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4.3 A GERMINAÇÃO DAS SEMENTES DO LAZER

4.3.1 A Autotelia

Csikszentmihalyi (1999) esclarece que a palavra “autotélica”, composta de dois radicais gregos auto (relativo ao indivíduo) e telos (meta, finalidade), traduz uma ação

exercida pelo indivíduo como importante e valiosa por si mesma. Assim, a propriedade da autotelia do sistema ludopoiético se evidencia pelo envolvimento e a implicação do ser humano em suas escolhas pessoais e se faz necessária para ele compreender o momento de fluxo e seu envolvimento com a própria vida. O autor revela que, para o indivíduo atingir uma personalidade autotélica ele deve enfrentar a vida com bastante entusiasmo e envolvimento naquilo que se propõe a fazer. Nesse sentido, para a pessoa se tornar autotélica ela deve buscar autonomia e independência evitando manipulação e cobrança externa. Portanto, são fundamentais os momentos de experiências máximas para ela se compreender melhor, atingir o fluxo e transcender.

A autotelia foi evidenciada na construção ludopoiética e descrita nos cenários do jogo de areia pelos estudantes residentes nas diferentes vivências do lazer experienciadas durante sua permanência em moradia estudantil. Pode-se visualizá-la quando um participante revela um momento ludopoiético vivenciado no intervalo das aulas, na descrição a seguir: “O intervalo entre as aulas do vespertino para a hora do jantar, mostrei um momento que faço sempre, ou seja, um passeio (superagradável, pois vou com colegas de quem eu gosto muito de estar junto)” (SOLO A. L. M., 2008).

O relato acima diz respeito a momentos singulares vivenciados nos intervalos de aula, quando os estudantes residentes passavam algum tempo livre interagindo com colegas, escolhendo livremente o que mais lhes agradavam fazer. Com base na classificação de lazer apresentada por Dumazedier (1999), “passear com amigos” pode ser considerado um lazer físico, algo bem peculiar na adolescência. Nesse sentido, nos reportamos a Csikszentmihalyi quando afirma:

As pessoas geralmente ficam muito mais motivadas e felizes quando estão com os amigos, independentemente do que estejam fazendo. Até mesmo estudar e realizar as tarefas caseiras, que deprimem o humor quando feitas sozinhas ou com a família, tornam-se experiências positivas quando ocorrem com os amigos (CSIKSZENTMIHALYI, 1999, p.83).

[...] No lado direito da caixa, na parte de cima, represento o alojamento feminino, mais precisamente o meu quarto. No período da noite, estou ficando mais no meu quarto: me sinto melhor naquele ambiente, além de aproveitar mais o tempo para estudar. Quando não estou estudando, fico conversando e brincando com as meninas (ou até mesmo comendo). É muito bom pra mim esse momento. Às vezes quando estou só, fico pensando na minha vida e... conversando com Deus, agradecendo cada bênção de vida... O presente perto da cama simboliza as surpresas que acontecem, e o coração em cima da mesinha significa a afeição, o carinho e a amizade entre nós. (SOLO G. L. F., 2008)

Esse depoimento refere-se ao ambiente do dormitório feminino, que se caracteriza pelas conversas informais, de intimidade entre as estudantes, fato que colabora para fortalecer a interação entre elas. O lugar de recolhimento e as ações praticadas no período da noite, como conversar e brincar com os colegas, representando o lazer social, por ser algo valioso na vida dos jovens residentes, garantindo a alegria e o bem-estar coletivo na moradia estudantil. O sentimento de amor declarado nas palavras da participante serve de mola propulsora para as ações do cotidiano. Conforme Verden-Zöller (2004, p.143):

O amor é a emoção, a disposição corporal dinâmica que constitui em nós a operacionalidade das ações de coexistência em aceitação mútua em qualquer domínio particular de relações com outros seres, humanos ou não. A biologia do amor é fundamental para o desenvolvimento de todo ser individual.

Outro cenário construído no jogo de areia mostra as atividades desenvolvidas no período da noite que caracteriza a propriedade da autotelia, quando Solo I. M. B. destaca: “[...] A outra casinha, que tem uns bonequinhos à frente, representa a capela da Escola, que sempre me proporciona grandes momentos de alegria e felicidade” (SOLO I. M. B, 2008).

Tais vivências são formas do lazer social, marcadas nas relações interpessoais. As reflexões dos residentes emergem das interações afetivas construídas ao longo da convivência escolar, principalmente nos momentos lúdicos vivenciados no interior do dormitório e também durante a celebração religiosa (missa). Essa vivência socioespiritual proporcionou reflexão sobre a vida cotidiana e bem-estar, como também possibilitou um olhar para a própria vida de outra forma, de modo que, a partir dela, pudessem os residentes entrar num processo de autoprodução de si mesmos.

As falas dos participantes evidenciam o processo ludopoiético da autotelia no sentido de mostrar as interações nas experiencialidades lúdicas, que fizeram vibrar a autopoiese do lazer como processo de reconstrução de conceitos já enraizados em sua vida.

Em relação a esse processo autotélico impulsionado pelas vivências ludopoiéticas, ainda se observam algumas características da autotelia nos finais de semanas.Como diz Solo P. S. O. (2008): “[...] Ainda nos finais de semana, temos primeiro que lavar a roupa, fazer as obrigações, para depois pensarmos em nos divertir, mas às vezes, quando não fica quase ninguém no alojamento, eu aproveito mesmo para descansar”

Esse relato diz respeito às atividades desenvolvidas nos finais de semana, quando o participante aproveitava o tempo liberado para vivenciar as obrigações domésticas. Mesmo se tratando do final de semana, alguns residentes sentem-se obrigados a realizar, primeiramente, as atividades domésticas, como lavar e organizar objetos pessoais, para em seguida vivenciar o lazer numa função de descanso, onde sentimentos de felicidade podiam ser despertados nas atividades de livre escolha.

Dumazedier (2004, p.32) argumenta que “o lazer é um reparador das deteriorações físicas e nervosas provocadas pelas tensões resultantes das obrigações cotidianas e, particularmente, do trabalho”. As atitudes demonstradas por esse residente refletem um sentimento de respeito às regras estabelecidas na moradia estudantil e pelos valores éticos construídos no seio familiar, no qual o trabalho se sobrepõe ao lazer. Isso evidencia a real necessidade de se procurar manter um equilíbrio na relação trabalho e lazer nesse contexto vivido, possibilitando a autoformação humana pelo e para o lazer.

Frente às narrativas dos participantes, em que sobressai a propriedade da autotelia, e de acordo com Csikszentmihalyi (1999), observamos que, na estrutura da vida contemporânea devem-se possibilitar descobertas de como viver melhor, partindo-se da própria iniciativa. Por isso, a necessidade de o indivíduo voltar seu olhar para si mesmo com o objetivo de descobrir valores ludopoiéticos, na convivência diária com o outro, tornando-se sujeito de sua própria ludicidade ao longo da vida.

No documento Festa na escola e a autopoiese do lazer (páginas 175-178)