele mesmo e, desse encontro, algo significativo se produz. Ela fala, portanto, de uma conexão profunda e do pertencimento a uma ordem de coisas para além da consciência individual, algo que fala da própria natureza das coisas e fenômenos reais e oníricos. A relação com o hasard objectif é, assim, essencialmente involuntária, não provocada intencionalmente e apenas deixa entrever a existência de séries de fenômenos completamente alheios às ordens da causalidade. Essas séries misteriosas de fenômenos compartilham de uma atmosfera onírica onde o exterior (objetivo) parece estranhamente unir-se a interioridade (subjetivo) do indivíduo (ABOLGASSEMI, 2009). Dialoga também com as memórias involuntárias de Marcel Proust, a sensação fugitiva de um passado perdido e a redescoberta de

sensações profundas e singulares, em um momento de rememoração e recuperação do sentido profundo da própria existência. 24

Essa noção de hasard objectif é, a partir de nossas observações, um ponto importante de contato do Surrealismo com a Psicanálise, mais especificamente com a Psicologia Analítica de Jung. Ao afastar-se da psicanálise freudiana, Jung buscava transcender o inconsciente individual e alcançar suas esferas coletivas e suas manifestações a partir de arquétipos – padrões coletivos de comportamento inconsciente. As manifestações do inconsciente, para Jung, iam além da dimensão pessoal que se relacionava exclusivamente à história de vida do indivíduo, seus traumas, repressões, sua infância. Ultrapassando essa dimensão, o inconsciente seria, também, coletivo e estaria intimamente ligado a questões de uma época, de uma cultura. As manifestações do inconsciente coletivo deixavam-se perceber, por exemplo, nas produções culturais de um dado momento histórico, que poderiam seguir padrões expressivos e externar conteúdos afetivos de grupos. As mitologias também seriam fonte de acesso a essa dimensão, bem como os contos, as histórias infantis, a tradição oral e toda uma série de manifestações que buscam não só transmitir e manter tradições e experiências herdadas, quanto comunicar pontos obscuros, difíceis ou traumáticos de uma geração, um grupo étnico, uma sociedade. Na definição de Jung:

Podemos distinguir um inconsciente pessoal, que abrange todas as aquisições da existência pessoal, isto é, tudo o que é esquecido, reprimido, percebido, pensado e sentido para além do limiar da consciência. Além desses conteúdos pessoais inconscientes, existem outros que não provém de aquisições pessoais, mas da possibilidade herdada do funcionamento psíquico, quer dizer, da estrutura cerebral herdada. São as conexões míticas, os motivos e imagens que, a todo momento, podem reaparecer sem tradição histórica nem prévia migração. A esses conteúdos chamo o inconsciente coletivo. (JUNG, 1976, p. 524).

Avançando no entendimento das manifestações do inconsciente, até o nível coletivo, Jung vai também propor o conceito de sincronicidade. Dessa forma, trabalhando com séries de eventos não causais, ele vai buscar demonstrar a existência de uma conexão profunda entre a psique individual, o inconsciente coletivo e os fenômenos físicos; entre a realidade subjetiva, interior e a realidade objetiva, exterior. Como cientista, Jung vai buscar o princípio que rege esses fenômenos, que ele identifica como coincidências significativas, tentando construir uma teoria sobre o que ele chama de conexões acausais. Em algumas definições que Jung construiu para esse princípio ao longo de seu trabalho, podemos perceber a proximidade com a hasard

objectif dos surrealistas. Assim, ele define a sincronicidade, basicamente como: “(...) coincidência, no tempo, de dois ou vários eventos, sem relação causal mas com o mesmo conteúdo significativo. ”; ou como, por exemplo, “(...) a simultaneidade de um estado psíquico com um ou vários acontecimentos que aparecem como paralelos significativos de um estado subjetivo momentâneo e, em certas circunstâncias, também vice-versa.” (JUNG, 2011, p. 35). Ao conceituar o termo sincronicidade, Jung considera fundamental a existência de uma dimensão da realidade para além da consciência individual:

Minha preocupação com relação à psicologia dos processos inconscientes, obrigou-me, há muito tempo, a procurar – além da causalidade – outro princípio de explicação (...). Encontrei, assim, fenômenos psicológicos paralelos, que não podiam ser ligados entre si casualmente; deviam ser ligados de outra forma, por outro desenrolar de acontecimentos (...). Escolhi o termo “sincronicidade” porque a aparição simultânea dos dois acontecimentos, ligados pela significação, mas sem relação causal, me pareceu um critério decisivo (...). Sua “inexplicabilidade” não é devida à ignorância de sua causa, mas ao fato de que nosso intelecto é incapaz de pensá-la. (JUNG, 2006, p. 494-495)

Tanto a teoria de Freud sobre o inconsciente, as explorações de Jung sobre a dimensão coletiva da Psique e os conceitos de hasard objectif e de sincronicidade buscam dar conta do componente de mistério da vida humana. Deslocando a razão de seu lugar de hegemonia, essas experiências irão colocar a subjetividade como dimensão primordial da experiência. Os fluxos da memória, os acasos e suas correspondências com estados psíquicos, os sonhos em geral e sonhos premonitórios, e toda uma série de estados alterados de consciência passam ao primeiro plano de investigações científicas e das experiências artísticas. O início do século XX traz para o pensamento ocidental uma profunda certeza de que a razão instrumental não dava conta da profundidade e multiplicidade das experiências humanas. Era necessário deslocar os sentidos aparentes das coisas, mergulhar profundamente nas impressões e memórias pessoais, tocar o coletivo. Na arte, essa experiência muito próxima de um caminho místico, irá abrir as portas do inconsciente para uma criação mais espontânea e relacionada aos fluxos do acaso e da memória. Não há a necessidade de correspondência com algo externo, objetivo e reconhecível. A fidelidade do artista seria com seu mundo interno, o que não tardaria a ser compreendido como alienação, psicose, esquizofrenia ou outras patologias.

Nesse sentido é que, tanto a Psicanálise quanto o Surrealismo encontrarão fortes reações e tentativas de encapsular seu potencial revolucionário. No caso deste trabalho, temos a experiência de Cícero Dias como exemplo dessa interpretação. Suas manifestações artísticas aparentemente não compreensíveis, sua carga de fantasia, cultura popular e erotismo, revelando

um processo artístico mais espontâneo e ligado aos fluxos do inconsciente foi ameaçador. E no seu caso, a própria Psicanálise, já tendo vencido muitas de suas barreiras no campo científico, se tornou parte importante no processo do “diagnóstico” e da própria atuação psiquiátrica, no sentido de alertar, prevenir e, se possível, erradicar os desajustes e focos da desintegração e da doença mental. No próximo capítulo, falaremos sobre essa relação entre a arte e a loucura, agora a partir da perspectiva dos movimentos artísticos: como eles percebiam o universo inconsciente e as dimensões além da razão; como foram interpretados e controlados; como encontraram maneiras na arte dos ditos loucos a inspiração para uma busca interior. Enfim, como puderam transgredir e resignificar padrões, buscando motivação muito além dos limites culturais estabelecidos.

3 DA EMOÇÃO À REGRA: O OLHAR DA ARTE SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DA