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1 OS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

1.3 As peculiaridade da democracia contemporânea

1.3.2 Elementos constitutivos da democracia

1.3.2.4 A representação política

A discussão da representação política atravessa todo este capítulo, mas nessa seção é importante realçar o seu significado enquanto método democrático e sua relação com os elementos descritos nas três subseções anteriores. Trata-se da lógica da representação para a democracia caracterizada como um conjunto de regras que define tanto quem está autorizado a tomar decisões de caráter coletivo, como quais os procedimentos que devem ser seguidos em tal processo.

Nesse contexto, Bobbio (2009 {1984}) considera a mistura dos conceitos de democracia representativa e Estado parlamentar como um dos principais equívocos a serem desfeitos para se chegar ao sentido principal da ideia de representação em uma democracia. Constatou que essa distinção é importante porque em vários debates percebeu que os seus interlocutores ao pretenderem fazer críticas à democracia representativa na verdade criticavam o Estado parlamentar. A partir disso se empenhou em esclarecer o que parecia

obvio: a expressão democracia representativa, em termos genéricos, significa que as deliberações que dizem respeito à coletividade inteira – deliberações coletivas – são tomadas por pessoas eleitas para essa finalidade por aqueles que fazem parte de tal coletividade. Quanto ao Estado parlamentar, seria apenas um modo particular de aplicação do princípio da representação. Nesse tipo de Estado a representação diz respeito ao parlamento enquanto órgão central que recebe as reivindicações e toma decisões coletivas. Bobbio ressalta ainda que um Estado parlamentar pode não ser uma democracia representativa e que historicamente os parlamentos são anteriores ao sufrágio universal, por isso, existiram Estados parlamentares que, mesmo sendo representativos, não eram democráticos. O equívoco, portanto, residiria na tradução da democracia representativa pelo Estado parlamentar, no qual, o princípio da representação se concentra no parlamento. Dessa forma, exemplifica Bobbio, os Estados Unidos são um Estado representativo, mas não um Estado parlamentar. A importância dessa questão pode ser percebida pela constatação de que, na atualidade, nos Estados que são denominados de representativos o princípio da representação estende-se para muito além do parlamento, pois é aplicado a várias outras instituições políticas que tomam decisões coletivas por meio de representantes eleitos. Essas instituições, que variam de acordo com a estrutura institucional de cada país, seriam, por exemplo, a presidência da república, os diversos níveis de poder executivo e de poder legislativo, as províncias e conselhos regionais. (BOBBIO, 2009, p. 56, 57).

Ainda segundo Bobbio, o debate sobre a representação política encerra grandes temas: um que diz respeito aos poderes do representante (como representa); outro que se refere ao conteúdo da representação (o que/a quem representa) e um terceiro tema que diz respeito ao método de constituição da representação. Duas grandes questões estariam vinculadas a tais temas: 1) a discussão em torno do tipo de mandato, na qual, a representação sem vínculo de mandato se contrapõe ao mandato imperativo; 2) a discussão em torno do tipo de representação, na qual, a proposta de representação de interesses gerais se contrapõe à defesa da representação orgânica ou dos interesses específicos de uma dada categoria. (BOBBIO, 2009, p. 58-60).

Quanto ao objetivo da representação, duas questões devem ser consideradas. A primeira está associada à necessidade da existência de representantes e ao problema da escala na democracia. A existência de um grande número de pessoas com direito de participar das decisões políticas torna impraticável a tomada de decisões coletivas exclusivamente em assembleias e com participação direta dos cidadãos. A alternativa, a eleição de representantes,

impõe a ideia do mandato livre, ou seja, o representante, independente de quem e de quantos o elegeu, deve decidir tendo como referência interesses gerais ou bens públicos e não especificamente a demanda daqueles que o escolheu. Evidentemente, na prática, muitas vezes isso não é considerado. Se um representante age de acordo com os seus interesses pessoais ou de acordo com os interesses daqueles que financiaram a sua campanha, em detrimento dos interesses gerais, ele claramente desrespeita os princípios da representação. Essa questão, que abre o problema da qualidade da representação ou, em termos mais amplos, da qualidade da democracia, demarca, também, a importância dos controles, por parte dos cidadãos, sobre os seus representantes.

Os problemas envolvidos nessa questão estão relacionados com a importância da participação política e com o aperfeiçoamento dos controles democráticos. A participação será discutida na próxima seção. Quanto aos controles democráticos, para situar melhor a discussão deve-se abordar o significado e as consequências da agregação de preferências. Essa expressão corresponde à preferência evidenciada pelo somatório dos votos dos eleitores nas eleições. Conforme demonstrado anteriormente, na perspectiva teórica adotada nesta tese o eleitor decide quem vai tomar as decisões políticas relacionadas a qualquer tema da vida pública e não sobre o que será decidido pelos representantes. Isso parece um detalhe, mas é de extrema importância, além se ser uma questão associada à frequentes confusões teóricas. Escolher quais são as pessoas que vão tomar as decisões é muito diferente de escolher quem vai representar os interesses de cada cidadão particularmente. A representação de interesses particulares é típica da delegação ou do mandato imperativo que são, por definição, incompatíveis com a representação democrática. Posto isso, fica claro que a agregação de preferência é um mecanismo para formar uma vontade coletiva e que isso é muito diferente da “vontade geral” definida por Rousseau. Esta última está fundada na ideia de um bem comum, definido a priori, que aglutinaria os cidadãos e permitiria o consenso. A agregação de preferência está associada ao reconhecimento de que não há esse bem comum definido a priori e de que esta ideia é plenamente incompatível com as sociedades modernas e pluralistas. Portanto, em termos da constituição das instâncias decisórias democráticas, cabe aos cidadãos, levando em consideração a diversidade de interesses e a importância da autonomia individual, primeiramente, escolher um conjunto de representantes - com características e plataformas diversas - para discutir e deliberar sobre os assuntos que implicam decisões que têm consequências para toda uma coletividade. Posteriormente, por meio de outras eleições, caberá aos cidadãos decidirem se desejam que esses representantes

continuem com seus mandatos. E ao longo do exercício dos mandatos o cidadão poderá participar, na medida em que desejar, dos processos decisórios e/ou debates que estiverem ao seu alcance. Essa foi a solução encontrada para tornar a democracia possível no mundo contemporâneo, mas aceitá-la não implica negar as suas limitações. Muito pelo contrário, implica o permanente aprimoramento do sistema. O reconhecimento desses limites é o ponto de partida para a busca de aperfeiçoamento dos controles democráticos

Por tudo isso é que se afirma que na atualidade a democracia tem como característica o sufrágio universal; a igualdade política; o mandato livre dos representantes; a representação de interesses gerais e os limites que as regras do processo decisório impõem ao exercício do mandato. Tais limites referem-se tanto ao estabelecimento de tipos diferentes de maioria, de acordo com o tipo de tema em pauta, como ao tempo de duração do mandato, o qual, sendo previamente estabelecido, assegura a possibilidade de alternância no poder ou de mudança da direção política, de acordo com a vontade da maioria dos eleitores. O cidadão pode, portanto, optar por uma plataforma política em detrimento de outra, mas em termos de agenda política essa é uma interferência muito indireta.

Essas questões dizem respeito aos dilemas da democracia representativa, sobretudo, aquele relacionado à distância entre governantes e governados. Por isso, impõe-se um debate permanente sobre a transparência no exercício do poder político e sobre a necessidade de ampliar a possibilidade de participação além do período eleitoral. O quanto e como é possível aperfeiçoar as instituições ou como ampliar as possibilidades do cidadão controlar seus representantes são temas que, embora sempre em aberto e envoltos em divergências teóricas, talvez estejam recebendo, na maioria das análises, uma atenção aquém da sua importância e dos desafios teóricos e práticos que colocam para a Ciência Política.