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A Borgonha 385 e o seu duque, o grande leão da Flandres

No documento De infanta de Portugal a duquesa de Borgonha (páginas 118-121)

III – Um casamento tardio com um dos homens mais ricos e influentes da Europa

3. A Borgonha 385 e o seu duque, o grande leão da Flandres

Segundo Gomes Eanes de Zurara o duque Filipe era “(…) o mayor Principe sem

Coroa, que naquele tempo avia na Christandade”386. Filipe, o Bom, terceiro duque de

Borgonha (ramo Valois387), é nesta altura conde de Flandres, Artois, Borgonha, palatino de Namur, senhor de Salines e de Malines388, cujo sonho era reconstruir a velha Lotaríngia de Carlos Magno: um país-tampão entre a França e a Alemanha, ligando o Mar do Norte ao Mediterrâneo. Por isso, não olhava a meios para atingir os seus fins. Em termos estatutários o expoente máximo destes territórios era o ducado de Borgonha, mas a sua grande riqueza advinha-lhe do condado da Flandres, com o qual, aliás, Portugal há muito mantinha relações sólidas e diversas389.

Por toda a Europa, a sua fama registou-o como o Grande Duque do Ocidente, um dos homens mais poderosos e, por que não dizer, excessivo, da sua época. Odiado pelos adversários, amado pelos seus servidores e por todo o seu povo, que o apelidava de “o bom duque Filipe”, nasceu em Dijon, a capital do ducado de Borgonha, no dia 30 de Junho de 1396. Não chega, portanto, a ter um ano de diferença da nossa infanta. Seus

da pintura a óleo. Evidentemente que esta técnica era conhecida há muito, mas os pigmentos da cor (obtidos reduzindo a pó determinados minerais) que se juntavam ao óleo de linhaça ou de noz, resultava incómodo de utilizar pelo tempo que se tinha de esperar até secar, para poder aplicar nova camada. Ora parece que terá sido Jan Van Eyck o pintor que encontrou uma forma de acelerar o processo de secagem. Até 1425, o pintor flamengo havia estado ao serviço do conde da Holanda. A partir desta data entra ao serviço do duque de Borgonha, não só como pintor e camareiro de Filipe, mas também como diplomata (há quem afirme até como espião), ou seja, homem de total confiança do duque de Borgonha. A Nova

História da Arte de Janson: a tradição ocidental, pp. 493-499. E também os seguintes documentos electrónicos: http://www.nga.gov/cgibin/tsearch?artistid=1270; http://www.metmuseum.org/toah/hd/eyck/hd_eyck.htm e http://www.jan-van-eyck.org/.

385 Contextualizar a importância do ducado de Borgonha na Europa da época é uma necessidade, embora

não seja uma obrigação. No entanto, é importante compreender que território é este, já que nos dá a medida do estatuto que o seu duque possuía. Esmiuçar a sua história ocupar-nos-ia algumas páginas e levar-nos-ia para fora do objectivo do nosso estudo, excedendo o nosso propósito. Por este motivo, optámos por fazê-lo num dos anexos deste trabalho (anexo D-I).

386 ZURARA, Gomes Eanes – Crónica do conde Dom Pedro de Menezes. Reprodução fac-similada com

nota de apresentação por José Adriano de Freitas Carvalho. Braga: CNCDP, 1988, cap. XXVI, p. 576

387 Consultar o anexo D-I.

388 É desta forma que aparece a designação no contrato de casamento, embora através do tratado de Delft,

de 3/7/1428, com a sua prima Jacqueline da Baviera, os condados de Hainaut, Holanda, Zelândia e Frísia, tenham passado para a sua posse. Em 1430 herdará o Brabante-Limburgo, Antuérpia e Malines; herdará o Luxemburgo de sua tia; como prenda de casamento o duque de Bedford, a 8 de Março de 1430, dar-lhe-á os condados de Champagne e do Brie, além dos territórios consentidos no tratado de Arras, a partir de 1435.Ver mapa no anexo D-II.

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pais foram João sem Medo (1371-1419), o segundo duque de Borgonha, e Margarida da Baviera (1363-1424)390. Foi o quinto filho e único rapaz, entre as sete filhas do casal.

Na sua juventude Filipe teve mestres e educadores flamengos, cuja língua dominava com fluência, e a maior parte da sua vida passou-a em Gand. A sua cultura geral era, no entanto, francesa391. Descrito pelo seu cronista borgonhês Georges Chastellain como “ponderado, objectivo e frio na forma como tirava conclusões; duro nos propósitos, firme no que prometia, confiava na consciência alheia e na honra de cada um, pois o sentido da dignidade era para ele uma espécie de culto; o seu estado de alma transparecia na face e todos os seus hábitos correspondiam ao que se lhe lia no rosto; nunca falava por falar e o que dizia nunca era em vão; não praguejava, era bondoso e calmo nos modos; o que norteava a sua existência era alicerçado no ideal cavalheiresco: a crença em Deus e o cerimonial; era um paladino da Igreja, sempre ao lado do Papa; passava horas a meditar depois da missa, e há quem diga que jejuava a

pão e água vários dias por mês, mas era negligente e desleixado em todos os negócios, o que provocava grandes problemas ao seu país e aos seus súbditos”. O príncipe perfeito para contrair matrimónio com a decidida infanta portuguesa, não fosse o seu cronista acrescentar que o bom duque tinha “o vício da carne, sendo muito dado à luxúria: o que os seus olhos viam, o coração desejava”392.Segundo o historiador francês do século XIX

Jules Michelet, Filipe o Bom “teve só dezasseis bastardos, mas nada menos do que

vinte e quatro amantes”393.

Após o assassínio de seu pai, em 1419, por soldados franceses à ordem do delfim, há quem diga que se lhe “impregnou nas veias o veneno do ódio, e no cérebro a

ideia fixa da vingança que o levou a aliar-se aos ingleses”. Mais tarde, Filipe será o

árbitro da Guerra dos Cem Anos, aproximando-se ora da Inglaterra, ora da França,

390 Ver quadro genealógico no anexo D-III 391 MORAIS, Faria de – Ob. Cit., p. 29

392 CHASTELLAIN, Georges – Chronique des Ducs de Bourgogne, T. I, pp. XVII-XXX. Este panegírico

descrito em 13 páginas por Chastellain no primeiro tomo dedicado aos duques de Borgonha intitula-se “Éloge du bon duc Philippe”, seguido da “Déclaration de tous les hautz faictz et glorieuses adventures du duc Philippe de Bourgogne cellui qui se nomme le grand duc et le grand lyon”. Optámos por apenas destacar alguns pormenores, traduzidos do original, para identificarmos um pouco melhor o futuro marido da infanta D. Isabel.

393 MICHELET, Jules – Joana d’Arc. Lisboa: Pergaminho, 1993, p. 58. SOMMÉ, Monique (Isabelle de

Portugal …, p. 42) cita R. Vaughan para inflacionar estes números: Filipe teria tido 33 amantes e 26

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conforme as conveniências que os seus projectos e ambições conduziam394. Assim sendo, é provável que o interesse em casar com uma princesa portuguesa, que transportava sangue inglês, não tenha sido uma escolha displicente. É ainda Michelet, que utiliza a ironia para afirmar: “era um bom homem, segundo as ideias vulgares, com

um coração terno, sobretudo para as mulheres, bom filho, bom pai, chorando facilmente. Chorou as mortes de Azincourt, mas a sua aliança com os ingleses fez mais mortos do que Azincourt. Derramou torrentes de lágrimas pela morte de seu pai e depois, para o vingar, derramou torrentes de sangue. Sensibilidade e sensualidade, são duas coisas que muitas vezes andam juntas”395.

Era um dos Príncipes mais ricos e poderosos do seu tempo. Os seus rendimentos anuais rondavam os 900.000 ducados, o mesmo rendimento da República de Veneza, a

Sereníssima, o dobro dos rendimentos do Papa e do ducado de Milão, superior três vezes ao reino de Nápoles e quatro vezes aos de Florença396. A Borgonha era nesta época “um centro de luxo e cultura, de onde radiavam os últimos esplendores da pompa medieval e onde se cruzavam todos os interesses e todas as ideias do oscilante, contraditório e fecundo século de Quatrocentos”, como sugeriu Alfredo Gândara397. No

entanto, embora a consolidação territorial do seu ducado decorresse a bom ritmo, a falta de um herdeiro inquietava os súbditos. Em Setembro de 1428, Filipe recebeu mesmo uma petição dos Quatro Membros da Flandres, pedindo-lhe para que se casasse o quanto antes, de forma a assegurar o futuro da dinastia398.

Tendo em conta esses tempos que se adivinhavam de mudança, a figura de Filipe mantinha-se como um símbolo da nobreza da velha ordem de cavalaria feudal, tal como a Igreja a criou e definiu.

394 BRAZÃO, Eduardo – Portugal na Bélgica (de Filipe de Alsácia a Leopoldo I), Lisboa: Companhia de

Diamantes de Angola, 1969, p. 50; MORAIS, Faria de – Ob. Cit., p. 52; PERNOUD, Régine et CLIN, Marie-Véronique – Joana d’Arc. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1993, p. 92

395 MICHELET, Jules – Ob. Cit., p. 61 396 BRAZÃO, Eduardo - Ob. Cit., p. 51 397 GÂNDARA, Alfredo – Ob. Cit., p. 34 398 SOMMÉ, Monique – Ob. Cit., p. 26

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4. A embaixada borgonhesa em Portugal (Dezembro de 1428 a Outubro de

No documento De infanta de Portugal a duquesa de Borgonha (páginas 118-121)