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2 BÍBLIA E LITERATURA: A ESCRITURA REESCRITA

2.1 O narrador bíblico e o escriba

E tu, Esdras, segundo a sabedoria de teu Deus, que tens em mãos, estabelecerá escribas e juízes que administrem a justiça para todo o povo [...], para todos os que conhecem a Lei de teu Deus. E deverás ensiná-la a quem não a conhece.

Esdras 7:25

Jeremias tomou o outro rolo e o deu ao escriba Baruc, filho de Nerias, que nele escreveu, ditadas por Jeremias, todas as palavras do livro que Joaquim, rei de Judá, tinha queimado. E ainda foram acrescentadas muitas palavras como estas.

Jeremias 36:32

Os antigos cabalistas e os sábios hebreus contam que Deus criou o universo pela potência cosmogônica das letras e das palavras, anteriores, como o criador, à criação. Elias Lipiner, filólogo e ensaísta, especialista em hebraico registra: “[...] é a leitura das letras segundo sua qualidade de hieróglifos da cosmologia: os signos que modernamente se combinam no texto para formar vocábulos tem-se combinado, nos albores do mundo, para formar o universo.”162

Na mística judaica, o Séfer Yetziráh, o Livro da Criação, ou o Livro da Formação, estabelece essa relação íntima entre criação, letra e palavra, a combinação desses elementos na formação do todo. O estudioso acrescenta, citando o Séfer Yetzirah:

Afirma o Autor no segundo capítulo: “As vinte e duas letras fundamentais,

Ele gravou-as, talhou-as, pesou-as, permutou-as e combinou-as a fim de desenhar por meio delas todas as formas das coisas já criadas, bem como das que ainda estavam por sê-lo.” Todo o Universo, segundo tal concepção, equivaleria a um livro escrito por meio das figuras espirituais das letras, cuja diversidade de formas geométricas explicaria até a diversidade das coisas. É o alfabeto desnudado de suas qualidades gráficas e fonéticas comuns para formar a escrita do universo.163

162 LIPINER, Elias. As letras do alfabeto na criação do universo: contribuição à pesquisa da natureza da linguagem. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 11.

Se as letras e as palavras criaram o universo e são anteriores ao próprio homem que delas depende para constituir-se e então, por inferência, ser o guardião das ferramentas da criação é ser o guardião da essência das coisas, do seu sentido, de sua significação. O escriba é o tradutor e o artesão da palavra divina, o intermediador da linguagem do criador e do entendimento da criação. O escriba é, por assim dizer, o amanuense de Deus.

Segundo o ensaísta Júlio Trebolle Barrera, a palavra escriba, do latim scriba, ae, é “o termo hebraico sôper (spr) e o grego grammateús (grámma) [e] designam a função de ‘secretário.’”164 Porém sua importância para a comunidade judaica vai muito além da simples

tarefa de transcrever, o estudioso Alan Uterman explica:

Os antigos mestres fariseus da TORÁ eram chamados escribas porque eram os guardiões do texto canônico da Bíblia, do qual contavam até as letras.

Muitas formas do texto são atribuídas ao tikum soferim (“correções dos escribas”), que pode se referir ou a mudanças no texto ou a regras quanto a

sua ortografia e interpretação.165

O escriba é o guardião da palavra, o editor do texto sagrado, responsável também por sua interpretação e correção; nesse sentido, a escrita é poder, e quem movimenta as letras divinas, moverá também o Deus, por ser o único a traduzir e grafar sua vontade.

O mais importante escriba da Bíblia teria sido Esdras, profeta do pós-exílio babilônico, que foi responsável pela reintrodução das Escrituras nas comunidades judaicas reunidas por Neemias para a reconstrução dos muros da Jerusalém devastada. Esdras seria também o primeiro escriba diretamente responsável pela compilação das Escrituras, reunidas na Torah (lei de Moisés), os Profetas (Neeviim) reunidos, posteriormente como os Kethuvim (os Escritos). Karen Armstrong explica que “[...] Esdras, começara a moldar uma nova disciplina baseada num texto sagrado. [...] A leitura de Esdras marca o início de um judaísmo clássico, uma religião interessada não meramente na recepção e salvaguarda, mas em sua constante reinterpretação.”166 Assim, Esdras, escriba bíblico e profeta, seria também um criador, um narrador bíblico?

164 BARRERA, Júlio Trebolle. A Bíblia Hebraica e a Bíblia Cristã: introdução à história da Bíblia. Trad. Ramiro Mincato. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 134.

165 UTERMAN, Alan. Dicionário judaico de lendas e tradições. Trad. Paulo Geiger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 92.

166 ARMSTRONG, Karen. A Bíblia: uma biografia. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p. 38-39.

A tradição bíblica explica que toda a palavra foi transmitida por Deus aos seus profetas e interlocutores, os narradores de Deus. Uma relação nem sempre pacífica, pois o peso de transmitir a palavra seria por demais doloroso aos profetas. O episódio exemplar deste conflito é a história do profeta Jonas, que instado a pregar contra a cidade de Nínive, fugiu e foi castigado. Jogado à deriva em um mar revolto, foi engolido por um grande peixe que o expeliu na praia de Nínive – os profetas bíblicos não podiam fugir ao seu destino. Temos ainda a dolorosa relação de Jeremias com sua missão profética. Em Jeremias 20:7, o profeta chora dolorosamente: “Tu me seduziste, Iahweh, e eu me deixei seduzir; tu te tornaste forte demais para mim, tu me dominaste. Sirvo de escárnio e zombaria todo dia, todos zombam de mim.”167 O desespero patente do profeta foi duramente interpretado pelo crítico Harold Bloom, que afirma: “Jeremias acusa Iahweh de violência sexual para consigo,”168 uma interpretação

deveras polêmica, não incomum nas leituras de Bloom, mas que chama a atenção para o peso e a importância de ser um narrador divino. Entretanto, Jeremias não escreveu seu relato, ditou. O seu compilador, secretário e escriba foi na verdade outro profeta, Baruc. Devemos, então, questionar: o quanto há de Baruc nas palavras de Jeremias? Ele mesmo foi autor de um livro profético. O profeta, aqui, se confunde e se funde, como em Esdras, com o narrador bíblico. Esse narrador se traduz na onisciência divina, não importando o foco narrativo que está configurado. Robert Alter assim explica a natureza do narrador bíblico:

Uma maneira fecunda de entender as histórias da Bíblia é vê-las como um experimento narrativo de um saber moral, espiritual e histórico, um experimento conduzido por meio de contrastes bem calculados entre o conhecimento limitado de vários personagens e a onisciência divina, representada discreta mas firmemente pelo narrador.169

O narrador e o escriba bíblico articulam, então, a chave da sabedoria divina e da interpretação daqueles textos. O narrador-escriba controla a escrita e a enunciação. É o “amanuense” festejado por Borges como tradutor e criador das Escrituras. O legado desta tradição de profeta e compilador (tradutor) se revelou na imensa fortuna literária que dela se originou. E foi dessa fonte inesgotável que o escritor gaúcho tantas vezes se serviu.

167 A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 1515.

168 BLOOM, Harold. Abaixo as verdades sagradas: poesia e crença desde a Bíblia até os nossos dias. Trad. Alípio Correa de França Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 25.

169 ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica. Trad. Vera Pereira. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 235.

Moacyr Scliar constituiu narradores-escribas como foco estrutural das suas narrativas bíblicas. Esses narradores irão promover o deslocamento do texto sagrado para as sendas da ficção e para suas novas possibilidades de significação. O escritor ensaia, nessas narrativas, uma reflexão sobre a natureza e a importância dessa palavra escrita (sagrada ou não) para sua criação ficcional, para toda a Escritura e para a literatura. Um exercício autorreflexivo e metaficcional, que põe em relevo a criação artística pela palavra. Assim, procura-se entender como o escritor gaúcho estabeleceu esse diálogo com a Bíblia, de modo que neste capítulo serão avaliadas as interações entre o discurso bíblico e a literatura.