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3. A Caieira da Barra do Sul

3.4. A Caieira para o IPUF

No Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (IPUF), um órgão público da instância municipal, foi fundamental na obtenção de parte do material utilizado nesta tese como fotos e mapas. Entre o material obtido junto ao IPUF está o Mapa Digital (organizado pelo próprio IPUF) que foi fornecido em forma de CD-ROM. Este material contém uma riqueza de informações históricas sobre a cidade de Florianópolis, mapas, fotos de toda Ilha de Santa Catarina, indicação de caminhos e trilhas, documentação de todas as praias da Ilha, inclusive as mais isoladas.

A Caieira é apresentada como

“uma famosa e tradicional praia do sul da Ilha e se apresenta como um baixio de mar intermediário. Fica a meio caminho entre Naufragados e Tapera e dista 34 km do centro de Florianópolis. A sua história liga-se aos acontecimentos ocorridos na ponta dos naufragados. A expressão caieira designa o local de produção de cal. As conchas eram retiradas de depósitos milenares, colocadas em uma cova em camadas intercaladas com lenha. Ateava-se fogo e a cal resultava das conchas calcinadas. (...)” (guia digital Florianópolis, IPUF, 2003)

Nos arquivos do IPUF pude encontrar também Plantas de Quadra, que são representações gráficas de quadras de bairros da cidade. Estas Plantas nos informam sobre a localização e limites de cada propriedade, a disposição das casas nos terrenos e quais as suas delimitações legais. As Plantas de Quadra são elaboradas segundo os registros legais das propriedades, e assim, aqueles que estão legalizados, com registro dos imóveis construídos na propriedade, com a divisão do terreno por inventário entre todos os herdeiros, têm sua representação gráfica bastante próxima da realidade observada. Na Caieira da Barra do Sul a maior parte das propriedades não está com os registros legais em dia, e desta forma as Plantas de Quadras não são fieis à distribuição espacial que é posta em prática.

No entanto, é possível fazer uma distinção entre os novos moradores e freqüentadores “de fora” e os moradores e freqüentadores “daqui” com relação à legalização das propriedades. Nas casas de praia dos “de fora” todos os terrenos foram escriturados, ou seja, foram legalizados em escrituras de propriedade. Uma análise de um grande número de plantas de quadra fornecidas pelo IPUF para esta pesquisa, foi possível constatar que os terrenos dos proprietários “de fora” geralmente estão regularizados perante a prefeitura, enquanto os terrenos dos moradores “daqui” não necessariamente têm seus rearranjos, construções e suas divisões registradas no órgão responsável. Podemos listar os motivos para que haja formas diferentes de legalização da propriedade: entre os moradores nativos temos muitos casos em que (a) os terrenos foram recebidos por herança, ou (b) os terrenos foram negociados “de boca”24 entre parentes, e/ou (c) entre “conhecidos” – que são outros moradores do bairro – em que todos tem entre si alguma relação de parentesco. Há entre estas pessoas uma confiança de que a palavra dada seja cumprida, mesmo depois da morte dos envolvidos na negociação. Acredita-se que os seus herdeiros farão cumprir a palavra do pai/avô. Juntam-se a estes motivos o argumento que me foi dado várias vezes de que estes moradores não têm suas escrituras regularizadas porque é preciso dinheiro para fazer o inventário, que custa muito caro para os padrões dos ganhos das famílias moradoras da Caieira. Por sua vez, os veranistas "de fora" não entram nas redes de parentesco que regulamentam as negociações imobiliárias entre os moradores nativos e, além disso, suas próprias crenças do que seja um proprietário é embasada pelas regras legais de registro de imóveis, não sendo possível o negócio feito “de boca”.

A partir de uma Planta de Quadra fornecida pelo IPUF elaborei uma outra versão da mesma planta de quadra (página 36), a partir de meus dados de campo, com informações fornecidas por diferentes sujeitos com quem conversei na Caieira. A primeira representa as divisões espaciais legalizadas que constam neste órgão público responsável por estas questões e a segunda é uma tentativa de representar graficamente as divisões que vigoram na prática entre a família. As plantas de quadra nos possibilitam visualizar as representações oficiais sobre partes dos bairros.

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Os negócios “de boca” são aqueles feitos sem registro escrito de qualquer espécie. Entre os moradores nativos da Caieira e do interior da Ilha de Santa Catarina – muitos analfabetos – esta é a forma tradicional de negociar a compra e venda de terras, gado, casas, tudo enfim.

Planta de Quadra fornecida pelo IPUF -

Planta de quadra fornecida pelo IPUF com modificações da pesquisadora, delimitando as casas de Seu Faberlúcio e Dona Aparecida.

A minha elaboração a partir da planta de quadra fornecida pelo IPUF pode estar mais bem informada sobre a forma como os lugares são praticados pelos seus moradores e freqüentadores. Pode também ser uma representação gráfica um pouco mais próxima a divisão real dos terrenos. No entanto, não é possível afirmar que ela represente com fidelidade as elaborações sociais a que esta propriedade está sujeita, porque apesar de meus esforços de conseguir informações precisas, a cada nova conversa um novo dado era incorporado aos anteriores. Assim, é possível que haja divisões que eu não fui informada, ou que estejam latentes e não sejam ainda praticadas.

Entre o material fornecido pelo IPUF para esta pesquisa estão mapas da Ilha de Santa Catarina que foram utilizados nesta tese e fotos aéreas da Caieira da Barra do Sul de três épocas distintas: uma foto aérea datada do ano de 1938, outra de 1958 e a última de 1978 (ver páginas 39, 40 e 41). Elas são ilustrativas de como as terras na Caieira eram cultivadas em roças que ocupavam os morros e como gradualmente estas terras foram deixando de ser cultivadas e foram tomadas pela vegetação. As fotos são ilustrativas do processo de modificação física pelo qual a Caieira está passando.

Na foto mais antiga, de 1938, apesar da má qualidade da fotografia, é possível perceber como os morros eram divididos em pequenos retângulos de cores variadas. Estes retângulos são as roças dos moradores da Caieira, que naquele período dedicavam-se ao cultivo da terra e à pesca. Na segunda foto aérea tirada em 1958 é possível perceber com mais detalhes, devido a melhor qualidade da fotografia, como os terrenos eram ainda cultivados, é possível ver os limites de cada roça. No ano de 1978 a fotografia retrata uma outra realidade, os “quadradinhos” foram se mesclando e diminuindo em número. É visível a diminuição da área plantada, o que aponta para uma modificação nos modo de vida destas pessoas, que coincide com um processo de abandono da lavoura e busca por outras formas de ganhar a vida. As fotos são ilustrativas de que este processo iniciou-se antes da vinda dos novos moradores para a Caieira, e já era visível no fim da década de 70, quando a estrada foi aberta.

Perguntei para Dona Eleontina25, hoje com aproximadamente 55 anos, que tem casa de praia na Caieira, próxima de onde sua mãe morava e onde ela própria cresceu, por que no fim da década de 70 as plantações já haviam diminuído em número. Ela que atualmente freqüenta a

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Caieira com seu marido e as filhas, como veranistas, contou que em sua geração muitos filhos das famílias “daqui” foram embora para trabalhar na cidade. Principalmente porque “o tempo de antigamente era muito difícil, se trabalhava duro na lavoura e não se tinha nenhum conforto”.

Dos três filhos de Dona Bicotinha26, o mais velho foi morar próximo do centro da cidade para trabalhar, há quase 30 anos atrás, sua filha foi funcionária da prefeitura e seu filho mais novo trabalha atualmente no centro, reside fora da Caieira, mas freqüenta semanalmente a casa dos pais. Estes exemplos podem ser ilustrativos de uma época que a cidade começou a crescer e precisar de mão de obra para os serviços necessários na metrópole. Os filhos destas famílias foram em busca de outras formas que ganhar a vida que não o trabalho na lavoura e as roças foram sendo abandonadas por falta de mão de obra familiar.

No IPUF, por sua vez, não há registro de dados estatísticos sobre a Caieira da Barra do Sul, dados sobre o número total de casas, de famílias, ou o número de estabelecimentos comerciais, de postos de saúde, escola ou creche, ou problemas que o bairro tem e que precisam ser resolvidos.

Esta falta de dados estatísticos sobre a Caieira acontece não porque este tipo de informação não é de interesse deste órgão da prefeitura – inclusive foi no IPUF que em pesquisa anterior encontrei vasto material sobre um outro bairro Florianópolis, onde residiam famílias de grupos populares – mas porque a Caieira é considerada uma “uma comunidade tradicional”, e como tal, não está sujeita a atuação da prefeitura da mesma forma como estão as “comunidades carentes”. Não se faz necessário detalhamento de dados porque as comunidades tradicionais são consideradas o lócus privilegiado da permanência, refere-se a algo que tradicionalmente não está sujeita a grandes e profundas modificações.

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