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2 BÍBLIA E LITERATURA: A ESCRITURA REESCRITA

2.2 A Bíblia e os escritores

Eu creio na teologia como literatura fantástica. É a perfeição do gênero.

Jorge Luis Borges

A irônica frase de Jorge Luis Borges acerca da doutrina e do estudo de interpretação e conhecimento da Bíblia espelha as relações paradoxais entre os textos do sagrado e a literatura, por conseguinte, entre os escritores e a Bíblia. Borges, ele mesmo um grande leitor e intérprete dos textos sagrados, se utilizou destes como poucos escritores em sua produção. Segundo a pesquisadora Edna Aizenberg, em Borges “A Bíblia é o ponto de partida de tudo”,170

frase que dá título ao artigo em que a autora reflete sobre a importância da Bíblia na formação e na estrutura da obra do escritor argentino. Aizenberg aponta a apropriação que o escritor faz dos aspectos textuais, filosóficos e, sobretudo, do método de interpretação da Cabala e da doutrina do Espírito Santo: “Simples formação sintática, ou não, o certo é que a terceira ofuscada pessoa da enredada trindade é o reconhecido autor das Escrituras.”171 Interessa a Borges a inspiração do espírito aos escribas, os secretários e interpretadores das Escrituras, a qual coaduna-se com seu interesse pelo ofício dos cabalistas: a busca incessante pela palavra de origem, a reorganização do enigma de Deus. Rearranjar as letras, as palavras, os textos para desvelar o idioma divino é a tarefa dos cabalistas e Borges tomou essa prática como o princípio estético de sua literatura. Edna Aizenberg acrescenta: “O que mais impressiona a Borges nas

170 AIZENBERG, Edna. La Bíblia es el punto de partida de todo. In: AIZENBERG, Edna. El tejedor del Aleph:

Bíblia, Kábala y judaísmo em Borges. Madrid: Altalena Editores, 1986. p. 70-73. Todas as traduções de obras não

publicadas em português são de minha autoria.

171 BORGES, Jorge Luis. Uma vindicação da Cabala. In: BORGES, Jorge Luis. Discussão. Trad. Cláudio Fornari. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. p. 28.

Escrituras não é a visão tradicional do escritor como criador, mas como amanuense; não como inventor, mas como transmissor de algo que vem de fora dele, de mais além. ”172

O escritor como amanuense, copista, redator; como escriba, cabalista. A sofisticada leitura que Borges é em si a composição uma teoria da escrita e da literatura, uma antecipação, muito própria das teorias da intertextualidade, da autoria e da originalidade. Sua ficção autorreflexiva, enciclopédica, profundamente irônica e inquisitória, e a um só tempo concisa e plural, abraça o paradoxo bíblico, o labiríntico e o universal, não se exime de cultivar a ambiguidade que se instala entre o sagrado e o profano, entre a leitura secular e a interpretação canônica.

Os escritores e os textos sagrados sempre estiveram neste limiar, entre o individual e subjetivo da literatura e o coletivo e dogmático do sagrado. O sagrado é a premissa de uma visão unificadora e totalizante do mundo, é instância que se quer como resposta para o todo. A literatura procura o difuso, o ambíguo, o múltiplo, produz mais dúvidas e incertezas. Os escritores intensificaram essas tensões ao retomar as Escrituras como ruptura ou como adesão, como esteio ou paradigma de seu entendimento do mundo. Sobre a tensa relação entre teologia e literatura, o pensador e teólogo alemão Karl-Josef Kuschel questiona:

Quem analisou os abismos da existência humana de maneira mais exata? Quem descreveu seu mistério de forma mais adequada? Quem terá lançado o olhar mais isento por trás das máscaras, papéis e poses da existência dos homens e das mulheres? Quem levou o ser humano a confrontar-se de maneira mais drástica consigo mesmo?173

O trecho acima vê claramente uma disputa por valoração entre as duas instâncias. Qual seria a melhor para interpretar o mundo? Haveria mesmo uma separação indissociável que estabeleceria o confronto? Uma leitura poderia contaminar a outra em uma “falsa estetização da religião” ou em uma “sacralização da arte”? Esse conflito se insinua desde sempre na história da literatura e mesmo da religião. Mas o fato é que uma se apropriou do veículo da outra para expandir seus domínios. Em grande parte, a divulgação da fé utilizou a arte (pictórica, dramática, escultural, poética, musical etc.) para espalhar sua mensagem. Por sua vez, a

172 AIZENBERG, 1986, p. 81. “Lo que más impresiona a Borges de las Escrituras es la visión tradicional del escritor no como creador, sino como amanuense; no como inventor, sino como transmisor de algo que viene de fuera de él, de mas allá.”

173 KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as escrituras: retratos teológico-literários. São Paulo: Loyola, 1999. p. 228.

literatura dedicou-se, em seus primórdios, sobretudo à hagiografia: pois a filologia já nos mostrou que alguns dos primeiros textos das línguas neolatinas eram escritos eclesiásticos, como a peça francesa “A canção de Eulália”.174 Portanto, o paradoxo entre as Escrituras e os

escritores deriva da origem e permanece desde sempre. A diversidade das abordagens literárias dos livros canônicos espelha a longa tradição deste diálogo. Será na modernidade, com o acaso do surgimento e evolução das ciências humanas e sociais, que o conflito entre arte e fé se acentuará, mas também quando surgirão novas formas de adesão e adequação estéticas e filosóficas.

Algumas das obras mais importantes da literatura ocidental são os frutos explícitos desse difícil diálogo, como é o caso de Moby Dick, ou, a Baleia, de Herman Melville,175 e sua longa genealogia de personagens de nomes bíblicos, com alusões aos livros de Jonas, Isaias, Jó e a recriação do mito do Leviatã.

Entre os escritores da modernidade, destacam-se as narrativas do tcheco Franz Kafka, que ao recriar a parábola bíblica forjou alguns dos textos mais contundentes sobre a miséria humana e a impossibilidade de sentido e transcendência. Esse niilismo atravessa toda a sua escrita, da qual um exemplo famoso é o conto “Diante da lei”,176 uma história narrada por um

dos personagens do romance O processo,177 que o escritor publicou posteriormente como narrativa independente. Segundo o escritor e tradutor Modesto Carone, “a parábola [...] é o centro nervoso do romance O processo e da ficção de Franz Kafka, marcada por paradoxos”.178 Um conto “sem moral”, diverso das parábolas bíblicas, “Diante da lei” suprime a lição da história ou não aponta para qualquer saída ou resposta. O ensaísta Jacó Guinsburg, citado por Élcio Loureiro Cornelsen em artigo sobre Kafka, fala em “parábolas ocas”,179 ou melhor, afirma

que a parábola kafkiana é a configuração modelar de sua literatura do desespero. É a negativa da exegese bíblica, à qual Kafka dedicou inúmeras digressões em seus diários. Sobre essas reflexões, Karl-Josef Kuschel aponta:

174 AUERBACH, Eric. Introdução aos estudos literários. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1970. p. 109. 175 MELVILLE, Herman. Moby Dick, ou, a baleia. Trad. Alexandre B. de Souza, Irene Hirsch e Bruno Gambarotto. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

176 KAFKA, Franz. Diante da Lei. In: Essencial Franz Kafka. Seleção e trad. Modesto Carone. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2011. p. 105-107.

177 KAFKA, Franz. O Processo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 178 CARONE, Modesto. Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 82.

179 Cornelsen, Élcio Loureiro. A espacialização em Franz Kafka e sua transcriação para o teatro. In: BENN-IBLER, Veronika (Org.). Interfaces culturais Brasil-Alemanha. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2006. p. 163-168.

Nenhum dos grandes escritores da literatura alemão do século XX relacionou tão diretamente consigo mesmo os ensinamentos bíblicos sobre a criação, o pecado, a expulsão do paraíso e a lei; para nenhum deles a leitura da Bíblia se tornou um processo tão torturante de esclarecimento sobre si mesmo.180

Uma afirmativa no mínimo polêmica diante de outros escritores modernos alemães, como Thomas Mann, que dedicou quatro volumes para recriar a história de José do Egito na tetralogia José e seus irmãos,181 publicados entre 1933 e 1943, ou mesmo Alfred Döblin, autor de Berlin Alexanderplatz,182 de 1929, um romance que traz um painel da sociedade alemã entre as duas guerras mundiais e que se vale da montagem de cenários e passagens baseados na Bíblia para construir metaforicamente o seu enredo. Porém, poucos discordam do fato de que Franz Kafka talvez seja o mais influente autor em língua alemã do século XX; por consequência, suas relações com o texto bíblico e qualquer outra tradição escrita tendem a ser exacerbadas pela contundência de sua literatura. Sobre essa marca que o escritor tcheco deixou na literatura ocidental, poucos críticos foram mais precisos que Jorge Luís Borges. Em seu pequeno, mas definitivo ensaio sobre o autor, ele declara: “o fato que é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro.”183 Kafka modificou e modifica, como Borges, nossa percepção dos textos, inclusive da Bíblia.

A literatura brasileira, por sua vez, comporta uma longa tradição de escritores que se utilizaram dos textos bíblicos como extrato de seus trabalhos. Os intertextos transparecem em obras como O Guarani,184 de José de Alencar, publicado em 1857: a sequência final é forjada em imagens apocalípticas da grande enchente que encerra o romance, alusões ao mito de Adão e Eva nas figuras de Ceci e Peri navegando para seu destino em um tronco de palmeira. Destaca- se, também, Canaã (1902),185 de Graça Aranha, que revisa a profecia da Terra Prometida pelo olhar de um imigrante recém-chegado ao Brasil. Poetas modernos como Murilo Mendes, Cecília Meireles e Jorge de Lima dedicaram grande parte de sua obra a recriações do texto sagrado.

180 KUSCHEL, 1999, p. 58.

181 MANN, Thomas. José e seus irmãos. Trad Agenor Soares de Moura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. 182 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz. Trad. Irene Aron. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

183 BORGES, Jorge Luis. Kafka e seus precursores. In: BORGES, Jorge Luis. Outras inquisições. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 130.

184 ALENCAR, José de. O Guarani. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999. 185 ARANHA, Graça. Canaã. São Paulo: Ática, 1998.

Machado de Assis manteve um constante diálogo com a Bíblia. O exemplo mais visível é o seu grande romance Esaú e Jacó,186 publicado em 1878. Os intertextos bíblicos na obra do “Bruxo do Cosme Velho” foram relacionados pela pesquisadora Eliane Ferreira nos ensaios“O livro de cabeceira de Machado de Assis: o Eclesiastes”187e “Machado de Assis e o arquivo das sagradas escrituras”.188

O escritor carioca usa as escrituras como esteio, paradigma e paradoxo para configurar sua prosa irônica e pessimista. O estrato bíblico aparece em prefácios, poemas, epígrafes, digressões e contos que reconfiguram as narrativas bíblicas, numa relação que, longe de ser “anômala” (como aponta Lyslei Nascimento189), é simbiótica. Machado se utiliza do pastiche,

da paródia e mesmo da paráfrase nesses trabalhos, sempre filtrados por seu humor ácido e único. O escritor traduz de forma inequívoca as desconcertantes e tantas vezes patéticas relações humanas.

É por essas estratégias escriturais da tradição machadiana que se filiam os seus seguidores na literatura brasileira, ou seja, deslocar o texto sagrado para desvelar e expor as misérias e fraquezas do humano, em particular do homem brasileiro. É neste ponto que a ficção bíblica de Moacyr Scliar se aproxima e se encontra com a de Machado de Assis, a saber: pelo humor e pela ironia.

Para tentar entender como os textos sagrados permitem essas apropriações, é necessário discorrer sobre as origens desses textos e sobre como acontece o seu diálogo com a literatura.

186 ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Esaú e Jacó. In: Obra Completa: volume 1. Afrânio Coutinho (Org.). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 945-1093.

187 FERREIRA, Eliane Fernanda Cunha. O livro de cabeceira de Machado de Assis: o Eclesiastes. Dubito Ergo

Sun: Caderno de Ficção e Filosofia, Rio de Janeiro, 2007. Disponível em:

<http://páginas.terra.com.br./arte/dubitoergosun/at42.htm>. Acesso em: 20 nov. 2013.

188 FERREIRA, Eliane Fernanda Cunha. Machado de Assis e o arquivo das sagradas escrituras. Anais do IX

Congresso Internacional ABRALIC. Porto Alegre: UFRS, 2004.

189 NASCIMENTO, Lyslei. Bestas apocalípticas e enciclopédicas: uma advertência em Papéis Avulsos de Machado de Assis. In: COHM, Carlos; NASCIMENTO, Lyslei (Org.). A Bíblia e suas traduções. São Paulo: Humanitas, 2009. p. 167.