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A semente do cinema

No documento Festa na escola e a autopoiese do lazer (páginas 138-142)

4.1 A FLORESCÊNCIA DAS SEMENTES DO LAZER

4.1.1 A semente do cinema

A semente do cinema lançada nos solos da Escola Agrícola de Jundiaí germinou bem, foi logo absorvida e fincou raízes, alegrando os canteiros com imagens coloridas e estimulantes.

O cinema se justificou como vivência de lazer primeiramente por ter-se inserido no campo cultural na vida das pessoas, particularmente, neste estudo, contribuindo de forma relevante para ampliar o repertório imaginário dos estudantes residentes e sua formação educacional, e também por ser um espaço cultural de lazer que pode proporcionar alegria e bem-estar.

Os filmes inserem o público no mundo da fantasia: eles brincam com o tempo, transportam-nos para um passado distante e um futuro promissor, sem exigir uma caminhada

física. Eles nos confrontam com nossa própria realidade, nos levam a compreender as realidades que se distancia de nosso contexto de vida e nos colocam como reféns e ou heróis de nossa própria existência. Os filmes estimulam nossa criatividade, nos oferecem possibilidades de ver a vida com novas cores e nos inserem no mundo da velocidade, da imagem, da interpretação.

Por todo esse encantamento proporcionado aos espectadores, o cinema e a televisão tornaram-se, nos últimos tempos, os veículos de lazer mais procurados pelos jovens e pelos adolescentes (ALVES, 2000), principalmente nos fins de semana, quando, geralmente, o tempo livre das pessoas é maior ou a pessoa se permite desfrutar mais o seu tempo livre conquistado.

Além de se constituírem em programas de lazer, os filmes podem desempenhar a função de recuperação psicosomática: muitas vezes os estudantes estavam cumprindo jornadas pesadas de estudo, e, assistindo a um filme, sentiam-se aliviados, distanciavam-se um pouco das tensões próprias obrigações escolares. Desfrutando o prazer de apreciar algo diferente de sua rotina, experienciavam um processo de relaxamento, libertando-se das pressões diárias impostas pelas tarefas escolares, conforme revela Solo A.L.F. (2008): “Os filmes que assistimos nos proporcionam muita descontração, fazendo com que relaxemos e gostemos cada vez mais da escola”.

Para os residentes, que viviam diariamente um intenso ritmo de atividades escolares, a semente do cinema como vivência de lazer significou um momento de descontração e alegria, como se observa nas palavras de Solo M.D.N. (2008): “À noite ocorria o „Cineaj‟ (Cinema na EAJ) de forma bem descontraída e também nos fins de semana, sendo muito bem aceito pelas pessoas, visto que elas reclamavam que não tinham o que fazer nas horas vagas”.

Promovendo o cinema como semente do lazer, vimos que os filmes, a diversidade das histórias, dos dilemas humanos e os diferentes contextos de vida propiciaram a ampliação dos horizontes de cada participante propiciando o ressignificado de suas vidas e do seu sentimento em relação do contexto escolar. Com os filmes, pode-se viver a reflexividade de cada um na sua dimensão histórica, já que estabelecidas relações entre a identidade dos personagens e a das pessoas com as quais se convive: os colegas da moradia estudantil e os demais colegas de sala de aula. Os residentes relacionavam os fatos narrados nos filmes a situações vividas por eles junto a sua família e aos amigos de quarto, bem como refletiam sobre situações representadas que eles não desejavam que fizessem parte de sua trajetória, como o envolvimento com drogas ou com o tráfico delas.

Nesse sentido, os redirecionamentos e a construção de projetos para a vida fora da escola levaram em conta os propósitos baseados na aprendizagem das vivências do cinema, tornando-se, por vezes, um momento de fruição no mundo imaginário construído pelo estudante residente.

Os estímulos visuais provocados pelos filmes contribuíram para que os estudantes se reconhecessem nos papéis narrados nas histórias e exibidos na tela, impulsionando-os a uma autoconectividade marcada pela introspecção e pela subjetividade. Esses estímulos visuais faziam aflorar sentimentos e proporcionavam envolvimento afetivo com as histórias de vida fictícias, como revela o Solo M.D.N. (2008): “Os filmes nos proporcionaram alegrias com o final feliz, ou até mesmo tristeza, quando algum casal não acabava junto”.

Nesse depoimento, observamos que os filmes fizeram emergir diferentes sentimentos nos sujeitos, possibilitando a cada participante um reconhecimento de si mesmo e novas aprendizagens de maneira singular. Aqui, o despertar se expressa com criatividade e se expande para a ludicidade e, sobretudo, para a sensibilidade. No cinema, aprende-se a ouvir as histórias que são contadas, a expressar pontos de vista sobre as circunstâncias mostradas, a relacionar e interpretar imagens, a identificar nelas o que de expressivo existe e o que pode ser trazido à vida real.

Melo (2004) trata dessa questão com muita competência quando afirma a importância de se compreender a inserção do cinema no âmbito de uma sociedade contemporânea, que valoriza os estímulos visuais, podendo se tornar um rico instrumento didático da imagem na educação e possibilitar ao sujeito uma aprendizagem significativa na autoformação humanescente para a vida.

As aproximações com o mundo imaginário, virtual, possibilitam que o estudante ao entrar em contato com o sonho do outro tendo em vista sonhar o próprio sonho, entenda melhor outras linguagens e realidades, situando-se nessas realidades, bem como criando vínculos afetivos ao sentir parte de algo maior e mais complexo. Nesse sentido, observa-se que a sensibilidade advinda das percepções sensoriais de cada sujeito podem ser expressas corporalmente, revelando sua subjetividade emocional. Para Damásio (2004, p.99), “os sentimentos não são de todo uma percepção passiva, um relâmpago que desaparece da nossa vida”. Os sentimentos de alegria ou de tristeza, expressos pelo estudante após uma sessão de cinema “[...] traduzem o estado da vida na linguagem do espírito” (DAMÁSIO, 2004, p.91).

Esses sentimentos e impressões foram observados e registrados nos cenários construídos no jogo de areia. Os estudantes liberaram sua criatividade para expressar os melhores sentimentos neles provocados pelos filmes a que assistiam, conforme mostra a

descrição abaixo: “[...] os bancos menores é a nossa sala de estar, onde nos reunimos para assistir TV; representam também o cinema improvisado da EAJ. Lá nos sentimos felizes assistindo ótimos filmes (SOLO A.A.C., 2008)”.

Esse depoimento enfatiza a ideia de “que todas as ações humanas estão fundadas no emocional, independente do espaço em que surgem e que a qualidade de nossas ações depende da qualidade das emoções subjacentes” (MORAES, 2004 p.16).

Assim, a semente do cinema como vivência do lazer apresentou tanto os valores sociais como os intelectuais, pois, à medida que os estudantes se reuniam com os amigos para assistir aos filmes, abriam-se para a construção de novos conhecimentos, permeados pelos saberes transdisciplinares dos filmes, com seus diferentes gêneros e enredos. Como afirma Melo (2003, p.70), “o lazer é um campo multidisciplinar e devem ser encaminhadas atividades ligadas aos mais diversos campos possíveis, às mais diversas „linguagens‟". Corroborando esse significado do filme na perspectiva interdisciplinar, Moraes e La Torre (2004, p. 82) afirmam que ele “tem efeito integrador, não deixa de ser um relato, portanto, as mensagens chegam através de diferentes linguagens como a palavra, a música, o movimento, o relato e certamente a imagem.”

Todas essas formas de o indivíduo se comunicar consigo próprio e com o mundo contribuem para a formação de sua personalidade autotélica, o que evidencia o princípio da autotelia na perspectiva ludopoiética do Ser. Compreendendo esse movimento do indivíduo como um ser total, uno em seu sentipensar, os educadores Moraes e La Torre (2004, p. 82) afirmam:

O filme estimula todo o cérebro e um bom filme que faz pensar, que comporta valores, que cria dilemas, tem um potencial formativo muito superior a outros sistemas de informação se o utilizarmos como estratégia didática interativa. Pelo que transmite, pelo que sugere e pelo que faz sentir e pensar.

A semente do cinema na escola possibilitou uma experiencialidade lúdica que impulsionou o Ser para a sua autoformação capaz de estimular sua imaginação criativa, sua sensibilidade. Essa semente que surgiu como uma proposta de lazer passou a ser corporalizada no dia-a-dia dos residentes, melhorando a qualidade das relações intra e interpessoais daqueles adolescentes que estão em processo de formação da personalidade,

encaminhando-se em direção às escolhas pessoais e a sua consequente emancipação, contribuindo para o exercício da cidadania democrática.

Essa semente, como vivência de lazer, foi capaz de provocar prazer e alegria fazendo parte do processo da autoformação dos envolvidos, o que pode ser conquistado pelas novas atitudes e pelos novos valores adotados pelos residentes, estimulando a imaginação criativa, os diferentes sentidos, aguçando a reflexão crítica e fazendo os adolescentes refletirem sobre de si mesmos em interação com os outros colegas e com o mundo.

Dessa forma, no lugar do sono tivemos emoção; do tédio a transformação; da preguiça a disposição; da fofoca a imaginação; da competição o companheirismo; do autoritarismo a democracia; do ócio, uma atividade autoformativa, significativa: como lazer.

No documento Festa na escola e a autopoiese do lazer (páginas 138-142)