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A biblioteca escolar e as literacias

do Programa Escolhas

9. A biblioteca escolar e as literacias

Margarida Toscano

Contexto

As tecnologias de informação e comunicação não cessam de introduzir nas sociedades profundas transformações, designadamente nos modos de acesso à informação e de produção do saber. A convergência entre tecnologias digi- tais, audiovisuais e as telecomunicações, assim como a natureza transversal e interativa das primeiras, criaram um novo ambiente cultural que dilui as fron- teiras e a identidade entre os clássicos sistemas de comunicação (televisão, telefone, computador, imprensa. . . ) e de significação (textuais, sonoros, grá- ficos, imagéticos), anteriormente situados em planos distintos e complemen- tares. Os mais recentes dispositivos de comunicação (smartphones, tablets, e-readers, smart tv, consolas de jogos, GPS. . . ) e as múltiplas redes de que a internet constitui o expoente maior, através dos quais temos acesso a todo o tipo de dados e de informações, constituem a face mais visível duma nova cultura híbrida, multimédia e hipermédia.

Esta revolução digital e eletrónica tem fortes implicações no ensino e aprendizagem, na organização e papel das bibliotecas escolares (e das bibli- otecas em geral), e coloca de modo premente a questão das literacias, enten- didas, genericamente, como condição para a compreensão, apropriação, uso e produção/criação de diferentes tipos de informação e linguagens, nos mais va- riados contextos. A própria leitura, que se vai deslocando para a Rede (World Wide Web), numa sequência descontínua e aberta misturando escrita, imagem e som, passou a exigir muito mais do que o domínio do código alfabético e dos protocolos de leitura que conduziam à compreensão do texto impresso. A escola e a biblioteca são chamadas a promover um conjunto de “novas lite- racias” ou “multiliteracias”, as quais envolvem um leque variado e dinâmico de saberes e capacidades que permita aos alunos tornarem-se competentes no acesso à Rede e aos seus conteúdos, na leitura de textos multimodais, na sua análise crítica, no uso de diferentes media, na interação comunicativa e na produção de conhecimento. Estas “novas literacias” são indispensáveis

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ao sucesso educativo, à aprendizagem ao longo da vida numa sociedade em mudança acelerada e ao exercício da cidadania e da participação democrática. A questão é tanto mais importante quanto constatamos que os jovens, pelo menos os que têm acesso às tecnologias, constituem uma espécie de “pelotão da frente” deste novo ambiente cultural e mediático. É neste que crescem e socializam, é neste que se desenrola boa parte da sua experiência quotidiana, a qual transita constantemente do plano físico dos lugares e da convivência direta para o plano da cultura virtual e da interação mediática, cada vez mais facilitada pelas redes sem fios e os dispositivos de comunicação móveis. No seio duma cultura convivial e mediática caraterizada, entre outros, pelo domí- nio da imagem e do tempo presente, pela fragmentação e a espetacularidade, pela velocidade e caráter instantâneo, os jovens tendem a acreditar que a in- formação e o conhecimento se encontram na rede à distância de um clique. O que significa que, apesar da destreza com que aparentemente manejam a tecnologia, as redes sociais e uma grande variedade de aplicações para fins comunicativos e de entretenimento, não possuem as competências cognitivas e críticas para o tratamento da informação, a construção do conhecimento e a sua própria construção como cidadãos numa sociedade democrática.

As literacias e o aprender com a Biblioteca Escolar

A partir dos pressupostos enunciados, a Rede de Bibliotecas Escolares (RBE) lançou, em 2012, um conjunto de padrões de aprendizagem intitulado Apren- der com a Biblioteca Escolar (AcBE) (Conde et al., 2012), que visa enquadrar o papel da biblioteca e orientar a ação dos professores bibliotecários tendo em vista “o desenvolvimento das literacias essenciais à aprendizagem e à for- mação dos alunos na sociedade do conhecimento” (Conde, s/d: 2). Enquanto espaço de informação e documentação também multimediático e em rede, a biblioteca escolar constitui um lugar por excelência para associar a leitura, a informação, a internet e os media ao trabalho de promoção das literacias. Um trabalho que pode ser realizado em contexto formal ou não formal, curricular ou extracurricular, através de uma estreita colaboração entre a biblioteca e os professores.

O documento, por enquanto apenas dirigido ao ensino pré-escolar e ao ensino básico, está estruturado em três grandes áreas: literacia da leitura, li- teracia dos media e literacia da informação. Esta divisão não impede o reco-

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nhecimento de estreitas relações de proximidade e complementaridade entre as três áreas, senão mesmo alguma contaminação.

Como referimos, a leitura, aprendizagem matricial e fundadora, tem-se transferido para a Rede, onde é suportada por textos híbridos produzidos e disseminados através dos media. Nesse sentido, a literacia da leitura não pode ser encarada como independente das restantes, particularmente da literacia dos media, pois engloba a compreensão de textos digitais, multimodais e multimé- dia, e o domínio da representação e da expressão através de diferentes media. As fronteiras entre a literacia da informação e a dos media são também difí- ceis de estabelecer, tantos são os cruzamentos entre os respetivos territórios. A UNESCO começou mesmo a defender o conceito de media and information literacypara reunir e abordar em simultâneo as diferentes competências que constituem pré-requisitos “for fostering equitable access to information and knowledge, and building inclusive knowledge societies” (UNESCO, 2011).

A literacia da informação, que teve origem na área da biblioteconomia e das ciências da informação, reúne um grande consenso sobre o que consti- tui o seu objeto: as competências analíticas, críticas e éticas para a pesquisa, avaliação e processamento da informação tendo em vista a construção do co- nhecimento. Já na literacia mediática, que nasceu mais ligada ao campo dos media, da educação e de outras ciências sociais, encontramos maior hetero- geneidade nas definições, embora uma mesma preocupação: focar a literacia mediática na compreensão crítica das mensagens dos media e dos próprios media, e no seu uso competente e criativo ao nível da expressão, comunicação e cidadania.

A literacia mediática não dispensa as competências de informação refe- ridas, tanto mais que o ritmo avassalador de fluxos informacionais com que nos confrontamos criou uma espécie de poluição e intoxicação informativa. Por sua vez, se a informação é cada vez mais produzida, difundida, recriada e arquivada no contexto da Rede e dos media digitais e eletrónicos, o seu uso e transformação não dispensam competências de interação e comunicação me- diáticas. Citando Lee & So:

“Ambas alfabetizaciones comparten el mismo objetivo: formar a los individuos para acceder, comprender, evaluar, comunicar, usar y crear mensajes mediáticos e información. Ambas señalan también la impor- tancia de un uso ético de la información, del análisis crítico del conte-

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nido, del uso de plataformas multimedia y de producción del conocimi- ento”(2014: 144).

Não obstante a finalidade comum e a tendência para literacia de infor- mação e mediática convergirem, podemos reconhecer enfoques distintos. A primeira centra-se na informação em geral e nas competências necessárias ao seu processamento e uso; a segunda foca-se sobretudo nas mensagens pro- duzidas pelos media e engloba na análise crítica os sistemas e indústrias de comunicação e os seus efeitos sociais, ou seja, os efeitos sobre as crenças, opiniões e comportamentos dos públicos enquanto consumidores e cidadãos. Resumindo, “la alfabetización informacional está más próxima al almacena- miento de información, procesamiento y uso, mientras que la alfabetización mediática está más ligada al contenido mediático, industria de los medios y efectos sociales” (Lee & So, 2014: 145).

Consciente destas articulações e cruzamentos mas também das suas dife- renças analíticas, o AcBE define objetivos e aprendizagens distintas para cada uma das áreas – literacia da leitura, dos media e da informação. Relativamente à literacia digital, dada a presença das tecnologias informáticas e eletrónicas em qualquer das áreas anteriores, optou-se pela sua abordagem numa perspe- tiva transversal.

As aprendizagens são descritas a diferentes níveis: conhecimentos/capa- cidades e atitudes/valores. Os primeiros são organizados de forma cumula- tiva e progressiva em função dos ciclos de ensino, os últimos representando a dimensão ética da aprendizagem enquanto atividade de natureza eminente- mente social, de relação com o outro e com crenças, valores, opiniões. Essa dimensão ética baseia-se também no pressuposto de que não é possível reali- zar certas aprendizagens sem algumas predisposições favoráveis que importa promover. Reproduzimos, a título de exemplo, a tabela relativa à área da lite- racia dos media para os diferentes ciclos do ensino básico (Fig. 1).

O AcBE inclui, ainda, um conjunto de estratégias de operacionalização e de exemplos de atividades para as três áreas definidas. O seu lançamento foi acompanhado de alguns materiais de apoio à aplicação: apresentação e meto- dologia; enquadramento teórico; grelhas de planificação e observação; e ficha de avaliação global. Considerou-se essencial, na fase inicial de implementa- ção, submeter o próprio referencial a experimentação e avaliação, cabendo ao

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Gabinete RBE a responsabilidade global pela monitorização de todo o pro- cesso.

Figura 1 – Tabela relativa à Literacia dos Media. Fonte: Aprender com a Biblioteca Escolar, p. 24

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Aplicação e conclusões preliminares

Para além de estruturante de novos percursos formativos, o referencial de aprendizagens AcBE tem sido o motor de uma experiência piloto que se ini- ciou em 2012-13 em 25 escolas de diferentes níveis de ensino, foi alargada a 50 escolas em 2013-14 e prossegue no ano de 2014-15 em 150 escolas. Estão envolvidos na experiência cerca de 250 docentes, entre professores bibliote- cários e outros professores, e mais de 3000 alunos.

A seleção das escolas piloto, à partida dotadas de bibliotecas com al- gum trabalho reconhecido, obedeceu a vários critérios: sintonia da experi- ência que lhes foi proposta com os objetivos educativos e curriculares da es- cola/agrupamento; articulação com as orientações, programas e metas curri- culares produzidas a nível nacional; integração das atividades da biblioteca nos percursos de ensino e aprendizagem da escola através duma cooperação estreita com os professores. Para induzir a comunidade educativa a tirar par- tido de todas as potencialidades da biblioteca, foram mobilizados para a ex- periência não apenas o professor bibliotecário, a sua equipa e os docentes que aderiram à iniciativa, mas também os órgãos de gestão pedagógica e as direções das escolas/agrupamentos. Pretende-se que as diferentes fases do projeto – planificação, implementação, avaliação dos processos e resultados de aprendizagem – sejam produto da concertação e dum trabalho articulado entre todos aqueles atores educativos. Os coordenadores interconcelhios das bibliotecas escolares têm tido a função de divulgação, apoio e acompanha- mento do projeto no terreno e recolha de informação em estreita comunicação com o Gabinete RBE.

Dois anos decorridos sobre a implementação no terreno desta experiên- cia piloto e do trabalho desenvolvido em cada escola – análise dos currículos, projetos educativos, planos de atividades e de trabalho das turmas; seleção das áreas a trabalhar e dos indicadores; planificação com os docentes; identi- ficação e criação/adaptação de recursos e de instrumentos de avaliação; rea- lização das atividades/projetos; monitorização e avaliação das aprendizagens –, podemos extrair algumas conclusões ainda que, por enquanto, a um nível preliminar e exploratório, dado tratar-se de uma experiência ainda a decorrer. Apesar de se ter procurado uma cobertura equilibrada dos quatro níveis de ensino e das três áreas do referencial, na generalidade, as bibliotecas es- colheram as áreas em que já desenvolviam trabalho, ou que se sentiam mais

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à vontade para explorar, ou ainda aquelas onde tinham mais docentes inte- ressados em colaborar. Daí resultou alguma assimetria, com o pré-escolar e a literacia dos media em desvantagem, como se pode verificar no quadro a seguir, relativo ao segundo ano de aplicação do referencial.

Figura 2 – Total de escolas e áreas envolvidas em 2013-14

Em relação ao próprio documento orientador da experiência, a receção por parte dos professores bibliotecários e dos outros docentes envolvidos foi muito positiva. Uns e outros consideraram o AcBE um referencial de aprendi- zagens “objetivo, orientador e exequível” (Conde, s/d: 12), que efetivamente apresenta um conjunto de competências, atividades e percursos formativos suscetíveis de aliar o ensino de conteúdos disciplinares à promoção de um conjunto de “novas literacias” sem as quais também não existe aprendizagem significativa dos anteriores.

A natureza transversal e abrangente das literacias da leitura, da informação e dos media e as sugestões de atividades foram consideradas suficientemente abertas para serem adaptadas ao contexto de cada escola e a áreas disciplinares específicas, facilitando a articulação curricular e um trabalho de colaboração entre docentes que veio ao encontro dos seus interesses e expetativas.

As competências a promover e as especificidades da biblioteca escolar, espaço simultaneamente formal e informal, permitem que o trabalho em torno do referencial se desenvolva em contextos variados – projetos extracurricula- res, clubes e oficinas, Educação para a Cidadania, TIC, Atividades de Enrique- cimento Curricular. No entanto, o que se verifica é a predominância do traba-

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lho desenvolvido em co-docência no seio de determinadas áreas/disciplinas, o que é, aliás, uma das finalidades deste referencial de aprendizagens associadas à biblioteca escolar.

Com o reforço, nas atuais políticas educativas, de um ensino essencial- mente centrado em conteúdos e orientado para exames,

“foi salientado o facto de, através do referencial, serem trabalhadas áreas de que mais ninguém se ocupa nas escolas, a não ser de uma forma implícita ou mais ou menos informal, não existindo, assim, so- breposição com os programas ou com as metas mas, antes, uma função útil de coadjuvação e complementaridade” (Conde, s/d: 16).

Para as bibliotecas e os professores bibliotecários, o documento também se revelou fundamental

“ao legitimar e formalizar um trabalho que já vem sendo feito mas que precisa de ser realizado de uma forma muito mais intencional, estrutu- rada, continuada e significativa, ajudando as bibliotecas a operaciona- lizarem os seus objetivos: o apoio ao currículo e a formação para as literacias” (Conde, s/d; 15).

Ao procurar incentivar o desenvolvimento de competências transversais em relação com as diferentes áreas do conhecimento, o “documento induziu, deste modo, uma prática de maior colaboração com a biblioteca, ajudando a ultrapassar o carácter intuitivo, pontual e pouco consistente do trabalho que com ela era realizado” (Conde, s/d: 16).

O trabalho nas turmas desenvolveu-se, sobretudo, em pequenos grupos de alunos, facilitando um acompanhamento e uma resposta às dificuldades mais individualizados. Seguiu-se, no geral, uma metodologia de aprendiza- gem ativa baseada em projetos e práticas de leitura, e na pesquisa, produção e comunicação de informação usando tecnologias e media digitais, programas e aplicações informáticas variados, incluindo ferramentas web 2.0. O caráter eminentemente prático das tarefas gerou forte adesão e motivação por parte dos alunos que, através da diversidade de instrumentos referida, produziram livros digitais, apresentações eletrónicas, vídeos, podcasts, cartazes e notícias, entre outros. Na generalidade, também se constatou por parte dos alunos uma apreciação favorável sobre

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“os resultados do trabalho desenvolvido, quer no domínio dos conheci- mentos/ capacidades inerentes às áreas de literacia (. . . ) por exemplo, na leitura, aquisição de métodos de pesquisa, respeito pelos direitos de autor, segurança na internet, manipulação de ferramentas, e outros, quer no âmbito dos conteúdos disciplinares” (Conde, 2014: 19).

A utilização intensa de tecnologia e media digitais confirmou a justeza de disseminação da literacia digital por todas as áreas e também a relação estreita e incontornável entre a literacia da leitura, da informação e dos media. O facto de esta última ser a menos trabalhada é um dado sobre o qual é necessário refletir e intervir.

Se é particularmente evidente, no caso dos media, que uso e produção são duas faces da mesma moeda, também é certo que a educação para os media de modo algum se esgota nessa aprendizagem técnica. Efetivamente, é neces- sário complementar esse primeiro nível com uma abordagem de tipo reflexivo e crítico e ainda com a dimensão social e ética que tem por finalidade orientar as competências técnicas e cognitivas para o uso consciente e autónomo dos mediana comunicação e relações interpessoais, no contexto da própria apren- dizagem, na construção da identidade, na participação social e cívica. São estas dimensões que estão plasmadas na área da literacia dos media do AcBE. O principal caminho para reforçar a presença da literacia dos media no âmbito da experiência piloto que relatámos será, por certo, o reforço da forma- ção dos professores bibliotecários nesta área onde confessam sentir-se menos à vontade. Explorar articulações possíveis com o Referencial de Educação para os Media publicado pela Direção-Geral da Educação em maio de 2014, nas escolas que decidirem abordá-lo, parece-nos igualmente outro caminho a tentar. Em termos globais, no final da experiência piloto o AcBE será alvo das alterações que forem consideradas necessárias, atendendo às apreciações e sugestões resultantes da aplicação no terreno e ouvidos especialistas em di- ferentes áreas, assim como alargado a todas as bibliotecas que o quiserem implementar.

Referências

Conde, E. (s/d). Aprender com a biblioteca escolar: Relatório do projeto piloto de aplicação do referencial aprender com a biblioteca escolar

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2012.13. Lisboa: RBE. Consultado a 1 de novembro de 2014 em www.rbe.mec.pt.

Conde, E. (2014). Aprender com a biblioteca escolar: Relatório do pro- jeto piloto de aplicação do referencial aprender com a biblioteca es- colar 2013.14. Lisboa: RBE. Consultado a 28 de novembro de 2014 em www.rbe.mec.pt

Conde, E.; Mendinhos, I.; Correia, P. & Martins, R. (2012). Aprender com a biblioteca escolar: referencial de aprendizagens associadas ao trabalho das bibliotecas escolares na educação pré-escolar e no ensino básico. Lisboa: RBE. Consultado a 1 de novembro de 2014 em www.rbe.mec.pt. Lee, A.Y.L. & So, C.Y.K. (2014). Alfabetización mediática y alfabetización informacional: Similitudes y diferencias unicar. Comunicar, nº 42: 137- 146.

UNESCO (2011). Media and information literacy. Atualizado 20-07-2011. Consultado a 12 de novembro de 2014 em www.unesco.org.