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A AUTONOMIA PRIVADA COMO PRESSUPOSTO DA NEGOCIAÇÃO

3 A COMPREENSÃO DA IMPORTÂNCIA DA AUTONOMIA PRIVADA

3.3 A AUTONOMIA PRIVADA COMO PRESSUPOSTO DA NEGOCIAÇÃO

Para além do quanto já esclarecido em tópicos anteriores, importa afirmar que o conceito de autonomia privada não se limita à atividade do homem, individualmente considerado, mas também a todas as pessoas jurídicas, singulares ou coletivas.49

O destaque dado às pessoas jurídicas, no particular, tem o firme propósito de evidenciar a consequência autônoma que decorre da reunião de pessoas em torno de uma organização, de qualquer ordem, com personalidade jurídica própria.

Nesse ponto, os interesses individuais cedem lugar a um novo propósito, com “autonomia e especificidade orgânica e ideológica”, como afirma Ana Prata, diversas dos sujeitos que individualmente compõem aquele agrupamento, “somente referenciáveis ao homem, na medida em que são parte integrante de uma realidade social”.50

48 SFORZA, Cesarini. Diritto soggestivo. In. Enciclopedia del Diritto. Milano, 1964, v. 12, p. 665 apud PRATA,

Ana. A Tutela Constitucional da Autonomia Privada. Coimbra: Almedina, 2017, p. 19.

49 PRATA, Ana. A Tutela Constitucional da Autonomia Privada. Coimbra: Almedina, 2017, p. 15-16. 50 PRATA, Ana. A Tutela Constitucional da Autonomia Privada. Coimbra: Almedina, 2017, p. 16.

A negociação coletiva surge como manifestação de vontade das entidades sindicais representativas das classes dos trabalhadores e patronais, produto autônomo e independente das vontades individuais dos sujeitos que as compõem. A vontade coletiva, pois, é muito mais do que a simples soma das manifestações individuais de vontade, ela possui conteúdo próprio atrelado ao escopo das organizações que lhe dão origem e produz uma cultura, uma concepção de mundo, de conformação sui generis, independente da matéria-prima que lhe formou.

Em seus estudos sobre o conceito de vontade coletiva de Antonio Gramsci, transcrevendo trecho da obra desse italiano, Carlos Nelson Coutinho, enuncia precisamente essa concepção da vontade:

Para escapar ao solipsismo, e, ao mesmo tempo, às concepções mecanicistas que estão implícitas na concepção do pensamento como atividade receptiva e ordenadora, deve-se colocar o problema de modo ‘historicista’ e, simultaneamente, colocar na base da filosofia a ‘vontade’ (em última instância, a atividade prática ou política), ‘mas uma vontade racional, não arbitrária, que se realiza na medida em que corresponde às necessidades objetivas históricas’, isto é, em que é a própria história universal no momento da sua realização progressiva. Se esta vontade é inicialmente representada por um indivíduo singular, a sua racionalidade é atestada pelo fato de ser ela acolhida por grande número, e acolhida permanentemente, isto é, de se tornar uma cultura, um ‘bom senso’, uma concepção de mundo, com uma ética conforme à sua estrutura.51

A base do Direito Coletivo do Trabalho está na negociação coletiva, um modo de solução dos conflitos das relações de trabalho, que, por ser autocompostivo, melhor acomoda as inquietações das forças antagônicas entre capital e trabalho, produzindo soluções genuínas originadas dos próprios atores sociais.

A negociação coletiva pressupõe diálogo entre os sindicatos representativos das categorias envolvidas – patronal e dos trabalhadores –, daí resultando as convenções coletivas, ou mesmo entre as empresas e os sindicatos profissionais, da qual resultam os acordos coletivos.

José Augusto Rodrigues Pinto define as negociações coletivas no Direito do Trabalho “como o complexo de entendimentos entre representações de trabalhadores e empresas, ou suas representações, para estabelecer condições gerais de trabalho destinadas a regular as relações

51 COUTINHO, Carlos Nelson. O conceito de vontade coletiva em Gramsci. Revista Katál, Florianópolis, v. 12, n. 1,

individuais entre seus integrantes ou solucionar outras questões que estejam perturbando a execução normal dos contratos”.52

Desse modo, a autonomia da vontade coletiva é pressuposto essencial para uma efetiva composição dos conflitos de trabalho. Sem a liberdade para formação dessa vontade, que parte do amadurecimento dos grupos sociais em torno de ideias políticas e econômicas, não se pode conceber a satisfação dos interesses coletivos.

É no seio da sociedade, precisamente nos grupos organizados da sociedade civil que são pensadas as grandes questões sociais, que alimentam os interesses coletivos e resultam, em última análise, na satisfação dos interesses individuais.

Daí porque aqui se afirma que a vontade coletiva é produto diverso da soma das vontades individuais, na medida em que é resultante da dinâmica coletiva em si mesma, inexistente quando apenas presente a soma das vontades individuais, e só revelada a partir da atuação conjunta das forças sociais, as quais dão sentido de ser à própria vontade coletiva.

Desse modo, impossível apreender-se essa manifestação de vontade genuína com a intervenção estatal. Para efetivamente contemplar os interesses das categorias envolvidas, os sindicatos precisam ser livres dos poderes instituídos, sob pena de comprometimento dessa vontade, cuja revelação é a matéria-prima das negociações coletivas.

Isso não significa uma subordinação impotente dos integrantes das entidades sindicais à vontade coletiva, como era a ideia de Rousseau ao dispor sobre a vontade geral em seu Contrato Social. Para esse grande pensador iluminista, o Estado representava a vontade geral do povo, que delegava a este as suas vontades individuais, ausente o diálogo direto entre cidadãos e Estado.

Todas essas cláusulas, bem entendido, se reduzem a uma única, a saber, a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, em favor de toda a comunidade. (...) Logo, ao invés da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto a assembleia de vozes, o qual recebe desse mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade.53

52 PINTO, José Augusto Rodrigues. Direito Sindical e Coletivo do Trabalho. São Paulo: LTr, 1998, pág. 68. 53 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Tradução de Rolando Roque da Silva. Edição eletrônica: Ed.

Ridendo Castigat Mores, 2002, p. 25-26. Versão para eBook. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/contratosocial.pdf>. Acesso em: 16 mar. 2019.

A vontade coletiva aqui tratada não se aproxima da vontade geral do Contrato Social de Rousseau, porquanto não se trata de uma adesão dos representados ao poder de uma entidade superior a lhes ditar regras de conduta, numa evidente dissociação da dinâmica de uma democracia. O poder atribuído às entidades coletivas, precisamente os sindicatos, no caso do presente estudo, deriva, ao contrário, do exercício infindável e aprofundado da democracia, na medida em que é a efetiva participação dos cidadãos na construção dos ideais perseguidos no agrupamento de classe, que faz surgir a dita vontade coletiva que serve de substrato para a finalidade concreta da negociação coletiva.

Não por outro motivo, a Convenção OIT nº. 98, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº. 49/1953, assegura meios de proteção à liberdade sindical:

ARTIGO 2º

1 - As organizações de trabalhadores e de empregadores deverão gozar de proteção adequada contra quaisquer atos de ingerência de umas em outras, quer diretamente, quer por meio de seus agentes ou membros, em sua formação, funcionamento e administração.

De igual modo, a Convenção OIT nº. 154, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº. 22/1992, com o firme propósito de incentivar o instrumento da negociação coletiva, disciplinou:

Artigo 5º

1. Deverão ser adotadas medidas adequadas às condições nacionais no estímulo à negociação coletiva.

2. As medidas a que se refere o parágrafo 1 deste artigo devem prover que: a) a negociação coletiva seja possibilitada a todos os empregadores e a todas as categorias de trabalhadores dos ramos de atividade a que se aplique a presente Convenção;

b) a negociação coletiva seja progressivamente estendida a todas as matérias a que se referem os anexos a), b) e c) do artigo 2 da presente Convenção;

c) seja estimulado o estabelecimento de normas de procedimento acordas entre as organizações de empregadores e as organizações de trabalhadores;

d) a negociação coletiva não seja impedida devido à inexistência ou ao caráter impróprio de tais normas;

e) os órgãos e os procedimentos de resolução dos conflitos trabalhistas sejam concedidos de tal maneira que possam contribuir para o estimulo à negociação coletiva.

No campo do Direito do Trabalho, pois, o instrumento da negociação coletiva é visto como o meio mais eficaz de solução de conflitos, por ser o mais legítimo apaziguador das inquietações que brotam do seio da relação capital x trabalho, na medida em que resulta na produção de regras instituídas pelos próprios atores envolvidos.

Por ser um instrumento que sobreleva a participação de todos, na formação da vontade coletiva, pode-se afirmar que é o mecanismo mais democrático na composição das questões de natureza trabalhista. Dito de outro modo, a exortação à negociação coletiva, materializada nos instrumentos coletivos, mais do que atender aos anseios de um Estado de Direito resulta na valorização do Estado Democrático de Direito.

Esse é um caminho a ser cada vez mais pavimentado, iluminado e assimilado pelos estudiosos do Direito do Trabalho, a inspirar até mesmo a defesa de uma reforma ainda mais profunda na organização sindical brasileira, que tem esteio em um tripé originário da base do sindicalismo italiano, formado sob a égide de um regime ainda ditatorial e, por isso, subvencionado pelo Estado e sob a interferência direta deste.

A unicidade sindical, a divisão por categoria profissional e o imposto sindical, desde a sua origem, formaram a base em que esteve assentada a estrutura sindical no Brasil. A reforma trabalhista inaugurada pela Lei nº. 13.467/2017 suprimiu um desses pilares – o imposto sindical, mas não avançou sobre os demais.

Isso, entretanto, não representou uma redução do poder das entidades sindicais, como defendem alguns, em verdade, prestou-se a uma separação ainda maior das estruturas dessas entidades do poder estatal, mas este aspecto será mais pormenorizadamente tratado em capítulo posterior.