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3 AS DIVERSAS INTERPRETAÇÕES DO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO

3.3 O debate sobre o Orçamento Participativo

3.3.2 A autonomia dos participantes versus os limites do desenho institucional

3.3.2.1 A autonomia dos participantes e o papel do Poder Executivo

A compreensão do êxito do OP em termos de inversão de prioridades políticas, de participação popular e de geração de accountability deve ser relacionada com as condições institucionais necessárias para a sua implementação. Essa questão diz respeito ao papel do poder Executivo na implementação e condução do OP. Mais do que convidar os cidadãos a participarem, o Executivo teria a tarefa de criar condições institucionais para a deliberação e de negociar com o Legislativo para assegurar a aprovação e a implementação das decisões tomadas nas assembleias e/ou conselhos do OP. Essa atuação tem sido destacada em diversos trabalhos que afirmam que a vontade política seria um elemento essencial para o sucesso das experiências que envolvem a ampliação da participação política (AVRITZER, 2003, 2008; AVRITZER; PEREIRA, 2005; VITALE, 2004; FARIA, 2005, 2006; NASSUNO, 2006, entre outros).

Em uma análise aprofundada do OP de Porto Alegre, Boaventura de Sousa Santos (2002) afirma que no “processo do orçamento participativo, o Executivo desempenha um papel decisivo, e isto é particularmente evidente nas reuniões do COP” (Conselho do Orçamento Participativo). Ressalta ainda que os “representantes do governo têm um papel mais ativo na coordenação, porque, além do mais, têm acesso privilegiado às informações relevantes.” (SANTOS, 2002, p. 486).

Celina Souza (2001), em uma revisão da literatura que tem por objeto as experiências de Porto Alegre e de Belo Horizonte, mencionou três variáveis que têm sido relacionadas aos antecedentes do orçamento participativo: a) a existência de experiências participativas antes do processo de redemocratização; b) o aumento dos recursos municipais após a redemocratização e o ajuste fiscal pelos governos locais; c) a presença de um número maior de partidos de esquerda nos governos municipais (Souza, 2001, p. 87). Souza destaca, ainda, que haveria um consenso na literatura analisada de que “a experiência tem-se constituído em forma de acesso do cidadão ao processo decisório local” e que este acesso é “induzido e coordenado pelos governos” (SOUZA, 2001, p. 88).

Com base na literatura pode-se afirmar que o Poder Executivo Municipal tem um papel fundamental em três ações essenciais para implementação do OP: a) na divisão territorial que serve de base para apresentação das demandas; b) na adaptação da estrutura da prefeitura, inclusive com a criação de novos órgãos e cargos para superar os limites impostos por uma estrutura administrativa acostumada à decisão centralizada; c) na definição das regras e dos critérios técnicos a serem observados ao longo do processo decisório. A partir dessas iniciativas, o Executivo pode incentivar a participação dos cidadãos no processo de discussão orçamentária e/ou de priorização de obras e respeitar as decisões tomadas por meio do OP.

Se o OP é uma experiência induzida e coordenada pelo poder Executivo, a questão da autonomia dos participantes deve ser ponderada. Além disso, as análises não podem desconsiderar a necessidade de regras para organizar qualquer tipo de processo decisório. Não obstante, a autonomia dos participantes e a amplitude da ação do poder Executivo no OP tem sido objeto de divergência.

O pano de fundo dessa divergência, que envolve, também, a questão do “compartilhamento de regras” e a “auto-regulação” que foram mencionados na seção anterior, diz respeito ao papel dos poderes Executivo e Legislativo na priorização e aprovação dos empreendimentos definido por meio do OP. Por conseqüência, essa questão tem repercussão no debate da relação de complementaridade entre democracia representativa e democracia participativa.

Conforme mencionado na seção anterior, Avritzer (2003, 2008, 2009) destaca a articulação existente entre a democracia representativa e a democracia participativa através do conceito de “instituições híbridas”. Segundo Avritzer e Pereira (2005), tais instituições teriam como características, entre outros aspectos, o princípio da auto-regulação e a cessão de soberania. No caso específico do OP, o hibridismo envolveria um compartilhamento de poder em processos deliberativos constituídos por atores estatais e atores sociais ou associações da sociedade civil. O detalhamento dessas relações pode ser vislumbrado na seguinte passagem:

O orçamento participativo é uma forma de rebalancear a articulação entre a democracia representativa e a democracia participativa baseada em três elementos de hibridismo: a primeira característica do OP é a cessão de soberania por aqueles que a detém enquanto resultado de um processo representativo a nível local. A soberania é partilhada com um conjunto de assembleias regionais e temáticas que operam a partir de critérios de universalidade participativa. Todos os cidadãos são tornados, automaticamente, membros das assembleias regionais e temáticas com igual poder de deliberação. Temos, nesse caso, o hibridismo entre um conjunto de

assembleias públicas de participação aberta e o fato de suas deliberações se tornarem políticas estatais. Em segundo lugar, o OP implica na re-introdução de elementos de participação a nível local, tais como as assembleias regionais e de elementos de delegação, tais como os conselhos, a nível municipal. Mais uma vez, temos aqui elemento de hibridismo representado pelo fato de conselhos formados pela população se constituírem em uma instância de tomada de decisão sobre políticas públicas. Em terceiro lugar, o OP baseia-se no princípio da auto-regulação soberana, isto é, a participação envolve um conjunto de regras que são definidas pelos próprios participantes... (AVRITZER; PEREIRA, 2005, p. 21).

No entanto, a noção de auto-regulação não é aceita por todos os analistas do OP. Segundo Fedozzi (2000b), que discorda do caráter auto-regulado do Conselho do Orçamento Participativo, seria evidente a influência do poder Executivo em todo o processo e o fato de as regras serem construídas de forma compartilhada entre a Prefeitura e as lideranças das diversas associações de bairro. Essa posição pode ser ilustrada pela seguinte análise:

Esse processo, entretanto, tem um regramento compartilhado, isto é, a política deliberativa tem caráter negocial. Nesse sentido, não se sustentam as

interpretações que entendem o OP como uma ‘estrutura autônoma do

Estado e ‘auto-regulada’, advinda de normas de funcionamento definidas pela própria comunidade, com independência seja do Executivo seja do Legislativo (...) Essa abordagem é ideológica e potencialmente mitificadora da experiência real do OP-POA, uma vez que ela supõe uma ausência (irreal) da participação do Executivo na operacionalização dessa esfera pública e superestima os componentes autônomos da ação individual e coletiva dos atores populares em relação ao Estado ( (FEDOZZI, 2000b, p.72 Destaques e parênteses do autor.).

Segundo Fedozzi, a saída encontrada por aqueles que são contrários à transformação do OP em lei foi o argumento de que as suas instâncias decisórias são auto- reguladas e os representantes do Executivo não têm direito a voto em tais processos. Dessa forma, a noção de auto-regulação acomodaria o respeito à autonomia dos movimentos populares e/ou da sociedade civil. Mas, em seu ponto de vista a ausência de garantias legais no sistema político do Município envolve o risco de tornar o OP dependente do partido político que o implantou ou dos “governantes de ocasião.” (FEDOZZI, p. 178, 2001).

Essas afirmações de Fedozzi estão relacionadas com sua opinião favorável à institucionalização do OP por meio de lei. Portanto, ao mesmo tempo em que ele ressalta a possível mitificação da experiência, destaca, também, uma possibilidade de autonomia em relação aos poderes políticos constituídos por meio da referida institucionalização. É

importante esclarecer que essa questão envolve uma polêmica que nasceu com o OP de Porto Alegre e que estabelece a seguinte confrontação: de um lado, ficam aqueles que defendem a institucionalização do OP, por meio de lei municipal, para tornar todas as decisões tomadas obrigatórias tanto para o poder Executivo como para o Legislativo. De outro lado, estão aqueles que defendem a divisão constitucional dos poderes e a importância da responsabilidade do Executivo Municipal para com o conjunto da cidade e que, por isso, não concordam com a criação de uma lei para institucionalizar o OP.