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A autoria feminina brasileira

No documento Dicionário de escritoras catarinenses (páginas 49-55)

Ao contrário do que muitos pensam, a literatura de autoria feminina vem sendo praticada há muito tempo. No entanto, as leis, a cultura, os costumes e a ideia da condição de inferioridade fez com que

55 CASTELO, José Aderaldo. A literatura brasileira: origens e unidade (1500-1960). v.1 e 2.

a mulher tivesse vários momentos de silenciamento de sua escritura. Mas, de uma forma ou de outra, publicada ou nas gavetas, essa escrita existia e, hoje, podemos dizer que conseguimos grandes avanços na área.

A tradição da escrita feminina passou por diversas transformações através dos tempos. Elaine Showalter, ensaísta norte- americana, em A literature of their own: british women novelists from bronte to lessing56 (1986), indica que o percurso literário das obras de autoria feminina no espaço de 1840 até 1960 perpassa por três etapas, a saber: a primeira, denominada pela autora de “feminine” (feminina) é caracterizada pela imitação; a segunda fase, que caracteriza um processo de ruptura da tradição e dos valores, é chamada de “feminist” (feminista); e a terceira, a fase do auto descobrimento, da procura da própria identidade, é denominada pela autora de “female” (fêmea/mulher)57.

O silenciamento, a censura sempre são elementos presentes quando se fala de escrita de mulheres. Virgínia Woolf, em seu livro Um teto todo seu58, afirma que a mulher, até os fins do século XIX não fora encorajada a mostrar a sua criatividade e capacidade de escrita, e as que tentaram fazer isso, foram repudiadas e até ridicularizadas. Isso porque “a atividade criativa da mulher era vista como resultado do seu deslocamento em relação às expectativas culturais de gênero, como, por exemplo, a sublimação do instinto e da função maternal.” (SCHMIDT, 1988, p.104)

O que ocorria é que ainda nesse mesmo século XIX, as mulheres ocidentais eram marcadas pelo patriarcado. Eram criadas para serem obedientes, e seu território de existência era o doméstico – daí subentende-se: cuidar dos filhos, da casa, saber coser e proporcionar

56 SHOWALTER, Elaine. A literature of their own: british women novelists from bronte to lessing. In: EAGLETON, Mary (Ed.) Feminist Literary Theory. New York: Basil Blackwell

Ltd, 1986.

57 A pesquisadora Elódia Xavier (2002), a partir do estudo de Showalter, indica que a tradição

literária feminina brasileira segue o percurso seguinte: a fase feminina teria se iniciado a partir da publicação de um dos primeiros romances escritos por mulheres, Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis, e se estendido até 1944, quando Clarice Lispector publica Perto do coração

selvagem. Essa fase de ruptura se estende até os anos 1990, quando as escritoras começam a

reivindicar e a mostrar em seus textos a representação de novas identidades femininas, livrando-se do peso da tradição patriarcal – tem-se início, então, a terceira e última fase, a fase fêmea, a fase mulher.

58 WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

conforto ao marido. A partir do momento em que ultrapassam esse universo e invadem o mundo da literatura, o mundo masculino, portanto, desafiam os padrões culturais e políticos que as relegaram ao espaço do lar. Aos poucos, começam a promover a transgressão no que se refere ao seu papel e lugar na sociedade patriarcal.

Esse comportamento transgressor, porém, pôs em risco a sua identidade feminina sexual e a sua própria existência, uma vez que a sociedade patriarcal já havia fixado sua identificação como: dócil, servil, casta, sentimental e centrada no bem estar da família. A fim de tornar menos dolorosa essa pena e não abandonar a escrita, muitas mulheres utilizaram-se de estratégias diversas, como o uso de pseudônimos masculinos ou o fato de se transvestirem de roupas masculinas para frequentar lugares públicos considerados de uso exclusivo aos homens59.

De acordo com Moreira (2005, p.234), ainda nessa época, a mulher possuía dificuldades para assumir uma autoria feminina, uma vez que temiam as críticas sociais e a perda da identidade feminina, insistindo “em afirmar que embora escrevessem não estavam nem se desviando dos papéis femininos, nem usurpando uma esfera que não era a sua”, uma vez que estavam, na verdade, estendendo suas experiências moralizantes do lar para fora deste. “Em suma, estas mulheres não se definiam como escritoras, mas como instrutoras morais e espirituais dos seus leitores.”60 O resultado disso é o estereótipo criado na época para a escrita de autoria feminina: obras de segunda e de terceira categoria, sentimentalistas, bobas, descritoras de seu “cativeiro doméstico”, a partir da inscrição em seus diários íntimos, enfim, as mulheres eram consideradas escritoras de “obras menores”61. Tudo isso resultou no rótulo criado pela sociedade patriarcal: a mulher é impossibilitada de escrever textos significativos! E essa discriminação literária contribuiu para a invisibilidade da mulher dentro da história.

Schmidt (1988) assinala que “escrever romances no século XIX se tornou uma das poucas profissões em que a mulher conseguiu se

59 Aqui é importante salientar que não eram somente as mulheres que se ocultavam sob

pseudônimos (e utilizavam-nos para evitar o patrulhamento daqueles que consideravam que a literatura não era coisa de mulher) mas, em determinadas épocas, os homens também faziam uso desse recurso, uma vez que precisavam se esconder por algum motivo (aqui poderiam ser citados Machado de Assis, Aluísio de Azevedo, Olavo Bilac, Cruz e Sousa, Ernani Rosas e tantos outros).

60 MOREIRA, 2005, p. 234.

61 É válido observar também o fato de que a autoria masculina já representava (e isso há muitos

anos) a imagem da mulher de forma dicotômica, isto é, as personagens femininas apareciam como santas ou demônios, anjos ou bruxas – e isso não refletia a condição real da mulher.

equiparar ao homem, pelo menos financeiramente62. É a época em que, principalmente, inglesas e francesas começam a exercer essa profissão, produzindo uma literatura julgada “apropriada” para mulheres, explorando temas voltados à vida doméstica, bem como sua expectativa em relação a filhos e marido63. E aí começam a surgir os conflitos entre o que as mulheres realmente queriam e o que elas representavam e as contradições entre valorizar a experiência feminina e desvalorizar o seu espaço literário.

Aqui poderia ser citada Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), escritora que expressa essa angústia ao declarar, em uma entrevista realizada entre 1904 e 1905, a João do Rio (1994, p.29): “Tinha uma grande vontade de chorar, de pedir perdão, de dizer que nunca mais faria essas coisas feias [aqui ela se refere ao ato de escrever], e ao mesmo tempo um vago desejo que meu pai sorrisse e achasse bom.”

Esse desabafo reflete bem o conflito existente entre a mulher literata e a mulher preterida pela sociedade patriarcal, a “rainha do lar”.

No século XX, uma nova fase da escrita feminina começa a despertar para a consciência crítica. As mulheres promovem algumas incursões em posicionamentos acerca da falência dos modelos de comportamento herdados pela sociedade patriarcal e iniciam “experimentos” a partir da multiplicidade de formas de criação literária. A partir daí tem início o aparecimento de uma nova consciência feminina que procura romper com os limites do seu Eu para chegar até o Outro – por isso, nos identificamos cada vez mais com o eu que fala na literatura feminina; ou seja, nós, mulheres, conseguimos nos identificar com os personagens, pois agora eles se mostram mais “humanos”, mais reais (nem bruxa nem anjo; nem deusa, nem rainha do lar; mas tão somente mulher!).

Assim,

De uma literatura lírico-sentimental (gerada pela contemplação emotiva), cujo referencial de valores se pautava pelos padrões que a sociedade cristã/patriarcal defendia como únicos e absolutos

62 A estadunidense Harriet Beacher Stowe, por exemplo, quando escreveu A cabana do pai Tomás, em 1851, vendeu muito mais que muitos homens da época: cerca de 350 mil cópias em

um ano!

63 Nessa época, as escritoras francesas que publicavam os romances, usavam a expressão

“ouvrières de lettres” (“operárias das letras”) quando se referiam a sua ocupação. É no final do século XIX, também, que está em voga o folhetim, espaço supostamente feminino, mas que atingia, de fato, grandes contingentes (homens e mulheres) de diversas classes sociais.

(castidade, submissão à autoridade do homem; discrição, ingenuidade, paciência, resignação, etc.) a mulher chegou a uma literatura ético- existencial (gerada pela ação ética/passional) que expressa claramente o rompimento da polaridade maniqueísta inerente à imagem padrão da mulher (anjo/demônio; esposa/cortesã; ânfora do prazer/porta do inferno etc.). Em lugar de optar por um desses comportamentos, a nova mulher assume ambos e revela a ambiguidade inerente ao ser humano. (COELHO, 1993, p.16)

A mulher, portanto, passa a transgredir o modelo patriarcal e parte em busca de uma nova identidade, ou do resgate de sua verdadeira identidade outrora escondida e censurada.

As escritoras do século XX promoveram aos poucos o processo de “ruptura” das normas que se diziam apropriadas para a escrita de mulheres. Os temas começam a versar para questões como identidade feminina – que sempre foi muito confundida com os papéis desempenhados pela mulher e com a própria sexualidade; também se iniciam discursos que trabalham experiências intra-subjetivas e corporais da mulher, bem como experiências que foram anuladas pela tradição cultural.

Nesse sentido, no Brasil, aparecem nomes como o de Gilka Machado (1893-1980), uma das primeiras vozes femininas a exaltar o amor sensual na poesia e da polêmica Patrícia Galvão (Pagu – 1910- 1962), inserida no Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade. Mas, na poesia modernista, o grande destaque da voz feminina foi mesmo o de Cecília Meireles (1901-1964). A autora trabalha uma poesia voltada para o existencialismo, para a condição humana (não especificamente a mulher, mas o ser humano como um todo).

Outra modernista de grande destaque foi Raquel de Queiroz (1910-2003), escritora que mostra um novo espaço tomado pela mulher – um universo entre o arcaísmo e a civilização. Em seu clássico Memorial de Maria Moura (1992), surpreende com uma mulher forte e guerreira que também se mostra repleta de antagonismos: boa/má; corajosa/covarde; guerreira/carente; anjo/demônio...

É importante observar que se o processo editorial já era relativamente intenso no século XIX, época em que se dá a publicação de obras de várias escritoras, foi a partir dessas duas modernistas (Cecília Meireles e Raquel de Queiroz) que se abriram de vez as portas

das editoras a outras autoras. No entanto, é Clarice Lispector (1920- 1977) quem “abre uma tradição para a literatura da mulher no Brasil, gerando um sistema de influências que se fará reconhecido na geração seguinte.” (Viana, 1995, p. 172)

Clarice Lispector inicia com a obra Perto do coração selvagem (1944), inserindo algo novo ao romance brasileiro: o Existencialismo de Sartre, o qual seguia a linha de Heidegger, que via na palavra o “lugar de iluminação do ser” – linha também seguida por Clarice na maior parte de suas obras, nessa busca constante pelo “lugar de iluminação do ser” que a palavra podia revelar.

Assim, as obras de Clarice Lispector representam, enfim, o maior exemplo de rompimento, de desconstrução do feminino, ou seja, de trazer à tona o que foi escondido, o que foi silenciado. Em Laços de família (1960), por exemplo, o próprio título já remete à repressão sofrida pelas mulheres na prática social do cotidiano. O feminismo começa a demonstrar um processo de conscientização, e as narrativas iniciam temas contidos em O segundo sexo (1949), de Simone de Beauvoir. Showalter (1986) chama essa fase de “feminista” porque Clarice traz nas entrelinhas de seu discurso uma forte crítica à sociedade patriarcal. As personagens de Clarice questionam, de forma irônica, o sistema de gêneros. A autora subverte a própria estrutura do romance com sua primeira obra Perto do coração selvagem (1944) e abandona as convenções narrativas para adotar a complexidade das múltiplas perspectivas.

Assim como Clarice Lispector, poderíamos citar tantas outras escritoras que nestes últimos anos vêm produzindo “obras maiores” que retratam a identidade feminina e que já entraram no circuito da mídia: Hilda Hilst, Nélida Piñon, Lya Luft, Heloísa Maranhão, Adélia Prado, Helena Parente Cunha, Márcia Denser, Sônia Coutinho, Neide Archanjo, etc. São mulheres que adentram ao espaço da literatura, outrora genuinamente masculino, com uma nova mentalidade, incentivadas pela crítica feminista, escrevendo narrativas cujas personagens femininas são conscientes de sua identidade e do estado de dependência e submissão a que foram relegadas pela ideologia patriarcal.

No documento Dicionário de escritoras catarinenses (páginas 49-55)