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Ironia e literatura: reconhecendo as arestas

3 IRONIA E HUMOR NA LITERATURA

3.1 Ironia e literatura: reconhecendo as arestas

Assim o conceito de ironia, a qualquer tempo, é comparável a um barco ancorado que o vento e a corrente, forças variáveis e constantes, arrastam para longe de seu ancoradouro.

D. C. Muecke em A ironia e o irônico

Diferentemente da metáfora e da alegoria, que necessitam de uma suplementação similar de sentido, a ironia possui uma aresta avaliadora e consegue provocar respostas emocionais dos que a "pegam" e dos que não pegam, assim como seus alvos e daqueles que algumas pessoas chamam

de suas “vítimas”.

Linda Hutcheon em Teoria e política da ironia

A ironia e o humor são dicções muito próprias aos textos do escritor Moacyr Scliar; características indissociáveis à sua prosa, elas foram observadas já nas primeiras leituras de suas publicações. O crítico paranaense Wilson Martins, por exemplo, em resenha publicada originalmente no jornal O Estado de São Paulo, em 1970, e reproduzida na contracapa da edição do livro de 1978, já destacava este relevo no estilo do autor nos contos de O carnaval dos

animais:

Moacyr Scliar pratica largamente o que se convencionou a chamar de “humor judeu”, antes rangente que negro, e que se situa a meio caminho entre o

desespero e a ironia. É uma linha inexistente na literatura brasileira e que bastaria para situá-lo num lugar à parte.256

O crítico destaca nos textos um humor e uma ironia à flor da pele, “rangente”, como diz. Essa mesma força foi destacada pelo ensaísta americano Malcolm Silverman, em seu estudo “A ironia na obra de Moacyr Scliar”,257 em que o brasilianista mapeia os registros dessa

dicção nos contos, novelas e romances publicados pelo escritor até 1976. Silverman vê a ironia como característica principal da prosa de Scliar, a qual em sua avaliação não se realiza com sutilezas, sendo antes “a ironia vibrante, intensa, própria de sua espécie particular de parábola contemporânea”.258 Assim, a ironia e o humor surgem como fatores preponderantes, que dão

coerência ao discurso do escritor. Acerca dessa configuração, o crítico reitera:

Em toda a obra, a ironia é o instrumento-chave do discurso do autor, o fator básico de coesão em seu mundo ficcional, e o maior responsável por sua crescente popularidade. [...] A ironia de Scliar é matizada por um humor às vezes pronunciado, mas geralmente seco e incidental; humor mais como um meio do que um fim, presente mais para reforçar suas tiradas agudas e irônicas do que para neutralizá-las.259

A força desses elementos do discurso irá permear a estratégia ficcional de Scliar, não apenas como elemento de estilo, mas como um posicionamento analítico, autorreflexivo e mesmo ideológico diante das estruturas sociais, culturais, políticas, éticas e estéticas que perpassam seus temas. A ironia e o humor são o balizamento crítico que estrutura as fronteiras de sua escritura. Mas o registro desses elementos não explica seu sucesso como realização textual. Então, como isso acontece? Para tentar responder essa questão, devemos começar com duas perguntas básicas: o que é a ironia? O que é o humor?

A ironia é um dos conceitos ou elementos do discurso mais estudados pelas ciências humanas, mas nem por isso esgotado nas análises de seus efeitos e de seu alcance. De forma geral, as definições vernaculares apontam para a origem grega do termo, como é possível perceber no Dicionário de termos literários de Massaud Moisés:

Grego eironeia, dissimulação, interrogação dissimulada.

256 MARTINS, Wilson. Contracapa. In: SCLIAR, Moacyr. O carnaval dos animais. Porto Alegre: Movimento, 1978.

257 SILVERMAN, Malcolm. A ironia na obra de Moacyr Scliar. Trad. Ana Teresa Jardim Reynaud. In: Moderna

Ficção Brasileira. Trad. João Guilherme Linke. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. p. 170-189.

258 SILVERMAN, 1982, p. 170. 259 SILVERMAN, 1982, p. 173.

Vário campo semântico abrange o vocábulo “ironia”. Na origem, designava a arte de interrogar, com vistas a provocar a “maiêutica”, ou o surgimento das

ideias. [...]

Modernamente o termo assumiu o indeciso contorno de figura de pensamento e de palavra. De modo genérico, a ironia consiste em dizer o contrário do que se pensa, mas dando-o a entender. Estabelece um contraste entre o modo de enunciar o pensamento e seu conteúdo. De onde aproximar-se da antífrase. A ironia funciona, pois, como processo de aproximação de dois pensamentos, e situa-se no limite entre duas realidades, e é precisamente a noção de balanço, de sustentação num limiar, a sua característica básica, do ponto de vista de sua estrutura. [...]260

Massaud Moisés põe em relevo a noção mais conhecida para caracterizar a ironia, ou seja, aquilo que diz o “não dito”, aquilo que afirma o seu “sentido ou expressão contrários”, de onde deriva o efeito de dissimulação e escamoteamento. Como uma figura do discurso, a ironia é considerada um tropo, que no campo da Retórica “consiste numa translação de sentido de uma palavra ou expressão, de modo que passa a ser empregada em sentido diverso do que lhe é próprio”. Portanto, temos a conhecida oposição entre “o sentido literal e o sentido figurado”. Sobre essa questão, a linguista e crítica Beth Brait afirma, com muita propriedade, que a natureza do discurso irônico deriva justamente dessa oposição:

[...] é o aspecto que centraliza o eixo produtor da ironia, ou seja, a tensão

existente entre dois polos: o do “sentido literal” e o do “sentido figurado”.

Numa certa medida, essa questão está diretamente ligada à ideia da ironia que pretende significar o contrário do que é dito literal ou explicitamente, e, nessa perspectiva, também ligada à definição de ironia como antífrase.261

A pesquisadora lembra, retomando Nortrop Frye, que o “sentido literal” depende do contexto, “não o descritivo, o histórico, o signo em estado de dicionário, mas o que está atualizado.”262 Na significação do irônico, o sentido depende de um contexto e não da simples organização formal dos signos na frase, depende do uso que os agentes do discurso fazem destes signos. E como assevera Beth Brait:

E parece ser essa uma das possibilidades de flagrar a ironia: na tensão entre

“literal” e “figurado”. O que está atualizado, em presença, não pode ser

compreendido a não ser que se leve em consideração uma ausência que de alguma forma ali ressoa por vias de uma contextualização que sinaliza a confluência presença-ausência.263

260 MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1982. p. 294-295. 261 BRAIT, Beth. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas: Ed. Unicamp, 2008. p. 96. 262 BRAIT, 2008, p. 99.

Então, a realização do discurso irônico se dá no contexto da enunciação que, por sua vez, se estabelece no diálogo entre os agentes do discurso, enunciador e enunciatário.

Quanto à tipificação da ironia, no âmbito da literatura poder-se-ão encontrar, como em todo conceito de natureza fluida (como o é a própria literatura), várias taxonomias que versam sobre a natureza do conceito. D. C. Muecke, crítico americano, divide ironia em duas categorias: a ironia observável e a ironia verbal ou instrumental. No primeiro caso, temos o que o autor classifica como a ironia das “coisas vistas ou apresentadas como irônicas’”264 a ironia do ladrão roubado”, ou seja, uma situação observada como irônica e que prescinde do ironista para acontecer. Como se fosse uma ironia do destino (a chuva que chega quando os romeiros já se tornaram retirantes). Muecke avança em sua reflexão ao retomar o pensamento do poeta e filósofo alemão Friedrich Schlegel, e afirma que “para Schlegel, a situação básica metafisicamente irônica do homem é que ele é um ser finito que luta para compreender uma realidade infinita, portanto, incompreensível”.265 Assim, essa cena de ironia seria independente

de um produtor: ela acontece no devir ou no porvir das situações, e torna-se irônica quando interpretada, mediante a percepção de um leitor. Na ironia verbal ou instrumental, ao contrário, há sempre um ironista, um produtor que coloca em cena o interdito da ironia, que diz uma coisa querendo insinuar outra, que provoca a dissimulação de um sentido oculto em um registro aparente. Como se dá no registro da literatura.

Os estudos literários dedicados à avaliação do fenômeno da ironia na produção textual perdem-se na vasta produção que o tema gerou. A crítica canadense Linda Hutcheon pergunta- se, logo na introdução de seu livro sobre o tema: “por que o mundo precisaria de mais um livro sobre ironia?”266 Talvez o fenômeno fluido e maleável da significação irônica não se contenha

em fórmulas e formas analíticas por ser ele, justamente, uma instância da língua e da linguagem e, como tal, em constante transformação. A crítica justifica sua pesquisa, por ser a ironia “um modo de expressão problemático”267 ainda não resolvido pelas ciências humanas. E qual o

problema da ironia? Como seria possível situá-la no contexto do discurso, sobretudo no discurso da literatura? A pesquisadora Lélia Parreira Duarte oferece uma excelente apreciação a essas questões:

264 MUECKE, D. C. A ironia e o irônico. São Paulo: Perspectiva, 1995. p. 38. 265 MUECKE, 1995, p. 39.

266 HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Trad. Júlio Jeha. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. p. 15. 267 HUTCHEON, 2000, p. 15.

A ironia, afirmação de um indivíduo que reconhece a natureza intersubjetiva de sua individualidade, serve dessa forma à literatura, quando esta busca um leitor que não seja passivo, mas atento e participante, capaz de perceber que a linguagem não tem significados fixos e que o texto lhe pode apresentar armadilhas e jogos de enganos dos quais deverá, eventualmente, participar.268

A pesquisadora destaca alguns aspectos básicos que caracterizam a ironia: a ironia é um elemento do discurso (texto); é uma afirmação de uma vontade individual do ironista (autor); busca um interpretador (leitor) que se enrede nas suas tramas e perceba suas pistas. Assim, ironista, discurso e interpretador formam as três partes desse diálogo no qual a ironia “acontece”. Porém, todo tropo discursivos e articula nessa fórmula (como é o caso da metáfora ou da sinédoque). Então, o que diferencia a ironia dos outros tropos discursivos, o que garante sua especificidade? Linda Hutcheon afirma que “a cena da ironia envolve relações de poder baseadas em relações de comunicação,”269 sendo portanto política e duplamente ideológica, ou, nas palavras da autora, “transideológica”. O que provoca isso é o trânsito de crenças, o diálogo dos atores da “cena da ironia”, cujo alcance elocutório vai muito além do simples processo de enunciação. Aquilo que a autora chama de “aresta avaliadora, ou aresta crítica” da ironia, está nas inter-relações discursivas: uma consciência que se quer produtora e uma consciência que se quer interpretativa, duas facetas do ato que faz a ironia acontecer. A pesquisadora confere à ironia certo caráter emotivo (superioridade, desprezo, raiva, decepção, humilhação, expectativa, conflito etc.) tanto por parte do ironista quanto do interpretador, indo na contramão daqueles que defendem o ato irônico como uma atividade puramente intelectual. Ou, como assevera a própria Linda Hutcheon:

Diferentemente da metáfora ou metonímia, a ironia tem arestas; diferentemente da incongruência ou justaposição, a ironia consegue deixar as pessoas irritadas; diferentemente do paradoxo, a ironia decididamente tem os nervos à flor da pele. Enquanto pode vir a existir através do jogo semântico decisório entre o declarado e o não declarado, a ironia é um modo de discurso

que tem “peso”, no sentido de ser assimétrica, desequilibrada em favor do

silencioso e do não dito. O favorecimento ocorre em parte através do que é implicado sobre a atitude do ironista e do interpretador: a ironia envolve a atribuição de uma atitude avaliadora, até mesmo julgadora e é aí que a dimensão emotiva [...] também entra – para o desespero da maior parte do discurso crítico e da maioria dos críticos.270

268 DUARTE, Lélia Parreira. Ironia e humor na literatura. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2006. p. 19. 269 HUTCHEON, 2000, p. 17.

O trecho acima resume algumas das ideias principais da pesquisadora, que procura diferenciar a ironia de outras figuras de linguagem e enfatiza suas atribuições contextuais. Para Hutcheon, a ironia só acontece no contexto transideológico no qual é enunciada, pela atribuição de seus dois atores (ironista e interpretador), envolvidos ambos no jogo político e em atitudes críticas e emocionais.

Segundo Hutcheon, na ironia há sempre esse constituinte emocional. Nesse sentido, a autora propõe até mesmo uma escala de funções: considera, inicialmente, duas funções primordiais, quais sejam uma função semântica e outra pragmática. A primeira estabelece o contraste tenso dos sentidos, enquanto a segunda é avaliadora. Outras funções da ironia foram ainda relacionadas por ela, na ordem em que decresce a carga emotiva do envolvimento, com destaque para algumas das mais relevantes ao discurso literário. Temos, então, a função “agregadora”, de maior carga afetiva, e que seria utilizada para reforçar comunidades “amigáveis”, que “pegam” o pressuposto irônico e, em contrapartida, isolam os que estão fora, geralmente os alvos, que não “pegam” a ironia construída. Com carga afetiva mínima, teríamos a “função lúdica”, marcada por pressupostos jocosos e humorísticos; a “função complicadora”, com pressupostos complexos e ambíguos e, ainda com menor carga emotiva, a “função reforçadora”, que corresponde à ironia utilizada para reforçar ou enfatizar uma situação, o que seria um uso preciso da função.

A ironia acontece, portanto, nos dois polos das funções elencadas pela ensaísta. Como no jogo político, a ironia expressa uma ideologia em seu polo mais aparente. O ironista é, nesse extremo, uma consciência julgadora; seu alvo deve ser subvertido, humilhado, convertido – nesse contexto, o ironista é um moralista que lança sua crítica para consertar um mundo errado. No outro polo, a ironia acontece como um diálogo do ironista como o interpretador; seu desejo é desestabilizar, tornar ambíguo o ideário sedimentado, brincar com a seriedade do mundo, à qual subverte pelo jogo com os sentidos e pelo humor.

No primeiro caso, temos o que na literatura se define como a ironia retórica, como explica Lélia Parreira Duarte:

A ironia retórica corresponde ao primeiro grau de evidência da ironia, o da ironia coberta, no dizer de Wayne Booth. Trata-se daquele nível em que ela pretende ser compreendida como tal, isto é: a mensagem deve ser percebida em sentido contrário, antifrásico, caso em que a tática de ação pode ser tanto

a simulação quanto a dissimulação. Embora o sentido pretendido não seja diretamente expresso, uma verdade é afirmada, há uma mensagem a compreender, o que pode significar uma ideologia a exaltar ou defender.271

A ironia retórica se expressa nos discursos mais fortemente ideológicos que visam solapar o conteúdo ironizado, pondo em relevo um ideário político, uma verdade única, buscando fixar um sentido diferente em relação ao sentido expresso.

No segundo caso, temos a função lúdica e a função complicadora da ironia, que denotam aquilo que Lélia Parreira Duarte descreve como “ironia humoresque”. Dispersa nas sutilezas da enunciação, é uma ironia vacilante, que cultua a ambiguidade das incertezas e o alívio crítico do humor, ou, como define a pesquisadora:

[...] a intenção da ironia humoresque ou de segundo grau não é dizer o oposto ou simplesmente dizer algo sem realmente dizê-lo. É, ao contrário, manter ambiguidade e demonstrar a impossibilidade de estabelecimento de um sentido claro e definitivo, pois o texto com essa ironia se configura como código evanescente e lugar de passagem. [...]

Essa ironia deixa assim em dúvida perene aquele leitor que procura um sentido final do texto, obstinando-se em decifrar as suas incongruências, sem atentar para o caráter lúdico, fluido e instável da linguagem que o constitui.

Celestino Veja (1967) define este tipo de ironia como humor, forma de sabedoria situada entre o riso e o pranto, equilíbrio entre comédia e tragédia, dado o saber paradoxal do humorista, que vê simultaneamente o verso e o reverso das situações.272

Esse longo trecho é uma definição precisa do “jogo” praticado pelos grandes ironistas da literatura, entre os quais incluo Moacyr Scliar. O que interessa principalmente a eles são as questões, muito mais que qualquer resposta final, pela consciência que demonstram da impossibilidade das certezas definitivas. É uma ironia que espelha o pessimismo dos autores, porém se afasta da amargura, na busca de uma leveza que ocorra na concretização do humor no discurso irônico, o qual atenua a dor e torna suportável a única certeza que persiste: a da finitude. No entanto, é preciso ressaltar que ironia e humor, embora aparentemente indissociáveis, não são a mesma coisa, como pontua Linda Hutcheon:

Nem todas ironias são divertidas [...] – embora algumas sejam. Nem todo humor é irônico – embora algum seja. No entanto, ambos dependem de relações de poder complexas e ambos dependem do contexto social e conjuntural para que possam realmente existir [...]. Mas, na verdade, existem

271 DUARTE, 2006, p. 31.

teorias do humor como incongruência, depreciação e liberação que encontram eco naqueles elementos da ironia que sua política coloca em primeiro plano [...]. A dimensão afetiva da ironia (sua ligação com medo, desconforto, superioridade, humilhação e controle) e suas dimensões formais (justaposição e incompatibilidade) aparecem também nas teorias do humor [...].273

Nesse trecho, Hutcheon deixa clara a diferença entre humor e ironia, ou seja, mostra que nem toda ironia é engraçada e que nem todo humor é calcado pelo viés da ironia, do interdito, do sentido figurado. Entretanto, nessa mesma passagem a pesquisadora declara que, mesmo se tratando de instâncias diferentes, ambos atuam na mesma dimensão do discurso e envolvem atores semelhantes, o ironista (humorista) e o interpretador. Portanto, são estratégias que se valem das mesmas ferramentas e de percursos, por vezes, idênticos. Dentro da linha de raciocínio deste capítulo, será necessário então responder à questão: o que seria mesmo o humor e, mais especificamente, o humor na literatura?