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CAPÍTULO 2 – DESCRIÇÃO DA BIBLIOGRAFIA DIDÁTICA (1814-1939):

2.2 A autoria da bibliografia

O acervo apresentado foi escrito por 183 autores, incluindo autores traduzidos. A maioria é autoria do gênero masculino, sendo apenas três autorias femininas. Desse conjunto de autores, oito são anônimos, por pseudônimos ou por autorias institucionais. Há seis traduções com adaptações, o que reforça o questionamento da noção, muitas vezes endossada em pesquisas sobre a formação do ensino de Geografia, de que, principalmente no século XIX, se utilizariam livros importados para o ensino dessa matéria – esta parece ter sido, de fato, uma realidade para obras de outras disciplinas, mas não propriamente desta matéria. Os manuais de História e Geografia foram, sobretudo, nacionais, ao passo que os manuais para o ensino da leitura e da língua portuguesa eram, em grande parte, importados de Portugal e os das áreas exatas, importados ou traduzidos da França ou Inglaterra, como depõe Veríssimo (1906, p. 4-8):

São muitos os escritores estrangeiros que traduzidos, transladados ou, quando muito, servilmente imitados, fazem a educação da nossa mocidade. Seja-me permitida uma recordação pessoal. Os meus estudos feitos de 1867 a 1876 foram sempre em livros estrangeiros. Eram portugueses e absolutamente alheios ao Brasil os primeiros livros que li. O Manual Enciclopédico de Monteverde, a Vida de D. João de Castro de Jacinto Freire (!), os Lusíadas de Camões, e mais tarde, no Colégio de Pedro II, o primeiro estabelecimento de instrução secundária do país, as seletas portuguesas de Aulete, os Ornamentos da memória de Roquete - foram os livros em que recebi a primeira instrução. E assim foi sem dúvida para toda a minha geração. Acanhadíssimas são as melhorias desse triste estado de cousas, e ainda hoje a maioria dos livros de leitura, se não são estrangeiros pela origem, são-no pelo espírito. Os nossos livros de excertos são aos autores portugueses que os vão buscar, e a autores cuja clássica e hoje quase obsoleta linguagem o nosso mal amanhado preparatoriano de português mal percebe. São os Fr. Luís de Souzas, os Lucenas, os Bernardes, os Fernão Mendes e todo o classicismo português que lemos nas nossas classes da língua, que aliás começa a tomar nos programas o nome de língua nacional. Pois, se pretende, a meu ver erradamente, começar o estudo da língua pelos clássicos, autores brasileiros, tratando coisas brasileiras, não poderão fornecer relevantes passagens? E Santa Rita Durão, e Caldas, e Basílio da Gama, e os poetas da gloriosa escola mineira, e entre os modernos João Lisboa, Gonçalves Dias, Sotero dos Reis, Machado de Assis e Franklin Távora, e ainda outros, não têm páginas que, sem serem clássicas, resistiriam à crítica do mais meticuloso purista?

Assim, há a tese amplamente divulgada e aceita, na história do livro didático, segundo a qual a nacionalização do livro didático ocorreria concretamente no final do século XIX, no contexto em que se esboçava um sistema de educação pública, conforme Lajolo; Zilberman (1996), Hallewell (2005), Bittencourt (2008), Razzini

(2004). Mas para o caso do ensino de Geografia, essa tese deve ser questionada, pois a própria bibliografia suscitada neste capítulo demonstra que as publicações de Geografia como uma das primeiras linhas do gênero didático, a par com os livros de História, a ter a nacionalidade dos autores e dos conteúdos desenvolvidos em uma produção significativa, pelo menos em termos quantitativos, inclusive com certo desenvolvimento regional, disperso em pontos referenciais do território brasileiro. O que parece é que, em momentos de reorientação do ensino, não se achava no mercado livros brasileiros de Geografia que se adequassem às novas propostas. Isso se percebe, por exemplo, na adoção do Manuel du Baccalauréat26, e do Atlas de Delamarche, pelo Colégio Pedro II por ocasião da reforma induzida pelo Decreto de 24 de janeiro de 1856, obras essas necessárias para complementar a adoção do compêndio de Pompeu Brasil. Outra hipótese pode ser as pequenas tiragens, o largo tempo para consumi-las, o que as levava à desatualização, ou mesmo à não reedição.

O mais comum foram as autorias únicas, tendência destoante, por exemplo, da produção atual de livros didáticos de Geografia, na qual predomina o sistema de co-autorias. No período suscitado, têm-se apenas nove produções em co-autorias, e três co-autores interventores, mais especificamente Luiz Leopoldo Fernandes Pinheiro27, João Ribeiro28 e Pe. José Severiano de Rezende29, que atuaram na

sobrevida das obras de Joaquim Maria de Lacerda30, após o falecimento deste autor.

Um pouco menos da metade dos títulos, 113 dos 276, são obras de autores que tiveram pelo menos dois títulos em sua produção. Para o período, a maior

26 Por não ter tido acesso a essa obra, não a inclui na bibliografia: parece que atendia mais ao

currículo de História do que propriamente ao de Geografia.

27 Luiz Leopoldo Fernandes Pinheiro – era sobrinho de Joaquim Maria Lacerda. Nasceu em

Campos (RJ), em 1855 e faleceu em 1925. Foi literato, atuando na poesia, crônica, romance e tradução. Trabalhou como professor de Filologia, Geografia e História (RONZANI, 2011).

28 João Ribeiro

– atuou em trabalhos editoriais para revisão e ampliação de manuais didáticos de Geografia. Nasceu em Sergipe, em 1860 e faleceu no Rio de Janeiro em 1934. Foi historiador, filólogo, jornalista e professor do Colégio Pedro II (MOTA, 2004).

29 Pe. José Severiano de Rezende

– nasceu em 1871 e faleceu em 1931. Foi pároco em Mariana (MG) e atuante no jornalismo (MARTINS, 1983).

30 Joaquim Maria de Lacerda – filho de um marinheiro, capitão de navio, nasceu no

Rio de Janeiro em 1833 e faleceu em Paris, no ano de 1886. Formou-se em Direito, e foi membro da Arcádia Romana e outras associações literárias, inclusive europeias. Sobretudo nos últimos anos de vida, dedicou-se à educação, produzindo inúmeras obras de Geografia e História (BLAKE, 1898).

produção, com 12 títulos, pertence a Alfredo Moreira Pinto31, em quase 30 anos de

atividade. Destacam-se ainda Mário da Veiga Cabral32 e Aroldo de Azevedo33, com

11 e 10 títulos, respectivamente, embora esses números reflitam, devo ressaltar, apenas o período delimitado pela pesquisa, pois a produção dos mesmos foi bem maior, haja vista terem sido atuantes, e se situarem dentre os autores mais significativos da bibliografia didática de Geografia, até a década de 1970. Aroldo de Azevedo, por exemplo, totalizou 30 títulos didáticos ao longo de sua carreira. Com um caráter mais regional, pois em grande parte centrado no Rio Grande do Sul, tem- se A. G. Lima34, autor de 10 títulos (Cf. Quadro 2).

Todavia, a quantidade de títulos não expressa exatamente a importância de um autor no contexto da educação geográfica. Muitos autores publicaram apenas uma obra, com muitas reedições, e frequentemente melhoradas, alteradas, complementadas, prolongando a utilização do livro. Talvez o caso mais típico tenham sido os livros de Joaquim Maria de Lacerda que, publicando cinco títulos em seus últimos anos de vida, a partir da década de 1870, foi exaustivamente republicado até a década de 1930. Dada a desatualização periódica dos livros de

31 Alfredo Moreira Pinto – nasceu no Rio de Janeiro em 1847, filho de um

comerciante português. Formou-se bacharel em Letras pelo Colégio Pedro II em 1865, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo em 1866, curso que não concluiu. Foi professor de Geografia e História do curso preparatório anexo à Escola Militar, além de ter sido professor particular dessas disciplinas, atuando ainda como jornalista. Escreveu extensa obra nas áreas de Geografia e História, além de ter sido autor de um dicionário geográfico. Faleceu em 1903 (BLAKE, 1883; BARBUY, 2006).

32 Mário [Vasconcelos] da Veiga Cabral

– geógrafo e engenheiro agrimensor, estudou no Colégio Militar e na Escola de Guerra de Realengo. Atuou como professor em instituições como o Ginásio 28 de Setembro, Instituto de Educação, Liceu Rio Branco, Universidade do Distrito Federal e Escola de Engenharia do Rio de Janeiro, sendo autor de extensa obra didática nas áreas de História e Geografia, além de outras. Nasceu em 1894 e faleceu em 1973 (SILVA, 2009; AGCRJ, 2010).

33 Aroldo [Edgard] de Azevedo

– geógrafo e geomorfólogo brasileiro, nascido em Lorena (SP), em 1910, filho de um político paulista, e falecido em São Paulo, em 1974. Formado em Direito, nunca exerceu profissão jurídica; formado em Geografia e História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), em 1939, foi um dos primeiros autores didáticos com formação em Geografia, sendo um dos primeiros professores dessa ciência, na USP, onde foi catedrático de Geografia do Brasil e também Diretor do Instituto de Geografia. Membro da Associação dos Geógrafos Brasileiros e do Instituto Geográfico do Brasil, publicou 127 livros de Geografia, entre didáticos e científicos, e artigos. Na pesquisa geográfica, destacou-se por propor um importante mapa e uma das primeiras classificações do relevo brasileiro (1949), a partir do critério altimetria. É um dos autores didáticos mais bem sucedidos do século XX, com cerca de 13 milhões de exemplares vendidos (ISSLER, 1973; CONTI, 1976; PREFEITURA..., 2010).

34 A. G. [Affonso Guerreiro] Lima

– Affonso Guerreiro Lima foi professor da Escola Normal de Porto Alegre, sendo de sua autoria diversas obras didáticas de História e Geografia. É lembrado por ter sido um inovador da apresentação gráfica nos livros didáticos. Era geógrafo e membro do Instituto Histórico e Geográfico do RS. (IHGRGS, 2011).

Geografia, sobretudo em um período em que as estatísticas, a regionalização e o conhecimento geográfico eram ampliados e/ou modificados de diversas maneiras, a continuidade dessas obras só foi possível por meio do trabalho de co-autores, como citado acima. E, por outro lado, há autores que publicaram apenas um título, mas com muita importância na perspectiva do método, da teorização ou mesmo na perspectiva gráfica.

QUADRO 02 – Produção por autoria, para autores com mais de dois títulos de manuais

didáticos de Geografia (1814-1939).

Obras Autores Período de

Produção (1ª ed. ou edição

mais antiga) 12 PINTO, Alfredo Moreira 1869/1906

11 CABRAL, Mário da Veiga 1916/1937 10 LIMA, A. G. [Afonso Guerreiro] 1911/1937

10 F.T.D. 1907/1923

10 AZEVEDO, Aroldo de 1934/1939

07 MILANO, Miguel 1922/1938

05 MARTINS, Henrique [Augusto Eduardo] Década de 1870 a 1898 05 ELLIS JUNIOR, Alfredo 1932/1935

05 LACERDA, Joaquim Maria de 1870/1887 04 CARVALHO, Carlos Miguel Delgado de 1913/1933

04 PIMENTEL JUNIOR, F. Menezes Entre 1930 e 1932

04 SCROSOPPI, Horacio 1905/1915 04 NOVAES, Carlos 1882/1926[?] 03 FREITAS, Gaspar de 1925/1936 03 JARDIM, Renato 1933/1936 03 GABAGLIA, F. A. Raja 1933/1936 03 GABAGLIA, Raja 1925/1936

02 ALMEIDA, Antonio Figueira de 1931/1935 02 BITTENCOURT, Feliciano Pinheiro 1907/1909

02 BRAZIL, Thomaz Pompeu de Souza (Filho) Década de 1880/1894 02 CARVALHO, Goeth Galvão de Década de 1890 02 CARVALHO, Joaquim José de 1883/1885

02 CUNHA, M. P. 1931/1938

02 CUNHA, Raymundo Cyriaco da 1887/1894

02 F. I. C. [Frere Ignace Chaput] Décadas de 1880 a 1910 02 FREIRE [da Silva], Olavo 1921-1925

02 GÓES, Carlos 1917-1918

02 LEÃO, Manuel do Rego Barros de Souza 1858-1859 02 LEME, Ezequiel de Moraes 1913-1920 02 MACEDO, Joaquim Manoel de 1873-1877 02 MARTINS, Amélia de Rezende 1919-1930 02 PEREIRA, José Saturnino da Costa 1818/1836

02 PINHEIRO, Manoel Pereira de Moraes 1875 e década de 1880 02 REIS, Antônio Alexandre Borges dos 1892/1920

02 REIS, O. de Souza 1918/1921

02 VILLA-LOBOS, Raul 1886/1890[?]

Org.: Jeane Medeiros Silva, 2011.

Dois outros casos de adequação de uma mesma obra, agora por seus autores, chamam a atenção. Primeiro, temos Thomaz Pompeu de Souza Brasil, que publicou os Elementos de Geographia em 1851, em Fortaleza, para uso dos alunos do Liceu local, ganhando uma nova edição em 1856, com o título de Compendio de

Geographia, ainda editado no Ceará. A obra, no entanto, ganhou dimensão nacional

ao ser adotada no Rio de Janeiro e em outras cidades (inclusive adotada pelo Colégio Pedro II, liceus e seminários do Império, como clarifica uma chamada em sua capa), passando a ter uma terceira edição, aumentada e corrigida, publicada no Rio de Janeiro, com novo título: Compendio elementar de Geographia geral e

especial do Brasil. Nessa forma, apenas com correções e ampliações pontuais, teve

mais duas edições, em 1864 e 1869.

Os autores mais comuns foram professores, não unicamente de Geografia. No entanto, principalmente no século XIX, pessoas de diferentes formações e ocupações profissionais produziram as obras da bibliografia: literatos, advogados, políticos, jornalistas, militares graduados, religiosos, engenheiros... Alguns de renome na cultura geral brasileira, como Osório Duque-Estrada35, Joaquim Manoel de Macedo36, outros com renome na política, como Thomaz Pompeu de Souza Brasil37, ou com reconhecimento na tradição científica brasileira, como Said Ali38.

35 Osório Duque-Estrada

– Nascido em Pati do Alferes, município de Vassouras (RJ), em 29 de abril de 1870, e falecido no Rio de Janeiro em 5 de fevereiro de 1927, Duque-Estrada é reconhecido por ter sido autor da letra do hino nacional brasileiro. Foi poeta, ensaísta, crítico de literatura e atuou como professor, sendo autor de diversas obras didáticas. Na educação, exerceu as funções de inspetor geral do ensino, bibliotecário e professor de francês, chegando a ser professor da cadeira de História Geral do Brasil no Colégio Pedro II, instituição na qual se formou bacharel em Letras, em princípios do século XX. Abandonou o magistério para dedicar-se apenas à imprensa (ABL, 2011).

36 Joaquim Manoel de Macedo

– Nasceu em Itaboraí, a 24 de junho de 1820 e faleceu no Rio de Janeiro em 11 de abril de 1882. Formado em medicina, destacou-se como escritor brasileiro, e trabalhou como professor de História e Geografia do Brasil no Colégio Pedro II. Em 1845, foi sócio, secretário e orador do Instituto Histórico e geográfico Brasileiro. Em sua extensa obra literária, destaca-se o romance A moreninha, sua obra mais reconhecida. Escreveu livros didáticos de Geografia e História (ABL, 2011).

37 Thomaz Pompeu de Souza Brasil – Nasceu em Santa Quitéria, em 6 de junho de 1818, e faleceu

em Fortaleza, a 2 de setembro de 1877. Formado em Direito, ocupou cargos na política e na educação, sendo um dos fundadores, diretor e docente de História e Geografia do Liceu do Ceará, além de contribuir com a imprensa. Pertenceu ao quadro de diversas instituições científicas, dentre as quais a Sociedade de Geografia de Paris, o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (SOUSA NETO, 1997).

Frequentemente, as editoras com especialização em livros didáticos, como a Francisco Alves, agiam por encomendas, procurando por autores institucionalizados no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB e, sobretudo, no Colégio Pedro II, em razão da visibilidade desses autores e de sua experiência com os programas e a metodologia de ensino da instituição modelar do ensino secundário no Brasil. Muitos autores, quando professores, para a escrita de suas obras didáticas, desenvolviam apenas suas anotações e roteiros de aulas.

Na perspectiva discursiva desta tese, percebo esses autores como sujeitos, ou seres sociais, não fundamentados em uma individualidade, mas como expressões de um espaço social e ideológico em determinado momento da história (FERNANDES, 2005). Dessa forma serão compreendidos no desenvolvimento da tese.